No Hotel Maria Cristina, em San Sebastián, um grupo de jornalistas vai-se amontoando no primeiro andar. Tentam fazer silêncio, mas o motivo é maior do que a regra: Johnny Depp, ator norte-americano que tem sido notícia muito menos pelos filmes que tem protagonizado, muito mais pelo caso judicial que o opôs à ex-mulher, a atriz Amber Heard, está a dar entrevistas num dos quartos. Ambiente muito controlado, não há lugar a fotografias, perguntas só sobre a razão da sua presença (ou seja, o filme), atrasos só são permitidos aos chamados “talentos”.
O também realizador tem 61 anos, repleto de tatuagens bem conhecidas, camisa de linho e um chapéu pontiagudo. Foi um dos meninos dourados de Hollywood feito homem-lucro nos anos 90, rosto de filmes como Eduardo Mãos de Tesoura, a saga de Piratas das Caraíbas , Sweeney Todd, Fear and Loathing in Las Vegas ou mesmo Donnie Brasco. Mas o tempo pode complicar as contas e uma carreira de glória pode dar voltas. Esteve com o seu look mais conhecido durante a conferência que começou com atraso, a meio da tarde desta terça-feira, porque numa das rodas de imprensa internacionais a estrela foi ausência sentida.
Na verdade, o encontro a propósito do filme que realizou, Modi: Three Days on The Wing of Madness (apresentado fora da competição no festival de San Sebastián) não aconteceu, porque um grupo de 12 jornalistas (do qual o Observador fez parte) decidiu não avançar com a conversa. A decisão explica-se com o desenrolar dos acontecimentos: inicialmente, estava acordado que, para um grupo de seis jornalistas, haveria 15 minutos com Johny Depp mais dois dos protagonistas, Riccardo Scamarcio e Antonia Desplant. Só que, sem aviso, de seis o grupo cresceu para doze, com o mesmo tempo para perguntas, o que tornou o trabalho programado impossível. A redução contínua da duração de entrevistas com vários atores e outros tantos jornalistas em simultâneo já tinha sido alvo de protesto e de uma petição no último festival de Veneza — um manifesto que voltou a acontecer.
O filme de Johnny Depp, que não conseguiu entrar em festivais de primeira linha, não está, para já, escalado para estrear em países como Portugal. Se o realizador norte-americano queria mostrar que estava de volta, com o que diz ser um “anti-biopic” sobre um dos maiores artistas italianos do século XX, Amedeo Modigliani (1884-1920), conseguiu fazê-lo. Se terá sido pelas razões que o próprio mais esperava? Só a espuma dos dias seguintes saberá responder. A história da sua mais recente obra tem contornos cómicos, tenta mostrar a vida miserável de um artista então ainda pouco conhecido, que não quer seguir nenhuma regra nem submeter-se ao mercado, mas que anseia por ver as suas obras acariciadas e compradas. Obras de Modi que valem hoje milhões, mas que no tempo retratado no filme custam tanto como uma sopa. A referência aos “três dias” no título do filme é um cartão de visita para uma subversão do género: falar de um artista retratando o dia-a-dia, num período específico, e não a vida inteira.
Ninguém sabe se Johny Depp terá ficado desagradado com a desistência dos jornalistas, com a eventualidade de determinada informação atravessar os media menos eficácia. Durante a conferência de imprensa feita após o boicote, o também músico pareceu pouco interessado em falar sobre imprevistos profissionais. Apareceu para falar dele próprio, do passado como ator e daquilo que diz ser a sua “nova vida”. Tal como tantos outros, o norte-americano está a tentar um regresso na Europa, depois de um caso em que o lado mais privado da sua vida chegou às manchetes e ao streaming. Razão para ter sido um dos poucos a quem foram dirigidas perguntas durante a conferência de imprensa.
Esse regresso das cinzas foi feito o ano passado, ao ser protagonista de Jeanne du Barry, filme que causou polémica ao ser escolhido para abrir o o festival de Cannes. Mas não aconteceu só no velho continente. A história de Luís VX contou com um investidor de peso: a Arábia Saudita, que tem manifestado interesse em levar os respetivos investimentos até Hollywood. Johnny Depp, que contou com a presença de Al Pacino no seu mais recente filme para uma das cenas, não apareceu em San Sebastián acompanhado pelos parceiros sauditas, mas trouxe a vontade de manifestar uma certeza: a de que houve liberdade na rodagem.
