Chega para lá Charlize Theron com esse frasco de J’Adore, o presente mais cobiçado deste Natal é Conspiracy, uma paleta de sombras de olhos criada por dois reis do Youtube. De um lado, Shane Dawson, com mais de 23 milhões de seguidores, do outro Jeffree Star com 16.5 milhões de seguidores. Juntos têm uma audiência que é quase quatro vezes a população de Portugal. Não admira, portanto, que a coleção de maquilhagem que criaram juntos tenha esgotado num par de horas. Só a paleta grande, uma caixa com 18 sombras de olhos vendida por €56, esgotou quatro horas depois de ter sido lançada online, tendo vendido 1.1 milhões de unidades – e gerando um resultado bruto de mais de seis milhões de euros.
Mas atribuir o sucesso deste lançamento à simples soma da audiência destas duas estrelas da Internet seria uma leitura demasiado superficial. Na sua lista dos canais independentes mais populares, a Business Insider explica que “o Youtube criou uma nova geração de celebridades e influenciadores que transformaram a publicação de vídeos online em carreiras lucrativas. Nomes bem familiares como PewDiePie, Shane Dawson e Smosh ganharam milhões de seguidores ao longo dos anos ao fazer upload de vídeos e formando laços aparentemente pessoais com os seus fãs. De comediantes a gamers a vloggers de todo o tipo, os youtubers exploraram a plataforma de partilha de vídeo para estabelecer o seu público e marca com pouco mais do que uma câmara de vídeo e uma boa ligação à Internet”.
Laços aparentemente pessoais
Shane Dawson tinha 19 anos quando, em 2008, começou a fazer vídeos para o Youtube. Com mais de 10 anos de carreira, é considerado um old school da plataforma de partilha de vídeos norte-americana criada em 2005 por três ex-funcionários da Paypal – e posteriormente comprada pela Google no ano seguinte. Durante mais de uma década, uma audiência internacional viu Shane lutar contra a depressão e com problemas de peso, descobrir a sua sexualidade, acabar com a namorada, tentar a sua sorte na música e mais recentemente tornar-se na Oprah do Youtube.
Com vislumbres quase diários para a sua vida, em que a partilha não é apenas de vídeos, mas incluiu relatos íntimos de sentimentos e situações, não é difícil perceber os “laços aparentemente pessoais”que a Business Insider refere. Basta ir aos comentários dos seus vídeos para perceber que os fãs estão lá para ele, fãs como Brianna Matos que comentou o vídeo de apresentação da paleta Conspiracy da seguinte forma: “Eu adoro o Shane há já muito tempo. Desde os seus pequenos sketches a comer em frente à câmara até aos seus vídeos de conspirações. Shane, não sei se vais ler isto, mas eu estou genuinamente super orgulhosa de ti e do teu crescimento. Estamos aqui para ti. Honestamente, vamos estar sempre aqui para ti. Toda a gente vê algo em ti, mesmo quando tu não vês. Nós adoramos-te Shane. Espero poder ver-te em breve”.
Um pouco cego por esses laços aparentemente pessoais, o público parece esquecer – ou não querer saber – que fazer vídeos, seja a contar a história de um primeiro encontro que correu mal, seja a experimentar um novo batom ou a ver quem come mais cachorros quentes picantes, é uma profissão; uma profissão que pode ser extremamente lucrativa.
A GOAT, uma agência pioneira na gestão de influenciadores clarifica esta relação na sua apresentação online ao defender que “as recomendações de alguém que conhecemos sempre foram a mais poderosa forma de marketing. As redes sociais apenas mudaram a escala destas recomendações”. O público sente-se próximo do youtuber e, por isso mesmo, quer apoiá-lo e confia nas suas recomendações. Multiplique-se este sentimento por milhões de pessoas e o resultado é um youtuber de sucesso.
https://www.youtube.com/watch?time_continue=15&v=OTCOoVApM_U
Um estudo da Whalar, outra agência de marketing de influenciadores, defende que “quando comparado com anúncios televisivos, o marketing de um influenciador é 277% mais intenso emocionalmente e 87% mais memorável”. Mas o que é exatamente esta criatura capaz de roubar corações e ditar opiniões? A GOAT, votada pela Adweek como uma das agências de marketing com maior crescimento este ano, define influenciador como “uma pessoa ou página com um grande número de seguidores ativos nas redes sociais que só conhece quem segue. Cada influenciador tem o seu próprio público nicho independentemente da escala da sua audiência. O que dá a uma marca a oportunidade de chegar a segmentos específicos de consumidores através da recomendação pessoal máxima”. Então e se o influenciador, em vez de servir os interesses de uma marca, criar o seu próprio produto?
