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A enorme piscina do hotel Ritz-Carlton Abama estava pintada de vermelho pelos holofotes da festa. À volta, numa zona mais resguardada, um batalhão de empregados de mesa circulava apressado, carregando bandejas cheias de pequenos pratos com comida, copos de vinho e cerveja. Serpenteavam por entre uma multidão alegre e bem vestida que se desdobrava em conversas ligeiras. Toda a gente falava e ria mas num canto mais afastado, um rapaz parecia estar meio deslocado. De jaleca atirada por cima do ombro e fato azul escuro, João Oliveira não largava o telemóvel.
“Já recebi centenas de mensagens!”, disse o jovem que, minutos antes, tinha acabado de entrar no Guia Michelin. “Ainda nem consegui falar com a minha equipa”, acrescentou, sem tirar os olhos do pequeno ecrã.
Quem é este rapaz tímido, que gosta de trabalhar com peixe e que desde o ano passado era tido como um dos portugueses mais bem posicionados para conquistar as tão desejadas (e controversas, para alguns) estrelas? Há poucos meses o Observador passou um dia com ele mas, mesmo assim, havia muito por descobrir. “Vamos lá falar então, mas olha que daqui a nada vou ter de ligar à minha equipa”, disse o chef João enquanto punha o smartphone no bolso.
Perdeu-se um veterinário, ganhou-se um cozinheiro
“Lembro-me como se fosse hoje!”, diz o cozinheiro de 30 anos — celebra o 31.º aniversário no início de dezembro — com um sorriso na cara. “Apanhava o comboio todos os dias às 6h37, ia para São Bento para depois seguir rumo a Cedofeita”. Há 15 anos, quando João ainda era um adolescente e começara a estudar cozinha, esta era a rotina diária.
O curso obrigava-o a ter aulas todos os dias e, ao fim-de-semana, a seguir para o estágio. Todos os outros alunos seguiam esta rotina mas, para João, ela era quase impossível de cumprir. O chef jogara à bola no clube “lá da terra” — Valongo, mais concretamente — mas uma lesão grave obrigou-o a passar de jogador a árbitro (já o pai o tinha sido). O que é que isto tem a ver com os seus horários? Tudo, já que o motivo que o impedia de ir para a cozinha todos os fins-de-semana era, precisamente, o hobby da arbitragem. “Não dava para conciliar, tinha de apitar todos os sábados e domingos”, por isso adotou uma alternativa: todos os dias da semana, quando as aulas acabavam, seguia para a cozinha, a tempo de apanhar o serviço de jantar. “Era complicado, levantava-me todos os dias às seis e ficava a trabalhar até às duas, três da manhã.”, explica. Passou um ano neste registo.
O restaurante em questão chamava-se Sopa de Letras, “ficava no Porto, mas já fechou”. Foi aqui que o atual chef do Vista (o restaurante de fine dining do Bela Vista Hotel & Spa, em Portimão) entrou, pela primeira vez, no mundo da cozinha profissional. “Era um chef brasileiro que estava à frente daquilo”, relembra. Hoje olha para essa experiência com bons olhos, mas na altura, quando o tal cozinheiro o deixou sozinho durante o mês de agosto, a opinião era outra: “Quando mo disse só me apetecia esganá-lo!”, conta entre risos.
A conversa seguia animada. De cinco em cinco minutos o chef ignorava as várias chamadas e mensagens que lhe caíam no telemóvel, mas houve um momento em que, por uns breves segundos, a sua cara transformou-se. “Quando é que começou a sua ligação com a comida?” De rosto mais sério, João começou a falar da família.
“Quando era pequeno a minha avó ficou acamada. Ela era diabética, muitas vezes tinha de ser eu a dar-lhe as injeções de insulina”, explica. A casa onde vivia era longe da dos avós (o avô acabou por ir parar a uma cama também) por isso, muitas vezes a mãe pedia-lhe para ir cuidar dos anciãos, já que não conseguia ter tempo para o fazer. À conta destas visitas começou a fazer-lhes sopa com alguma regularidade. “Uma sopa esta semana, outra na semana a seguir… Aos poucos fui ganhando interesse por aquilo que estava a fazer.” A paixão pela comida começou a ganhar preponderância e isso fez com que o sonho de ser veterinário ficasse pelo caminho — “Gostava muito de animais e até tinha notas para isso!”
