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KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

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João Pedro Marques sobre as propostas para devolver património às ex-colónias. "Essas pessoas querem manipular a História"

Fala de Joacine como uma "justiceira" que se acha uma heroína. Diz que "não é possível reverter a História". "Onde é que isto parava?". O Sob Escuta com o historiador João Pedro Marques.

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Devolver ou não obras de arte às ex-colónias? Em todos os casos ou só em situações de pilhagem? E Portugal também tem direito a pedir a restituição de património a França por causa das invasões francesas? As gerações atuais devem pedir desculpa por atos das gerações anteriores? De tudo isto falou o historiador João Pedro Marques, entrevistado esta semana no Sob Escuta, programa de grande entrevista da Rádio Observador (pode ouvir a entrevista aqui ou ver o vídeo aqui).

Doutorado em História pela Universidade Nova de Lisboa, ex-presidente do Conselho Científico do Instituto de Investigação Científica Tropical, João Pedro Marques é um dos maiores especialistas em História Colonial e estudos sobre a escravatura, sendo também autor de vários romances e colunista do Observador.

Nesta entrevista, aponta o dedo à mistura entre os ativistas justiceiros e o sentimento de culpa da população pelos malefícios do passado. Garante que recusaria fazer parte de uma comissão científica para analisar a eventual restituição de património às ex-colónias que tivesse de integrar na sua composição ativistas antirracistas ou racistas assumidos. E admite que não é possível contar a História sem ser tendencioso, mas diz que há formas de reduzir a subjetividade. “Quando eu narro a História do ponto de vista dos portugueses, dos ocidentais e dos europeus, que não conheciam nada daquilo que foi descoberto, então é um descobrimento. Não tenho de narrar a História do ponto de vista dos africanos. Não é preciso ter medo da palavra.”

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A ideia de devolver peças de arte e artefactos oriundos de ex-colónias portuguesas aos seus países de origem é uma proposta do Livre e da deputada única do partido, Joacine Katar Moreira. O PAN defende uma ideia semelhante (está no programa eleitoral). Isto faz sentido?
Depende do ponto de vista. Por um lado, faz um sentido político. A extrema esquerda internacional tem isto na sua agenda e já houve propostas semelhantes, o assunto tem sido debatido no Reino Unido, em França e na Alemanha. Este é um objetivo de há uma década para cá e evidentemente teria de chegar a Portugal por intermédio de pessoas da extrema-esquerda, que não faziam segredo disto. Está no programa eleitoral. Agora, se faz sentido devolver peças? Na minha opinião, em casos onde houve manifesta pilhagem, roubo, apropriação violenta de certo tipo de peça fará sentido. O “receptador”, neste caso o país, não poderá ficar com aquelas peças que foram roubadas. Li no Diário de Notícias a opinião do diretor do Museu de Etnologia, onde eu trabalhei nos primórdios da minha carreira de investigador — era lá o Centro de Estudos Africanos e Asiáticos — e tenho uma ideia muito superficial do que por lá existe. Ele dizia que a maior parte daquelas coleções não resultaram de apropriações violentas, foram obtidas por processos normais e nesses casos não faz sentido nenhum. Se aceitarmos o princípio generalizado da restituição de peças aos pontos de origem abrimos uma Caixa de Pandora.

Se entrarmos no Museu do Louvre ou no Museu Britânico podemos ser levados a pensar nesta questão das devoluções. Há coleções riquíssimas de arte egípcia, africana ou asiática. O que é que a eventual devolução de arte ou artefactos poderia restituir aos povos?
O princípio genérico da restituição leva-nos longe demais, porque nesse caso tudo poderia ser restituído. Não apenas aquilo que os países ocidentais, que foram colonizadores, têm nos seus acervos museológicos. Mas, por outro lado, podia inverter-se a lógica e tudo aquilo que existe nos países africanos ou americanos, que foi levado para lá pelos países ocidentais, poderia ser devolvido. Se começamos a restituir ao produtor inicial de cada peça, então, pensem no caso português: não teríamos legitimidade para exigir aos franceses a restituição do que cá pilharam durante as invasões napoleónicas, por exemplo? E retroativamente, podemos chegar aos romanos…

Mas não temos, no caso das invasões francesas?
Não. Não acho que tenhamos.