FOMO: Fear Of Missing Out
No dia 1 de novembro, o dia em que a paleta Conspiracy saiu, o Google mostra que no topo das pesquisas feitas em Portugal estava o Benfica e o resultado do jogo das águias com o Rio Ave (100 mil pesquisas). Mas, do outro lado do Atlântico, no mesmo dia, os norte-americanos queriam ver a nova paleta do Jeffree Star. Mais de dois milhões de pessoas nos EUA procuraram Jeffree Star no Google, o segundo tema no topo das Google Trends depois de Dia dos Mortos, um feriado tipicamente mexicano celebrado neste dia. No Reino Unido, Jeffree Star era apenas o quarto tema mais pesquisado, mas, com mais de 200 mil pessoas a quererem saber dele, ainda assim teve o dobro do interesse que o Benfica.
À primeira vista é fácil descartar FOMO, acrónimo para a expressão inglesa Fear of Missing Out, como mais uma moda de adolescentes com a sua linguagem codificada, mas em 2013 a palavra FOMO foi oficialmente adicionada ao Oxford Dictionary. “Este acrónimo inteligente foi cunhado para descrever a ansiedade que pode surgir quando sentimos que que há algo mais excitante a acontecer noutro sítio e que infelizmente não estamos lá”, explica Aarti Gupta num artigo sobre como lidar com este problema no site da Associação Americana da Ansiedade e Depressão.
Durante meses tanto Shane como Jeffree usaram as redes sociais para criar antecipação em torno de uma possível colaboração. Em setembro, saiu finalmente o trailer para a série chamada The Beautiful Life of Jeffree Star, e foi visto mais de 13 milhões de vezes. Originalmente, a série tinha o título provisório de The Ugly Side of the Beauty World e propunha ser uma viagem aos bastidores do mundo da beleza através dos dramas que mexem as águas do Youtube. As gravações começaram em janeiro de 2019 e nesses meses muito tinha acontecido neste terreno no que toca a beleza e às suas figuras máximas dentro da plataforma.
“O Shane teve um ano a dizer que não podia fazer mais nada porque estava focadíssimo neste ‘documentário’ para ‘expor a beauty community’. O evento do ano foi o Dramageddon II, a zanga da Tati Westbrook e do James Charles, no qual o Jeffree se inseriu (sendo que o Dramageddon I foi no ano anterior quando o Jeffree e outros três youtubers se chatearam). O Shane usou isso tudo no trailer, deu a entender que ia ser uma série de nove episódios para expor os ins and outs da comunidade e que a paleta que ele ia fazer com o Jeffree ia estar a acontecer ao mesmo tempo, mas não ser o foco principal”, resume Sara Marques de Oliveira, deixando claro que a comunidade dedicada à beleza no Youtube é uma espécie de Guerra dos Tronos em que cada criador se envolve em batalhas pela supremacia. Sara tem 35 anos, vive em Lisboa, é maquilhadora profissional e youtuber ocasional. Não sendo fã do Shane ou do Jeffree, gosta da plataforma e assiste a pelo menos uma hora de vídeos diariamente. “Vou ao Youtube todos os dias há cerca de oito anos. Sou mesmo super fã. Vejo maioritariamente beauty e maquilhagem de criadores mais pequenos ou maquilhadores estabelecidos, canais de comentário e coisas sobre curiosidades, história, ciência e cenas aleatórias tipo street food”.
