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No Natal passado, o empreendedor e político com nacionalidade britânica Jimmy Lai conseguiu enviar três ilustrações relativas à época festiva para um colégio católico no estado norte-americano da Virginia. Preso desde 2020 em Hong Kong, o magnata dos media naquela região especial administrativa chinesa desenhou na cela Jesus Cristo na cruz e também Maria, enviando os desenhos para os Estados Unidos através de uma das suas maiores aliadas, April Ponnuru. Em compensação, a escola organizou a iniciativa “Postais para o Jimmy”, em que crianças e adolescentes enviavam mensagens de apoio ao dissidente. Um ano depois, a situação alterou-se radicalmente.
Na última segunda-feira arrancou o julgamento de Jimmy Lai. O homem de 76 anos, que nasceu na China continental e se mudou para Hong Kong num barco de pesca aos 12 anos, está acusado de conluio com forças estrangeiras e também de sedição. O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, Wang Wenbin, descreveu-o recentemente como sendo o “cabecilha” de uma rede que organizava “protestos anti-China” e um peão nas mãos de “agentes anti-China”.
Dono do jornal Apple Daily, que possuía uma linha editorial que criticava abertamente o Partido Comunista Chinês (PCC), Jimmy Lai tornou-se uma figura demasiado incómoda para o regime. Sob domínio britânico até 1997, Hong Kong passou a ser controlada por Pequim, tal como aconteceu com Portugal e Macau. E durante anos beneficiou de uma certa tolerância que era impensável na China continental, que resultou de um estatuto especial acordado com o Reino Unido. Não obstante, as autoridades de Pequim foram apertando a malha — e deixaram de tolerar certas liberdades.
A população de Hong Kong não ficou de braços cruzados perante a supressão de liberdades. Entre 2019 e 2020, milhares de pessoas saíram às ruas para protestar contra as últimas decisões do regime. Opondo-se igualmente à aprovação de uma lei que previa a extradição de suspeitos de crimes para a China continental, os manifestantes exigiam mais liberdade e algo impensável na lógica do partido: uma maior autonomia face a Pequim.
O jornal Apple Daily dava cobertura e apoiava a realização de manifestações, denunciando igualmente o regime chinês. Nada disto agradava ao Partido Comunista. Em março de 2021, o diário foi encerrado, aplicando um duro golpe à liberdade de expressão em Hong Kong. Sete meses antes, já Jimmy Lai tinha sido detido.
Jimmy Lai. O self made man que fugiu da China e construiu um império
Lai Chee-ying, o nome de batismo de Jimmy Lai, nasceu a 8 de dezembro de 1947 em plena guerra civil na China. Oriundo de famílias endinheiradas da região de Guangzhou, a situação económica no meio em que cresceu alterou-se radicalmente quando a revolução triunfoua e Mao-Tse Tung chegou ao poder em 1949: os pais acabaram por perder a fortuna amealhada ao longo de gerações.
Isso obrigou a que Lai Chee-ying começasse a trabalhar desde muito jovem numa estação de comboios. A sua função passava por carregar a bagagem dos passageiros. Quando estava a entrar na pré-adolescência, a China atravessava tempos difíceis com o Grande Salto em Frente, impulsionado por Mao-Tse Tung. A reforma agrária forçada, de que fazia parte o plano para transformar a China numa potência económica, acabou por falhar — e estima-se que cerca de 45 milhões de pessoas tenham morrido à fome em quatro anos.
Foi neste contexto económico e politicamente conturbado que Jimmy Lai passou os primeiros tempos da sua vida. Mas tudo mudou um dia, enquanto carregava bagagens na estação de comboios e um estranho lhe deu um chocolate. O jovem adorou e perguntou-lhe de onde é que tinha vindo aquele doce. Hong Kong foi a resposta — e começou aí o interesse de Lai Chee-ying por aquela localidade, na altura uma colónia do Reino Unido.
Numa autobiografia publicada em 2022, o magnata recorda que achava Hong Kong o “céu” — e a sua missão passava por lá chegar. Aos 12 anos o adolescente entrou às escondidas num barco de pescadores e conseguiu chegar ao destino com que sonhava. Mas não teve uma vida fácil: começou por trabalhar numa fábrica têxtil em turnos de 14 horas por dia.
Ainda assim, tudo espantava o jovem nascido nos tempos pós-revolução na China continental. Numa entrevista à Association of Mature American Citizens, Jimmy Lai recordou que chorou ao ver que tinha tantas escolhas diferentes para comer ao pequeno-almoço. E a dureza do trabalho também não o assustava; aliás, recordou aqueles tempos iniciais em Hong Kong como sendo “muito felizes”. “Eu sabia que tinha um futuro”.
