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Não é apenas a seleção ganesa que os atletas portugueses vão defrontar na próxima quinta-feira, na estreia no Mundial de 2022. O primeiro adversário são os próprios organismos, “máquinas muito pouco eficientes” que, no caso dos futebolistas portugueses, não estão adaptadas ao calor e à humidade típicos do Qatar. Será um confronto entre a necessidade de libertar calor e manter o funcionamento dos músculos, em suar para aliviar a temperatura e em manter a hidratação para não condenar o cérebro ao colapso. Uma luta de titãs que começa a nível microscópico.
Em condições meteorológicas como as que se esperam no Portugal-Gana, com temperaturas de 29ºC e uma humidade na ordem dos 60%, o organismo humano tende a colocar mais sangue em circulação na pele para arrefecer. À medida que o jogo avança e a temperatura interna aumenta com o esforço, os jogadores começam a transpirar — outro processo que o organismo usa para arrefecer.
Ora, a quantidade de suor produzido é tanto maior quanto mais elevada for a humidade. Mas nesta situação, o próprio processo de transpiração torna-se mais difícil porque a água evaporada é eliminada com mais dificuldade. E, no limite, se o processo da transpiração falhar, o corpo pode entrar em sobreaquecimento e o atleta sofre um ataque cardíaco. É o que explica um artigo da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos.
Além disso, como o sangue se concentra mais na pele, passa a haver menos sangue disponível nos músculos, explicou ao Observador o médico João Beckert, especialista em Medicina Desportiva e Medicina Física e Reabilitação na Unidade de Medicina Desportiva e Performance, do Hospital CUF Tejo. Isso entra em confronto com as exigências que o jogo impõe aos atletas: “Podemos chegar a situações extremas de conflito sobre onde deve estar mais sangue concentrado: a arrefecer na periferia ou a trabalhar em profundidade nos músculos e nos órgãos em intensa atividade”.
Sem tanto sangue em circulação, e com cada vez mais dificuldade em respirar por causa do esforço físico da partida, os músculos já não se podem servir do oxigénio para transformar o glicogénio e a glucose em dióxido de carbono e água — um processo que, em situações normais, permite ao organismo produzir energia, e que se chama metabolismo aeróbico.
Por isso, fazem-no através do metabolismo anaeróbico, quase sempre utilizado apenas em exercícios como sprints (por exemplo, em situação de contra-ataque) ou saltos intensos — ou seja, sempre que são precisas explosões de energia em muito pouco tempo. Nestes casos, quando o ritmo cardíaco atinge cerca de 85% da capacidade do coração, o organismo passa a gerar energia queimando hidratos de carbono. Mas este processo tem um defeito: além de energia, produz também ácido lático, que se acumula e dificulta a contração dos músculos, impedindo o seu funcionamento em pleno.
Tempo no Qatar leva a alterações metabólicas ao nível celular
O problema seria ainda maior se o campeonato se realizasse no verão, como acontece habitualmente: no Qatar, entre junho e agosto, a temperatura pode ultrapassar os 40ºC. Ciente do impacto que isso teria no desempenho dos atletas, a FIFA (Federação Internacional de Futebol) decidiu migrar o evento para os meses de novembro e dezembro, altura em que a temperatura média passa para os 26ºC.
Mas isso levanta, ainda assim, dois problemas: são temperaturas que continuam a ser mais do dobro das que se estão a registar em alguns países; e, mesmo menos quentes, são os meses mais húmidos do ano no Qatar. Em declarações ao Observador, João Beckert confirmou que “a combinação de temperaturas muito elevadas com níveis de humidade muito elevados causam problemas acrescidos na regulação térmica do atleta em desempenho”.
Em casos extremos, a combinação do aumento da temperatura, altas taxas de humidade e desidratação pode culminar em alterações dos eletrólitos — substâncias que entram e saem das células para manter o funcionamento estável e normal do organismo. Quando esse equilíbrio fica perturbado, o sistema nervoso central falha: “É por isso que assistimos a perdas de funcionamento abruptas e instantâneas, cãibras e colapsos”, exemplifica o perito.
Na totalidade, o corpo é composto em cerca de 70% por água. Mas ela está distribuída em vários compartimentos espalhados pelo organismo e são compostos por substâncias como o sódio, o potássio e o cloro. São estes minerais que, ao entrarem e saírem das células, dão origem aos fenómenos elétricos que determinam a regulação do organismo, o funcionamento dos órgãos ou a comunicação entre as membranas celulares.
Mas “se houver uma desidratação muito grande, estas composições alteram-se e o corpo deixa de funcionar devidamente”. Nesse caso, os minerais concentram-se em quantidades demasiado elevadas no sangue e os rins ficam sobrecarregados porque precisam de os filtrar e eliminar. Isso traduz-se em sintomas de enjoo, diarreia, tonturas, arritmias, crises renais e arritmia. No limite, caso esse equilíbrio não seja reposto, o atleta pode mesmo morrer.