Em outubro, quando os vídeos da The Beautiful Life of Jeffree Star começaram a sair, talvez por FOMO, talvez “porque sou uma ovelhinha e não consigo aguentar. A curiosidade consome-me por dentro”, explica ironicamente, assistiu a todos os episódios e vai continuar assistir aos que ainda aí vêm apesar de se sentir enganada. “A série finalmente sai, e apercebemo-nos que é sobre os seguintes temas: o Jeffree é muito rico, o Jeffree é a única pessoa honesta na beauty industry, o Shane é super ingénuo e fica muito surpreendido com tudo, o Shane nunca viu dinheiro na vida, eles têm que ir a muitas reuniões, os produtos esgotaram todos e eles fizeram imenso dinheiro. Tudo isto podia ter sido condensado numa hora, mas foram seis. É só manipulação emocional e autopromoção”, desabafa. O que ela queria mesmo ver era os bastidores da discussão entre Tati e James Charles.
Youtube Vs. TV
Só durante o mês de outubro, Shane publicou quatro vídeos da série no seu canal que no total foram visualizados mais de 80 milhões de vezes. Um anúncio de batom numa revista de beleza não consegue rivalizar com estes números, seja da Chanel ou da Lancôme. E mesmo o célebre anúncio do perfume J’Adore, da Dior, um clássico da época natalícia protagonizado por Charlize Theron, não tem hipótese. Temos de ir até ao topo do mercado publicitário para fazer uma comparação. De acordo com números do Statista, a edição de 2019 do Super Bowl, um dos maiores eventos televisivo do mundo, foi assistido por 98.2 milhões de pessoas nos EUA. E, mesmo que tenha sido uma das edições com menor audiência de sempre, para ter acesso a este número de potenciais clientes, marcas como a Pepsi, a Microsoft ou a Hyundai pagaram 5.25 milhões de dólares por um anúncio televisivo de 30 segundos.
O Global Web Index 2019, um relatório anual da Thinkbox sobre as tendências no que toca a comportamentos de consumidores, defende que estas marcas estão a bater à porta errada. A grande mensagem aqui é que os consumidores mudaram, mas os anunciantes não. Em 2019, o número de horas que passamos em frente à televisão desceu 53% comparado com 2011. Inversamente, o tempo que passamos nas redes sociais aumentou 73%. E empresas como a Thinkbox preveem que esta tendência só vai continuar, estimando que em 2021 vamos passar 3 horas e meia por dia nas redes sociais (+128%) versus 54 minutos de televisão (-78%). Confrontados com este tipo de previsão, a maior parte das grandes marcas continua ainda assim a atirar dinheiro para anúncios televisivos. O mesmo relatório afirma que em 2018, nos EUA, cerca de 70 mil milhões de dólares foram para anúncios em televisão, enquanto apenas 27 mil milhões de dólares foram para campanhas de publicidade direcionadas para redes sociais.
De acordo com estimativas do site Influencer Marketing Hub, um youtuber pode ganhar entre 3 a 5 dólares por cada mil visualizações. Considerando que tanto Shane como Jeffree são dos youtubers mais famosos do mundo, vamos colocá-los no escalão mais alto e estimar que ganham cinco dólares (€4,5) por mil visualizações. Nesse caso, só pelos quatro vídeos que saíram em outubro, Shane, o criador/realizador terá ganho meio milhão de dólares (€450.000) — isto excluindo o dinheiro dos patrocinadores e dos anunciantes.
“Uma coisa é certa”, remata Sara, “com estes 20 milhões de visualizações por vídeo, devem estar a fazer mais dinheiro do que eu provavelmente vou ver em toda a minha vida. Portanto, de alguma maneira também estou a contribuir, nem que seja para criticar a seguir”. Sara não comprou a paleta Conspiracy.
Todo o highlighter do mundo
Quer se goste ou não de Jeffree Star, há que admirá-lo — pelo menos um bocadinho. Jeffree é o único canal dedicado à beleza a constar do ranking da Forbes dos youtubers que mais dinheiro ganharam em 2018, onde fica na quinta posição, com rendimentos de mais de 16 milhões de euros no ano passado. No ranking deste ano, graças à série que protagonizou com Shane Dawson e à coleção que lançaram juntos, é de esperar que se aproxime ainda mais do topo da lista.