O ambiente mudou quando fomos simpaticamente interrompidos duas vezes. Primeiro apareceu o chef Benoît Sinthon do Il Gallo d’Oro, restaurante no Funchal com duas estrelas Michelin (o Guia costuma convidar, por cordialidade, os cozinheiros com mais de uma estrela). “Algum de vocês arranja-me um cigarro?”, perguntou no seu português com toques de francês. Logo de seguida — talvez para aproveitar a quebra no diálogo –, João aproveitou para fazer uma chamada. “Importas-te que ligue aos meus cozinheiros num instante?”, disse. A resposta foi afirmativa, claro, e o chef procurou um espaço mais recatado para fazer o telefonema. Minutos depois regressa com um sorriso na cara. “Estive a falar com eles em alta voz. Já acabaram o serviço por isso disse-lhes que hoje podem fazer o que quiserem: usar o telemóvel dentro do restaurante, gritar, berrar, beber champanhe… Eles também merecem festejar, não é?” Depois do feliz interregno, voltámos ao seu trajeto no mundo dos tachos.
“Um ano depois de ter entrado no Sopa de Letras decidi sair”, conta. Na verdade, não foi só desse primeiro espaço que saiu: também abandonou a zona do Porto. “Na Régua havia um restaurante chamado Douro In, que já fechou”, avança. Os proprietários desse espaço ofereceram a João o lugar de chef que vinha “com muito boas condições”, como “liberdade criativa” e um bom salário. Apesar disso, a sua estadia aqui foi curta: “Queria aprender mais, senti que aquilo não era para mim”. E foi assim que acabou por ir parar à Casa da Calçada, hotel em Amarante onde fica o restaurante Largo do Paço (onde já tinha feito um curto estágio, quando ainda estudava).
Aprender, aprender, aprender
Com pouco mais de 20 anos, João entra no Largo do Paço pela mesma altura em que o chef Ricardo Costa (que está hoje no The Yeatman, em Gaia, onde tem duas estrelas Michelin) assume a liderança dessa cozinha. “A partir daí fiquei sempre ao lado do chef Ricardo.”
Motivado pela vontade de aprender mais, “sempre mais”, João Oliveira foi-se afirmando, alcançando o posto de sub-chef em pouco tempo. No total, passou lá quatro anos e dez meses, abandonando o restaurante pouco depois da saída de Ricardo Costa, que foi abrir o Yeatman. “O chef saiu primeiro, eu ainda lá fiquei a fazer a transição para o Vítor Matos, antes de ir ter com ele”, explica.
Seria então em 2010 que se dava a mudança para o restaurante onde diz ter crescido mais. A afirmação do Yeatman foi fulminante, bastou um ano de trabalho para ser reconhecido com a primeira estrela. A carreira de João também seguiu o mesmo caminho, de tal forma que cinco anos mais tarde começou a pensar no futuro. “Na vida chegas sempre a uma altura onde tens de fazer decisões: eu escolhi sair.” Foi assim que João seguiu rumo ao sul, para o Vila Joya.
“Antes de ir para lá sabia que ia descer de posição. Era sub-chef em Gaia, lá seria apenas chef de partida, mas não quis saber. Eu queria era aprender.” Determinado, combina consigo mesmo que ficaria no restaurante de Dieter Koschina (duas estrelas Michelin) “uns dois ou três anos”, mas a vida trocou-lhe as voltas: passados sete meses o telefone toca e, do outro lado da linha, surge uma proposta. “Aprendi muito com o Koschina e com o Matteo [Ferrantino, o braço direito do mestre austríaco], mas o Bela Vista chegou-se à frente”, conta.
O hotel em Portimão estava prestes a abrir e precisava de alguém que comandasse o seu restaurante de fine dining: João foi o escolhido para essa posição. Com gargalhadas e tilintares de copos como pano de fundo, a festa em Tenerife continuava e não mostrava sinais de abrandar, João Oliveira explicou que lhe ofereceram “ótimas condições” e deram luz verde para que fizesse do projeto algo muito seu, com liberdade total. Era demasiado bom para recusar, por muito que tivesse planeado esperar “mais uns anos” antes de se assumir como chef. Em 2015, portanto, João Oliveira veste a jaleca do Vista pela primeira vez.