Por outro lado, a falta de eletrólitos também pode condenar um jogador a sucumbir: grandes quantidades de humidade tendem a levar o organismo a eliminar sódio. Sem ele, a condução da corrente elétrica — base do funcionamento do sistema nervoso — também fica impossibilitada. E é por isso que, em alguns casos, é importante consumir bebidas ricas nestes minerais para manter a estabilidade do organismo.
A câmara quente da Porsche onde futebolistas treinam para o Qatar
Há formas de contornar as complicações impostas pelas condições meteorológicas, desde logo graças às condições dos estádios, que têm máquinas de ar condicionado espalhados pelas suas estruturas, até mesmo nas bancadas.
Mas também através de planos de treino, preparados por equipas de medicina desportiva, que submetem os atletas a condições o mais semelhantes possível, e durante o máximo de tempo disponível, às que se vão encontrar em contexto competitivo.
É um plano de adaptação progressiva que se chama “aclimatação às condições”, demora normalmente duas semanas (os primeiros quatro dias são os mais intensivos e duros) e realiza-se com recurso a aparelhos de ar condicionado em que se simulam os valores de temperatura e humidade do local onde se vai jogar.
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Além disso, existem câmaras de treino que mimetizam condições extremas para que os jogadores possam exercitar o corpo a habituar-se a altas temperaturas e a humidade elevada. Um deles é o Laboratório de Rendimento Humano da Porsche em Silverstone, no Reino Unido, onde atletas de várias modalidades (futebol incluído) fazem treinos semelhantes aos praticados num ginásio sob condições personalizadas.
Jay Harris, jornalista da The Atlantic convidado a visitar as instalações, submeteu-se a um treino com a temperatura e humidade que se esperam no Qatar. E confirmou aquilo que a ciência já indiciava: vai ser um mês difícil para a maioria dos atletas. “Após os primeiros 10 minutos, fiz uma pausa tática na casa de banho porque estava muito desconfortável”, começou por descrever.
“Quando cheguei a meio, o calor ficou mais desconfortável. Não há ar a circular na câmara, por isso é húmido e pegajoso”. E prosseguiu: “O aspeto físico do desafio era exigente, mas era mais complicado geri-lo de uma perspetiva mental. Toda vez que atingia velocidade, o suor escorria do meu cabelo para os meus olhos. Limpava o meu rosto com a minha camisa, o que fazia com que perdesse momentaneamente o foco”.
A aclimatação pode ser especialmente difícil neste campeonato para as equipas de medicina desportiva porque o campeonato do mundo se vai disputar a meio da época futebolística, com grande parte dos jogadores a saírem dos jogos dos clubes diretamente para os da seleção, obrigando a uma ginástica de agendas sem precedentes. Na maioria dos campeonatos europeus, houve jogos dos respetivos campeonatos no último fim de semana, e as seleções juntaram-se só depois partindo para o Qatar com uma semana de estágio e ficando apenas um ou dois dias no país árabe antes do começar o Mundial. Noutros campeonatos do mundo, os campeonatos param quinze dias a um mês antes e há estágios de duas a três semanas, muitas vezes nos próprios países ou com condições semelhantes.
Mas nem todos os jogadores estão em pé de igualdade: atletas que estejam habituados ao tempo quente e húmido dos países que vão representar (como os jogadores do Uruguai ou Equador) estão em vantagem sobre qualquer um dos futebolistas da seleção nacional portuguesa, que trabalham todos em países mais frios e secos que o Qatar — Portugal, Espanha, França, Itália e Alemanha.
Mundial2022. Gana vence Suíça antes da estreia com Portugal no Qatar
Tudo isto já tinha sido sugerido num estudo realizado em 2017 sobre o impacto do aquecimento global no desempenho dos atletas efetuado pela Universidade de Mississipi. A análise ao rendimento de 1.777 jogadores de futebol em parâmetros como a distância percorrida por cada atleta, a quantidade de sprints efetuados e a velocidade máxima atingida; cruzada com mapas de calor que revelavam o calor libertado pelos jogadores comprovaram que “o calor diminui o desempenho”.
“Quando estes modelos são usados para prever o desempenho da corrida no Mundial do Qatar em 2022, as nossas projeções indicam que a combinação de calor e vento pode dificultar o desempenho dos jogadores e das equipas; e criar condições potencialmente perigosas para os jogadores”, pode ler-se no relatório: “Os resultados dos nossos modelos, que controlam fatores como a distância de viagem e o descanso, descobrem que a diminuição das habilidades de corrida não apenas afeta a distância que os jogadores correm, mas também reduz o número de oportunidades de ataque das equipas”.