Uma figura polémica cuja popularidade começou no velhinho MySpace, Jeffree ainda hoje é assombrado por acusações de racismo relacionadas com vídeos que gravou há quase uma década. O seu sucesso apesar das muitas controvérsias em que se vê envolvido prova que popularidade não é suficiente para fazer dinheiro – há youtubers com mais seguidores que não fazem metade do dinheiro.
Ser um dos chamados gurus de beleza mais famosos da Internet não era suficiente para Jeffree Star que em novembro de 2014 fundou uma empresa de produtos de maquilhagem com o seu nome. A Jeffree Star Cosmetics é famosa pelos seus highlighters, batons líquidos e paletas de sombras de olhos – o seu sucesso mais recente é a colaboração com Shane Dawson para criar a paleta Conspiracy, que vendeu mais de um milhão de unidades em menos de 24 horas.
A puxar a estrela da sorte do Jeffree está o crescimento exponencial da indústria da beleza, estimada em 532 mil milhões de dólares este ano, mas com previsões de continuar a crescer em 2020. Números que constam de um relatório da Edited que afirma que “o crescimento de marcas de beleza orientadas diretamente para o consumidor, auxiliadas pelas redes sociais, marketing de e-mail e aplicações que permitem comprar diretamente a partir da imagem, fez com que ultrapassassem as companhias de beleza convencionais. Marcas D2C (que vendem diretamente ao consumidor) estão a dominar a experiência do consumidor e a cortar o intermediário”, defendem. Desculpa Estée Lauder.
O relatório continua a tentar desenhar o futuro desta indústria ao afirmar que as “tendências culturais estão a mudar a forma como as pessoas compram. Os consumidores querem transparência e estão muito mais informados a respeito dos ingredientes de cada produto. Quanto mais curta for a lista, melhor: produtos vegan, não tóxicos e cruelty-free reinam”.
Os produtos Jeffree Star Cosmetics já são vendidos maioritariamente online, são vegan e cruelty-free, mas a série The Beautiful Life of Jeffree Star elevou o conceito de marketing directo para outro patamar ao mostrar ao consumidor a criação do produto desde a simples ideia até à materialização do produto. É o conceito de transparência puxado até um novo limite.
“O aspeto mais inovador deste documentário é a forma como eles mostraram o antes, o durante e, supostamente, o depois do lançamento dos produtos. Mostrar o passo a passo de todo este processo é enriquecedor tanto para pessoas que se interessam pelo negócio dos cosméticos bem como para potenciais clientes que se sentem incluídos no processo. As pessoas já tinham uma ligação com o produto muito antes de ele ter sido sequer revelado”, defende Andrei Terbea, um criador romeno que usa animação para analisar personagens e histórias do Youtube. Andrei tem mais de dois milhões de seguidores e foi nomeado para um Streamy Award, considerados a cerimónia de prémios para a nova geração pela revista Time na categoria de Animação. Nesta edição dos Streamy, The Beautiful Life of Jeffree Star, da autoria de Shane Dawson, está nomeado na categoria de Melhor Documentário.
Como salienta Andrei, “a série mostrou-nos tudo desde discutir o nome da paleta, escolher as cores, testar a fórmula, desenhar a embalagem. Todos testemunhámos a evolução de uma ideia para um produto finalizado. E um potencial cliente terá muito mais probabilidades de gastar dinheiro se se sentir incluído no processo. Levá-lo na viagem é muito mais cativante do que apresentar-lhe o produto acabado”.
Marcas independentes e inovadoras como a Jeffree Star Cosmetics, mas também a Glossier ou a Beauty Pie, posicionam-se de forma diferente em relação ao mercado e também em relação ao consumidor. A sua versão de transparência passa não só por revelar todos os ingredientes e processos que estiveram na origem do produto, mas por tentar estabelecer uma relação de proximidade com o potencial cliente. Neste universo onde o consumidor quer sentir empatia com a marca – e os rostos que a representam –, a paleta Conspiracy é mais do que um novo produto de maquilhagem. No mínimo é uma forma de marketing mais eficaz. No máximo é uma nova forma de nos relacionarmos com o que compramos.