Nem quando entramos nas igrejas e notamos os rombos nos painéis de azulejos, o buraco por onde se retiraram os nossos tesouros?
Sim, evidentemente que foi um abuso. Foi uma consequência e uma decorrência da guerra e nas guerras há sempre enormes abusos. Agora, não é possível reverter tudo isso e existe aqui a aspiração de muitas destas pessoas de reverter a História, o que é uma coisa completamente absurda. É milenarista. Esta ideia de que há de chegar um ponto em que a segunda vinda de Cristo à Terra repõe a justiça, reina durante mil anos em paz, castigando os maus e recompensando os bons, quer dizer… estas pessoas têm este pensamento milenarista, que vão finalmente pôr ordem e justiça nos assuntos terrestres. Isto não é possível. Não faz sentido, até porque… onde é que isto parava? Onde é que paravam as restituições?

Não faz apenas sentido por ser impossível ou também porque seria errado?
Se houve peças que foram roubadas não seria errado restituí-las, desde que os seus donos originais ou quem os representa atualmente exigissem essa restituição. Isso acho que sim, que deve ser restituído. Agora, eu vejo o que se passa em França. O presidente Macron há uns tempos fez uma visita ao Burkina Faso, onde fez promessa de restituição de peças museológicas. Depois, nomeou-se uma comissão que só tem duas pessoas: um negro (homem) e uma senhora branca, mais politicamente correto não podia ser. Essas pessoas querem que sejam restituídas todas as peças e fazem uma inversão do ónus da prova, quer dizer, o detentor atual tem de ser capaz de provar que adquiriu aquelas peças por meios legítimos. Na maior parte dos casos isto é absolutamente impossível, porque não há documentação. São coisas dos séculos XVIII e XIX. Não está atestado por testemunhas a forma como aquelas coisas foram adquiridas.

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Essas peças que estão no Museu de Etnologia, em Portugal, sabemos de onde vêm?
Não sou museólogo e não conheço o catálogo. O meu conhecimento resulta de conversas que fui tendo com o Benjamim Pereira (antropólogo e fundador daquele museu, recentemente falecido) e arqueólogos. A ideia que tenho é que a coleção resulta dos estudos, das comissões e daquelas equipas de trabalho que estiveram no então Ultramar português a trabalhar. É a recolha de anos e anos de trabalho.

E a quem seriam restituídos esses objetos?
Esse é um outro problema enorme sobre o qual estas pessoas não pensam. A quem é que se vai entregar? Tanto quanto eu percebo, estes assuntos não são levantados pelos próprios interessados na devolução, mas são suscitados por políticos ocidentais, a deputada no Livre neste caso concreto e por muitos outros, que aqui no Ocidente levantam este tipo de questão. É um Ocidente cheio de complexos de culpa, que quer ver-se livre dessas eventuais provas de abusos passados.

Mas quase que impondo isso a esses países?
Exatamente, e que muitas vezes não estão em condições de receber esses objetos…

[Joacine Katar Moreira] acha-se uma ponta de lança, alguém que como uma heroína nacional quer ressarcir a África daquilo que lhe foi retirado, independentemente do contexto em que foi.

Não oferecem condições para preservar essas obras?
Não. Não estão em condições para receber. Há pouco estava a ler que uma das consequências daquela decisão do presidente Macron e dessa sua vontade de devolução de peças acabou por redundar na devolução ao Benim de 26 estátuas ou máscaras. Mas o Benim vem dizer que não tem condições para as receber. De um momento para o outro, criou-se uma dificuldade que não existia, porque muitos daqueles países aceitavam esta situação pacificamente, nalguns casos e não em todos. Noutros casos há devoluções que levantam problemas em termos de estabilidade política. Lembro-me de uma situação relatada por um ex-diretor do Museu Britânico, sobre a devolução de uma peça arqueológica do século VI a.C. ao Irão, o Cilindro de Ciro. Talvez seja a primeira relação de Direitos Humanos que se conhece. É um cilindro em barro, com escrita cuneiforme [um tipo de escrita com objetos em formato de cunha]. O Irão queria receber aquela peça, porque se acha no direito a ela. Depois de muitas idas e vindas e anos de discussão, o Museu Britânico emprestou a peça para uma exposição no Irão… foi um tumulto! Em torno daquela peça fizeram-se manifestações de apologia e a louvar o Irão pré-islâmico. Uma peça persa do século VI a.C., que nada tem a ver com o Irão de hoje. Houve manifestações, muita gente presa, espancamentos e a própria diretora da exposição foi presa, porque se fazia um elogio àquilo que não é islâmico.