Tanto no encontro com os atores de Modi: Three Days on The Wing of Madness, como na conferência de imprensa, o elenco pareceu ter a lição estudada, defendo o trabalho criativo do realizador, bem distante da persona extravagante que Johnny Depp tem construído. “O Johnny deixou-nos ser livres, deu-nos um espaço seguro”, comentou Riccardo Scarmacio, o Modi do filme, ao que Antonia Desplant, que interpresta a escritora e mulher do artista italiano, respondeu por cima: “Deixou-te ter uma voz, deixou-nos sorrir, chorar, tudo”.
Depp ia sorrindo, cabisbaixo, sempre de voz quase impercetível para o público que encheu o Club de Prensa do Kuursal. A imprensa internacional conta que Al Pacino queria que Depp realizasse. O mais provável seria vê-lo como ator principal. Um artista atormentado pela opinião de outros, com talento e aptidão para a vida rocn’n’roll não seria um encontro perfeito? De volta ao Hotel Maria Cristina, Bruno Gouery (Maurice Utrillo, outro conhecido pintor que surge como personagem secundária neste filme), quis manter a tónica na liberdade artística. “Ele deu-nos confiança. Podíamos mostrar a nossa fantasia, deu-nos essa possibilidade, criámos tudo com o Johnny.” Tal como os jornalistas que abandonaram, em conjunto, a segunda roda de imprensa, também os atores alinharam o discurso: “Foi uma experiência profundamente aberta e colaborativa, encorajou-nos a arriscar”, confessou Ruam McParland, que interpreta o pintor Chaim Soutine.
Esta experiência como realizador não acontecia desde 1997, quando Johny Depp dirigiu, nada mais, nada menos, do que Marlon Brando (no filme O Bravo). Cá fora no Kuursal, junto aos cafés, está um ator magro, de barba, atento a um pequeno grupo de jornalistas que comenta o sucedido no Hotel Maria Cristina. A conferência de imprensa terminou. “Pedimos desculpa, mas ficamos por aqui, a agenda está muito apertada”, comentou o moderador. A pose confiante chama a atenção. Trata-se de um ator português, Hugo Nicolau. Percebe-se a vontade de querer perceber melhor o circuito internacional através dos festivais. De estar presente para ver filme. De procurar promover o seu trabalho.
Mas Hugo Nicolau tem outra história: entra na primeira cena de Modi: Three Days on The Wing of Madness, na qual faz de empregado de mesa que persegue o protagonista, numa das cenas mais caricatas do filme. Aí, no meio de Paris em 1916, não há barba. Só um bigode impecável e o cabelo nem lambido. “Fui convidado pelo diretor de casting para fazer uma tape [audição gravada] enquanto estava num festival de música. A seguir fui a Londres fazer a chamada recall. O engraçado é que o meu papel não esteve ligado a nenhuma destas audições.” Tudo filmado em Budapeste num par de dias, onde Johnny Depp esteve mais presente durante as cenas de representação puras e duras. “Não houve ensaios, já era um grande fã dele e estava um pouco nervoso por ser o Depp, mas no set deixei de estar. Isso desapareceu quando ele surgiu, foi sempre gentil, fazia piadas, dirigiu-nos. Ele é, afinal, um ator”.
Nos momentos da rodagem em que Hugo Nicolau esteve presente, não houve nem uma palavra sobre casos judiciais. O ator português, que participou numa produção sobre Tony Carreira na TVI e num mega projeto da Nigéria para a Netflix, viu nesta oportunidade um concretizar de um sonho: “Todos temos altos e baixos. Estar aqui em San Sebastián é uma grande oportunidade de mostrar o meu trabalho. O filme Homem Morto [1995], com ele, realizado pelo Jim Jarmusch, marcou-me profundamente. Agora trabalhar com ele e deixar-nos ao mesmo nível foi ainda melhor”.
No final, por breves segundos, Johnny Depp destapou um pouco da capa que, tanto ele como o elenco e a equipa por detrás do seu mais recente projeto, ergueram. E falou (ainda que pouco) do furacão que tem sido a sua vida, no fim da conferência de imprensa. “Pode-se dizer que já passei por inúmeras situações aqui e ali. O que também pode acontecer a vocês. Mas agora estou bem. A diferença é que a minha vida se transformou numa telenovela. Vista por todos, ainda por cima. Mas aprendemos a viver com tudo, mas nunca esquecemos.”