Por sua vez, num editorial escrito no jornal canadiano The Globe and Mail, o filho de Jimmy Lai, Sebastien, relatou os primeiros anos da vida do pai: “Ele entendeu o que era viver numa autocracia. Ele fugiu da fome e das privações da China comunista nos anos 60 e, como jovem de 12 anos a viver sozinho em Hong Kong, ele construiu uma vida — primeiro a trabalhar numa fábrica”. Segundo o filho, isso ainda tem impacto na saúde do magnata, uma vez que o barulho constante da fábrica fez com que ficasse “surdo de um ouvido”.
“Ele disse-nos que, apesar das dificuldades por trabalhar muito quando era miúdo, nunca se sentiu pobre, porque as liberdades que encontrou em Hong Kong deram-lhe a oportunidade de viver. Ele sabia que, sem essas liberdades, ele não tinha nada”, continua Sebastien Lai.
A liberdade económica de que usufruía Hong Kong — contrariamente à comunista China continental — fizeram com que subisse a pulso. Deixando as máquinas de costura de lado, Jimmy Lai tornou-se gerente da fábrica onde começou por trabalhar aos 20 anos. Com um salário mais elevado, investiu ainda na bolsa e começou a acumular fortuna.
Após ser gerente, passou a empresário. Em 1975, comprou uma fábrica têxtil que estava na bancarrota. Isso levou-o a fazer várias viagens aos Estados Unidos, para tentar vender as camisolas que produzia. Foi naquele país que teve conhecimento de uma nova realidade — a do American Dream. A vida social intensa que tinha quando viajava para os EUA fez com que entrasse em contacto com vários homens de negócios. Um deles deu-lhe um livro que o marcou profundamente: O Caminho para a Servidão, do economista conservador Friedrich Hayek. A devoção pelo mercado livre explica que também tenha travado amizade com Milton Friedman, com quem chegou a fazer uma viagem à China continental.
“Esse livro mudou-me a vida”, confessou Jimmy Lai, que indicou que após a leitura de Hayek decidiu que queria enveredar pelo caminho do empreendedorismo. Nos Estados Unidos, corria o ano de 1981, decidiu que criar abrir a sua própria marca de roupa, vendendo a fábrica têxtil de que era proprietário. Chamou-lhe Giordano, o nome de uma pizzaria a que foi para tentar matar a fome causada por ter fumado erva, como relatou a revista Atlantic.
Apostando na fast fashion, Jimmy Lai entrou no mundo de retalho. Deixou de vender as roupas que produzia a outros, passando a gerir um negócio que o obrigava a desenhar as próprias roupas e depois também a vendê-las. Por sinal, a altura em que fundou a Giordano foi propícia, tendo surgido numa fase de forte crescimento económico na Ásia. Apesar de algumas dificuldades iniciais em afirmar-se, a marca ainda hoje existe e tornou-se um grande sucesso, convertendo o empresário num multimilionário.
O envolvimento nos media, o ativismo e a religião
Muito muda no final dos anos 80. A União Soviética colapsa e o mundo comunista repensa a sua abordagem. Na China continental, que Jimmy Lai já abandonara há cerca de 40 anos, antes mesmo da queda do Muro de Berlim, as fundações do regime chinês tremeram — e milhares de pessoas saiam à rua em protestos, a que o Partido Comunista respondeu com pulso firme, tendo ficado para a história o massacre de Tiananmen resultante da repressão.
Jimmy Lai chegou a financiar os protestos contra o regime chinês no final da década de 80. Ainda que Pequim tivesse esmagado as manifestações, isso foi o ponto de partida para o empresário entrar no mundo dos meios de comunicação social. A sua primeira experiência na área é a criação do seminário Next, sendo que, em 1995, lançou o diário Apple Daily. A ideia por detrás do nome, confessou o magnata, baseava-se em Adão e Eva, na qual a macieira era a árvore da sabedoria.
Ganhando o estatuto de tabloide — não eram raras as manchetes com escândalos sexuais —, o Apple Daily cedo adotou um tom crítico relativamente ao regime chinês, ao mesmo tempo que elogiava o modo de vida do Ocidente, em particular o capitalismo. No entanto, apesar de na altura Hong Kong ainda estar sob controlo do Reino Unido, os empresários e as elites políticas temiam que o jornal acabasse por prejudicar as relações com Pequim, como relatou o New York Times.
O desconforto ainda ficou mais patente em 1997. Naquele ano, o Reino Unido concordou transferir a soberania de Hong Kong para a China. Contudo, pouco mudou nos primeiros tempos. Pequim comprometeu-se com Londres a adotar o lema “um país, dois sistemas”, governando a região com uma administração especial.