Ou seja, com esta ideia de devolver estes objetos, que no fundo estão situados numa época, num tempo específico, que vieram para Portugal neste caso, também numa época e num tempo específico, estamos a tentar expiar os nossos pecados através desta devolução? É isso que no fundo tudo isto encerra?
Eu sinto que sim. Acho que há aqui duas valências, chamemos-lhes assim. Por um lado, a dos ativistas negros, como é o caso de Joacine Katar Moreira, que — provavelmente, eu não a conheço pessoalmente — se acha uma ponta de lança, alguém que como uma heroína nacional, quer ressarcir a África daquilo que lhe foi retirado, independentemente do contexto em que foi. Temos, por um lado, isso: justiceiros. E depois temos boa parte da população que tem um sentimento de culpa muito grande relativamente ao que foi o passado e que está convencida que o homem branco, neste caso concreto o português, é o culpado de milhares de malefícios. Junto destas pessoas há um sentimento de culpa muito grande que as torna permeáveis à aceitação deste tipo de manobras de expiação de antigas culpas ou malfeitorias ou violências, junta-se aqui o útil e o agradável…

Mas fazê-lo não é também apagar a memória do domínio colonial, que aconteceu de facto, o que acaba por ser uma contradição com aquilo que defendem estes mesmos grupos, de que essa memória não deve ser apagada e deve ser assumida pelos países?
Claro que sim, isto está cheio de contradições. Até porque, no fundo, máscaras africanas que tenham sido produzidas no território da atual Angola, ou Moçambique, também fazem parte da História de Portugal. Nós vivemos num mundo inter-relacional, em que estas coisas se sobrepõem… Oh pá, isto está cheio de incoerências, olho para esta reivindicação e penso assim: é curiosíssimo porque estas mesmas pessoas são as que fazem a apologia do mundo sem fronteiras, do mundo inteiramente aberto, onde a emigração seja possível, a fixação das pessoas seja possível onde elas desejarem fixar-se, que aí possam ter os direitos dos cidadãos desses países. As pessoas que defendem esta filosofia no que diz respeito à emigração humana são as mesmas que depois querem um universo confinado no que diz respeito aos artefactos. Aí já são nacionalistas do ponto de vista da posse. No mundo globalizado, onde tudo está aberto e acessível, fará sentido nacionalizar e reivindicar a posse exclusiva de uma determinada coisa?

“A que propósito estão ativistas antirracistas ali?”

João Pedro Marques é historiador, é um cientista da História, a proposta do Livre prevê que a comissão multidisciplinar que vai identificar, ou que iria identificar as obras em questão, e onde estão e em que condições foram trazidas para cá, incluiria historiadores, museólogos, arqueólogos, mas também um ativista antirracista…
Vários ativistas, porque é usado no plural!

Os técnicos e cientistas que conhece desta área sentir-se-iam confortáveis em fazer parte de uma comissão multidisciplinar que não está apenas vocacionada para a ciência, mas também para esta outra questão, que é a do racismo?
Eu não me sentiria confortável, digo-lhe já.

Não faria parte desta comissão.
Não faria parte dessa comissão. Ativistas antirracistas ou racistas assumidos não têm lugar numa comissão dessas.

Porque deve ser uma comissão científica, é isso?
Exatamente, e técnica. Agora, conheço muitas pessoas, muitos colegas, antropólogos, etc, que estariam perfeitamente confortáveis porque são eles próprios ativistas antirracistas.

Se admitirmos o princípio da devolução daquilo que foi mal adquirido temos sempre de devolver, mesmo que seja importante para nós.

E põem esse ativismo à frente da ciência?
Exatamente. Agora, é evidente que isto é gato escondido com o rabo de fora, revela perfeitamente o que se pretende. A que propósito estão ativistas antirracistas ali? Aquilo não é lugar de debate de racismo e antirracismo; é pura e simplesmente uma determinação técnica sobre se aquelas peças A, B ou C foram adquiridas por meios legítimos, ou não foram, e se é adequado, havendo quem as peça, devolvê-las ou não.