O caminho para as estrelas
Por muito que a estrela Michelin só tenha chegado há poucos dias, João já ouvia falar dela desde o início. “Logo no primeiro ano diziam que ia ganhar uma estrela, mas eu sabia que não”, conta. Não desejava fazer parte do Guia? Nada disso: “Querer toda a gente quer”, afirma. “Se perguntares a um jogador de futebol se ele quer ser o melhor do mundo e ele te disser que não, é óbvio que vai acabar por ir parar à distrital”. Afinal, “quem é que não quer ter o reconhecimento de um guia mundial?”.
Acontece que a equipa ainda não era “estável”. Foi montada do zero, o projeto era novo e estas coisas demoram tempo a alcançar a solidez e consistência necessária para almejar ir mais longe. “No segundo ano as coisas ficaram mais consistentes”, afirma. João reorganizou a equipa e admite que trabalharam “muito bem”. Talvez, por isso, em 2016 todos dessem como certo que chegava à estrela. Insistiram de tal forma que até se tornou desconfortável.
“Toda a gente que ia lá perguntava ‘é este ano, é este ano?’ ou ‘vais ganhar, tu mereces não uma mas duas’. A pressão era diária, constante. Tivemos de filtrar isso”, explica. João admite que o seu trajeto lhe deu “estaleca” para proteger a equipa, resguardá-los da pressão. “Se eles só tivessem esse objetivo na cabeça, acontecia o que acontece em muitos restaurantes em Portugal. Se não ganhas a equipa fica desmoralizada e vai-se toda embora.” No final, tudo correu bem.
“Recebi o convite para assistir à Gala há algum tempo”, explica o chef. Foi-lhe entregue diretamente, ninguém sabia de nada: nem a sua equipa nem o pessoal do hotel. “Posso ter passado por mentiroso, tudo bem, assumo isso publicamente, mas fiz isto para me proteger e à minha equipa”, desabafa. “Proteger os meus é o que mais me interessa.” No dia 22 de novembro, quatro dias depois de ter finalmente dado a novidade, a vitória bateu à porta.
João confessa-se orgulhoso do trabalho que o Vista tem vindo a desenvolver. Sente que este ano trabalharam “muito bem” e que foram “muito consistentes”. Neste momento, a “extensa investigação” que dedica aos produtos do mar são, segundo o próprio, a base de todo o trabalho que têm desenvolvido. “Nós experimentamos muito, quero fazer coisas realmente diferentes. Sinto que consegui desenvolver um trabalho muito bom dentro desse campo”, conclui.
Para o jovem cozinheiro, outro elemento fundamental para esta conquista foi o “espírito de equipa” que une o pessoal de cozinha. Este tema veio à tona a propósito… do futebol, novamente. O confesso adepto do Futebol Clube do Porto diz que apesar de se ter lesionado há anos e de já ter pousado o apito em definitivo (“desisti aos 19”), não abriu mão do futebol. “Quase todas as semanas pego na minha equipa de cozinha e jogamos contra a do Bon Bon ou a do Monchique [outros restaurantes no Algarve]”. Se esses colegas de outras casas não tiverem disponibilidade, o adversário passa a ser a equipa de sala. O que mais importa nisto tudo? “É o convívio, sem dúvida. É o que de melhor levamos connosco”, diz. As gargalhadas que advêm dessas “jogatanas” também são importantes, claro: “Ficamos todos partidos, mas passamos o dia a seguir a gozar uns com os outros — ‘ah ontem meti-te um cabrito’. Isto fortalece imenso uma equipa, as pessoas juntam-se, conversam, brincam…” Mas, e no meio de tudo isto, onde fica a vida pessoal?
“Se não tivesse a minha mulher comigo, do meu lado, ia ser muito complicado”, confidencia João. Quando se mudou para o Vila Joya, ela ainda morava “lá em cima”. Depois da mudança, passados “quatro ou cinco meses”, “despediu-se e veio para Portimão”.
Entretanto arranjou novo emprego, — é enfermeira no hospital de Portimão — e “está muito bem”, “mora a dois/três minutos de casa”. Este grande apoio é tido pelo chef Oliveira como essencial porque “se uma pessoa não estiver bem psicologicamente” e “se não tiver uma boa estrutura”, fica muito difícil passar “tanto tempo na cozinha” sem pensar no que ficou lá fora. “Podes fazer-te de duro, mas não é a mesma coisa.”