1997 também foi o ano em que se tornou católico — e a sua conversão está relacionada com a entrega de soberania de Hong Kong à China. Com um percurso laico, foi batizado uma semana antes da transferência de soberania pelo cardeal de Hong Kong, Joseph Zen. O seu padrinho de batismo foi William McGurn, um dos autores dos discursos do antigo Presidente dos Estados Unidos, George W. Bush.
Ao Wall Street Journal, William McGurn recordou o dia de batismo do seu afilhado. “Eu confesso que olhei para ele e me perguntei o quanto ele acreditava [em Deus]. Havia tantas razões para ele se converter. Muitos dos seus amigos eram católicos. Mesmo quando não era crente, ele admirava as religiões e o bem com que tinham contribuído para a sociedade”.
Quem também contribuiu para a conversão ao catolicismo de Jimmy Lay foi a sua atual mulher, Teresa, que recebeu uma educação católica. O casal conheceu-se em 1989, mas manteve a relação sempre longe dos holofotes, não sendo conhecidos grandes detalhes.
As proximidades à direita norte-americana e as perseguições políticas do regime chinês
Defensor do modo de vida do Ocidente e do capitalismo, Jimmy Lay tinha a utopia de transformar Hong Kong numa espécie de paraíso liberal — com poucos impostos, mas com um débil Estado social. Essas ideias políticas aproximaram-no do Partido Republicano norte-americano, principalmente da fação dos libertários. Recorde-se que o seu padrinho de batismo era republicano e homem de confiança de George W. Bush.
Outro dos encontros que teve foi com John Bolton, ex-conselheiro de segurança nacional do antigo presidente americano Donald Trump, e que também foi embaixador dos Estados Unidos nas Nações Unidas. O diplomata recordou à revista Atlantic o momento em que conheceu o empresário. “Fiquei incrivelmente impressionado pelo Jimmy. Ele tinha uma visão para Hong Kong”.
Num contexto de aumento de tensão entre a China e os Estados Unidos, as relações entre republicanos, que têm adotado uma retórica cada vez mais dura contra o regime chinês, e Jimmy Lai geravam apreensão em Pequim. E estas ligações foram bastante importantes em 2019, quando irromperam os primeiros protestos nas ruas de Hong Kong. O magnata foi recebido, em julho daquele ano, por várias figuras importante das administração Trump: o ex-vice-presidente, Mike Pence, o ex-conselheiro nacional John Bolton, o ex-secretário de Estado Michael Pompeo e os senadores republicanos Ted Cruz, Cory Gardner e Rick Scott.
Apoiando e financiando os protestos contra Pequim, o regime chinês queria travar que Jimmy Lai tentasse reunir apoio dos Estados Unidos e doutros países com que mantinha relações tensas. Por isso, a China elaborou e aplicou uma nova lei em Hong Kong — a da Segurança Nacional —, que incluía penas de prisão perpétua por “atos de secessão, subversão, terrorismo e conluio com forças estrangeiras para pôr em risco a segurança nacional”.
É à luz desta legislação que, em agosto de 2020, Jimmy Lai foi detido por “conluio com forças estrangeiras”. O projeto do jornal é meses depois desmantelado.
Tendo em conta a lei da Segurança Nacional, Jimmy Lai deverá ser condenado à prisão perpétua. O dissidente político esteve detido enquanto aguardava por julgamento, que começou na passada segunda-feira. Vai agora, num processo que deverá demorar quase três meses, comparecer perante três juízes especialmente nomeados para julgar casos de segurança nacional, mas sem júri, o que representa um grande afastamento do costume dos processos judiciais da cidade.
Os Estados Unidos, a União Europeia e o Reino Unido já apelaram à libertação de Jimmy Lai, acusando a China de levar a cabo uma perseguição política. Em resposta, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês considerou estas tomadas de posição como “irresponsáveis”, sendo contra o “espírito do Estado de direito, do direito internacional e das básicas normas das relações internacional”. E Wang Wenbin garantiu que o processo judicial não é “politicamente motivado”.
Durante os três anos que esteve detido, o seu padrinho de batismo contou que a fé ocupou um grande espaço na sua vida. “Durante muitos dias, o Jimmy passou muito do seu tempo a cultivar a sua nova vocação enquanto artista cristão”, refere William McGurn. “Ele é bastante bom, mesmo estando limitado a desenhar com lápis em papel normal.”
“Ao longo do tempo, as autoridades [chinesas] perceberam que isto podia simbolizar uma ameaça e, por isso, já não lhe permitem partilhar a sua arte com os visitantes e correspondentes”, lamentou William McGurn. Este ano, Jimmy Lai não pôde decerto enviar desenhos festivos para os Estados Unidos — e é provável que as suas liberdades sejam ainda mais restringidas no derradeiro momento em que for declarado culpado.