E que importância podem ter essas peças do ponto de vista histórico, antropológico…
Isso eu diria que já estava num plano secundário. Para nós têm importância, por isso é que as recolhemos e as temos, não é? Fazem parte de coleções, do espólio do trabalho de equipas que estiveram no terreno. Agora, se quem reivindica considera que aquilo tem uma importância, por exemplo, em termos de identidade nacional ou étnica, se admitirmos o princípio da devolução daquilo que foi mal adquirido, temos sempre de devolver, mesmo que seja importante para nós.

O facto de essa eventual comissão ser formada também por essas pessoas mancha ou contamina essas devoluções que fariam sentido?
Completamente! Porque aí era manifesto. A ótica e a forma como as decisões eram tomadas eram condicionadas politicamente pelos objetivos antirracistas dos ativistas que fizessem parte dessa comissão.

Seria política e não ciência.
Claro, totalmente. Aliás, a proposta é política e tem pouco a ver com isso, não é? É como falávamos há pouco, o esforço de ressarcir… mas que é sempre muito seletivo, porque estas pessoas querem ressarcir e querem compensar — a palavra certa é “reparar” —, querem reparar povos, regiões, que na sua ótica foram brutalizados e espoliados no passado. Mas só certos povos e certas regiões, porque estas pessoas param ali naquela fronteira, neste caso concreto é a África e os africanos, ou eventualmente os povos que foram colonizados pelos ocidentais entre os séculos XV e XX. Mas não olham, por exemplo, para a Ásia Central ou para o Extremo Oriente, ou para Portugal e para os portugueses, que foram alvo de imensas brutalidades e violências. Isso já não lhes interessa; essas violências já não fazem parte do seu objetivo de correção.

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Faz sentido olharmos para tudo isto, para os artefactos, para a escravatura e para o mercado negreiro com as lentes de hoje?
Não. Ou seja, nós temos que olhar para estas coisas com os olhos atuais, mas não com o espírito de hoje, não com os valores, com os conceitos de hoje. É necessário à pessoa fazer um esforço de viagem no tempo e tentar perceber em cada uma das épocas que estamos a analisar como é que as pessoas pensavam e concebiam as coisas nessas alturas.

Mas nós conseguimos pensar como uma pessoa do séc. XVI ou XVII pensaria?
Claro — dentro de certos limites — porque temos documentos e sabemos como certo tipo de coisas eram concebidas, como eram discutidas, quais eram os problemas que aquilo levantava.

Qual era a normalidade na altura e qual é a normalidade de hoje?
Repare, a escravatura sempre causou perturbação, incómodo, aversão na cultura ocidental, desde os gregos antigos, sempre tentaram arranjar uma forma de conseguir explicar, de conseguir justificar racionalmente — Aristóteles, por exemplo — a existência da escravidão.

Muitos destes grupos de extrema esquerda que injetam este tipo de problemática na nossa sociedade reproduzem aquilo que é feito nos Estados Unidos, mas obviamente que é completamente deslocado. A problemática é outra.

Mas se calhar para os portugueses era uma realidade um bocadinho mais distante porque não acontecia cá…
Pouco acontecia cá, mas sobre o primeiro grande desembarque de escravos em Lagos, em meados do séc. XV, o Gomes Eanes de Zurara deixou uma crónica que tem uma parte da descrição da chegada desses escravos e ele está impressionadíssimo com aquilo. É lancinante na descrição dos pais e filhos a serem separados, os gritos, o choro, ele está incomodado com aquilo, está impressionado, está comovido, aquelas pessoas “são filhos de Adão e Eva como nós”, diz. Aquilo é uma coisa que corta o coração. Estas pessoas impressionavam-se tanto como nós, mas tinham outra forma de equacionar a questão e de a resolver. Como é que ele justifica isso? O Zurara diz que, no fundo, é uma coisa que dói, é triste, mas que acaba por ser benéfico para todos, para aquelas pessoas que estavam muito atrasadas, não conheciam nem fogo, nem vinho, nem roupa para se cobrirem, portanto vinham, através da chegada a Portugal, receber essa civilidade, e para os portugueses que assim obtinham mão-de-obra da qual havia falta aqui no território. Depois, o grande tráfico de escravos e a grande escravidão muito violenta que foi feita sobretudo para o Brasil, entre a Angola e o Brasil, e para outras zonas da América, essa estava longe dos olhos da maior parte dos portugueses. Os ingleses tinham uma expressão, e nós também temos…

Longe da vista…
Para além dessa, temos outra que o Chico Buarque usa numa música que é a “sul do Equador”… É qualquer coisa como: “Não há pecado a Sul do Equador”, o que se passa para lá do Equador era um outro mundo diferente e nós aqui não tínhamos essa perceção, nem os abolicionistas ingleses tinham bem a perceção do que era a escravidão, por exemplo, no Mississipi, no Alabama, no sul dos Estados Unidos, não sabiam, só quem vivia lá e presenciava aquilo, aquela brutalidade.

Mas essa é em território norte americano, é ai que pode residir também alguma diferença entre a forma como os Estados Unidos lidam com isso ainda hoje e como é que nós, portugueses, lidamos com isso. Havia escravos em Lisboa, mas…
Não, no séc. XIX acabaram. A Lei do Marquês de Pombal que extingue a escravidão é de 1773, portanto mantêm-se aqueles escravos que ainda eram vivos, mas todos os que nascessem a partir dessa lei passariam a ser livres, portanto desaparecem. E sobre os  escravos que vinham de fora, como também era proibido trazer, vi muitas vezes documentação, requerimentos para permitir que alguém que viesse do Brasil com escravos pudesse desembarcar… Senão seriam imediatamente libertados assim que tocassem em solo nacional. E foram! Lembro-me de uma notícia de um jornal do Porto de um escravo que saltou do navio e veio a nadar até ao Porto e foi libertado. Portanto, para nós é uma realidade muito distante. Nos Estados Unidos não, eles foram no séc. XIX o maior depósito de escravos do hemisfério ocidental, chegaram a ter perto de 4 milhões, no período em que se desencadeou a guerra civil. E têm lá a decorrência e as consequências dessa extensa escravidão. Nós não temos. Muitos destes grupos de extrema esquerda que injetam este tipo de problemática na nossa sociedade reproduzem aquilo que é feito nos Estados Unidos, mas obviamente que é completamente deslocado. A problemática é outra.

Devemos pedir desculpa pelo passado?

Na questão do património, mas também em relação à escravatura, aos degredos, aos autos de fé, os países deviam pedir desculpa?
Os países devem pedir desculpa quando são coisas que aconteceram naquele momento. Pense, por exemplo, nos alemães, não é? No seguimento da II Guerra Mundial e dos campos de extermínio, é uma realidade que, além de altamente dramática e tenebrosa, suficientemente próxima para que se peça desculpa.

Há pessoas vivas ainda…
Há pessoas vivas. Agora, pedir-se desculpa de coisas que ocorreram há 200 ou 300 anos, que não eram consideradas crime, porque convém? Quando se faz esta analogia, as pessoas lembram que aquilo que os alemães fizeram era considerado crime, não pelas suas próprias leis, mas por todo o mundo civilizado em redor.

Era um crime de guerra…
Com certeza, e por isso foram julgados e condenados e executados. Era um crime de extermínio de pessoas, agora a escravidão, por exemplo, até final do século XVII, princípio do século XIX, não era considerada crime em parte nenhuma do mundo, não era considerada crime em África, na Ásia, na América, na Europa, portanto aquilo que aquelas pessoas faziam, ainda que tivessem a consciência plena de que era dramático, triste, violento, cruel, era permitido por lei. Portanto, pede-se desculpa disso? Eu acho que não se deve pedir desculpa disso. Por essa razão e por outras…

Essas pessoas querem no fundo recontar essa História à sua maneira, querem manipular a História contando-a à sua maneira.

Se quando diz que a escravidão não era crime, porque a lei permitia que ela existisse, no caso de objetos que foram sendo trazidos pelos países colonizadores e que estão hoje em dia nos museus e nos seus arquivos, toda essa  retirada desse material também era validada de alguma forma e não era ilegal. E isso também faz diferença nessa discussão da restituição do património…
Com certeza, totalmente, o que não inibe que depois cada Estado possa, se assim o entender, fazer uma doação. Agora se aquela peça foi adquirida de uma forma legítima, é legalmente possuída por quem a tem.

Também se fala aqui muito da questão de descolonizar a história. A proposta defende que o passado esclavagista tem que ser recontextualizado e reenquadrado… Isto faz algum sentido? E é exequível?
O que querem é contar a História de outra forma, o que querem é banir, ou suprimir, ou não levar em consideração certo tipo de documentos e de testemunhos e introduzir outros, nomeadamente memórias que são coisas importantes para fazer a História, evidentemente. Mas as memórias são coisas manipuláveis, são geralmente emotivas, parciais, um historiador usa as memórias mas não constrói a história com memórias só, tem que ir ver outras coisas, outros documentos, registos, relatórios, cartas. Portanto, essas pessoas querem no fundo recontar essa história à sua maneira, querem manipular a História contando-a à sua maneira. Não gostaram do resultado que a História séria — por exemplo esta questão da escravatura é uma questão investigada a fundo desde a década de 70 — e o resultado dessa investigação a fundo aparentemente não agrada aos grupos políticos.

E qual é esse resultado?
Uma das coisas que resulta dessa investigação é que a participação dos africanos foi imensa e enorme. Os africanos, evidentemente aqueles que lideravam e que comandavam o processo, não os próprios escravos, ganhavam de muitas maneiras — não exatamente iguais às maneiras que constituíam o lucro dos ocidentais —, mas ganhavam do ponto de vista do reconhecimento social, do prestígio interno nas suas comunidades, através daquilo que obtinham da parte dos ocidentais, que lhes permitia terem mais seguidores, mais clientelas, mais escravos, mais mulheres, mais dependentes. E, portanto, a investigação apurou neste caso concreto que não era apenas uma questão de maldade dos ocidentais, havia aqui uma interpenetração de responsabilidades e de envolvimentos.

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Há documentos e dados que é possível recolher em Angola, que foi o grande fornecedor de escravos, para permitir cruzar com aqueles que temos cá nos arquivos?
Sim, não é a mesma coisa, claro. Mas houve vários investigadores — o Jan Vinsina e depois Joseph Miller, por exemplo — que, a partir das tradições orais desses vários povos conseguiram reconstruir certo tipo de coisas.

Das histórias, das canções, de tudo isso?
Exatamente. Do significado que tinham, das palavras e como as palavras mudaram. Os historiadores fazem a história com o material que existe. Por isso, muitas vezes as narrativas sobre esses povos são feitas pelos outros. Por nós, como no caso de Angola. Mas por serem feitas por nós não têm de ser falsas. Muitas delas são os únicos documentos que nós temos de como é que o povo A, B ou C se comportava perante determinada situação. Com tudo isto que temos ao nosso dispor, nós podemos reconstruir — enfim, a História é sempre um conhecimento lacunar, fragmentado.

É sempre a visão de alguém, também.
O historiador procura ver as visões de muitas pessoas para chegar a uma síntese, mas é sempre um conhecimento incompleto. Um historiador faz a História com aquilo que o acaso permitiu que chegasse até ele. Há muita coisa que falta, não é? Mas é com isto que tem de se fazer. Agora, o que este grupos procuram fazer é recontar a História de uma forma que lhes agrade politicamente, portanto isto é uma coisa muito condicionada pela ideologia.

E é mesmo possível contar a História sem ser tendencioso?
Pois, não é possível. No fundo, há sempre a subjetividade do historiador. Quanto mais isento e quanto mais próximo dos documentos o historiador estiver e mais garantias der ao leitor — a possibilidade, por exemplo, de ir ver o documento que ele cita e que utilizou —, melhor. E quanto mais extenso for o seu conhecimento e quanto mais extensa e profunda for a sua investigação, melhor. O nível de subjetividade diminui. Agora, está lá sempre algum.

Podemos usar a palavra Descobrimentos?

Nós conhecemos bem a nossa História ou vivemos aqui encantados com uma certa fábula que todos partilhamos de um país e de um povo heróico, que deu novos mundos ao mundo, sempre de forma fantástica, e que se misturou com todos os povos, ao contrário de outros. Esta noção é real ou estamos aqui um pouco no domínio da fábula?
Existem ambas as coisas. Foi um povo onde também houve heróis. E também deu novos mundos ao mundo, isso é inquestionável. E depois os povos celebram e acentuam, sobretudo, os aspetos positivos do seu passado. É normal que o façam. Não conheço nenhum povo que ande a martirizar-se — excetuando estes grupo de ativistas de extrema esquerda que querem a auto-flagelação dia sim, dia não. Não conheço nenhum povo que se ande a perfurar, como se fosse um faquir, a torturar-se com as horríveis ou más coisas que fez. Agora, nós temos um conhecimento relativamente grande desses aspetos péssimos, maus, cruéis do nosso passado. Acho que sim. Mas não devemos esquecer os aspetos muito positivos, dos quais nos devemos orgulhar, nomeadamente esse. De facto, aquilo que está relacionado com os Descobrimentos foi uma façanha extraordinária. Se nós nos abstrairmos e nos projetarmos para o século XV para dentro de um navio daqueles, a fazer navegações sem terra à vista, pelo mar adentro… é uma coisa que exige uma coragem e uma perseverança enorme. E isso: porque é que tem de ser esquecido?

[Sobre os Descobrimentos] Não tenho de narrar a história do ponto de vista dos africanos. Não é preciso ter medo da palavra.

E podemos usar a palavra Descobrimentos?
Claro que sim!

Tivemos uma polémica, que agora está um pouco adormecida, do Museu dos Descobrimentos que não podia ser “Descobrimentos”, podia ser “Descobrimento”, talvez “A Viagem”, a “Descoberta”, porque os povos que foram descobertos não foram descobertos, já lá estavam.
Claro, mas eu nasço e vou descobrir uma quantidade de coisas na minha vida que já lá estavam. Eu descubro aquela mulher por quem me apaixonei. Ela já lá estava, mas, para mim, foi descoberta naquele momento. Quando se narra a História, narra-se de um ponto de vista. Não se pode narrar a história de todos os pontos de vista ao mesmo tempo. Portanto, quando eu narro a História do ponto de vista dos portugueses, dos ocidentais e dos europeus, que não conheciam nada daquilo que foi descoberto, então é um descobrimento. Não tenho de narrar a História do ponto de vista dos africanos. Não é preciso ter medo da palavra.

Há pouco falámos da capacidade que os países de origem têm ou não têm para receber as obras que determinado Estado decida devolver. Mas e por cá? Nós temos capacidade de preservar o nosso património de forma realmente eficaz?
Não sei responder a isso. Eu acho que temos, não sei.

Não valorizamos suficientemente o património. É como aquelas pessoas que se habituam muito a viver num determinado contexto e já não reparam em nada, aquilo é tudo normal e natural.

Ainda esta semana, aqui no Observador, a ministra da Cultura reconheceu que o Estado não conhece o paradeiro de 94 obras de arte, algumas desaparecidas há quase 30 anos. E também vamos vendo casos de património que está ao abandono.
Lembro-me dessas declarações da ministra, que me deixam um bocado perplexo. Não sabe o paradeiro? É um assunto de polícia, penso eu. Agora, não há semelhança entre aquilo que nós lemos de certas condições existentes nos países africanos e aquilo que existe aqui. Com todas as deficiências, lacunas e dificuldades, acho que, globalmente, temos capacidade para o fazer.

Mas basta olharmos para o património edificado pelo país e vemos alguns castelos completamente abandonados, alguns mosteiros a cair. E temos a crónica falta de pessoal. Nós damos suficiente importância, enquanto povos, enquanto país, do ponto de vista político e social, ao património?
Como curioso e como cidadão, a minha sensação é que não. Não valorizamos suficientemente isso. É como aquelas pessoas que se habituam muito a viver num determinado contexto e já não reparam em nada, aquilo é tudo normal e natural.

Já não reparamos na História em que tropeçamos todos os dias, é isso?
Não reparamos. Nas velhas cidades europeias isso é muito assim. A pessoa passa a vida a chocar com a História, com vestígios da História. Agora, que tenho a idade que tenho, vou a Lisboa e vejo coisas que nunca vi quando era miúdo, nunca reparei. Passava pelas coisas como se não existissem, não me chamavam a atenção. Acho que parte da nossa população lida com os vestígios do seu passado também assim, sem lhe prestar muita atenção.

E isso tem mudado, sobretudo com a atenção turística que Portugal passou a merecer?
Sim, pode haver um esforço de preservação de tornar mais evidentes certos tipos de características dos edifícios, e por aí fora. É benéfico, desse ponto de vista, esse afluxo de turistas ao nosso país.

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