Desejava ser lembrado “como alguém que, como os gatos, se passeou, um flâneur” — escreveu-o em 1998. Mas será lembrado também como um dos protagonistas e renovadores do teatro português e da cultura portuguesa do último meio século. E já agora, porque eram eles que o impeliam e o faziam avançar (mais um peça, outra, uma outra ainda), como um amante de atores, alguém que amava vê-los atingir momentos de brilhantismo em palco. Dizia mesmo: “Quando escolho peças penso sempre: isto é para que ator? Tenho atores para isso ou não?“.
Jorge Silva Melo, lisboeta, flâneur que se passeava como os gatos, tinha 73 anos. Dramaturgo e encenador, sobretudo, realizador e tradutor, também, cronista e até ator, assistente de realização e diretor de produções, conversador nato e cinéfilo, foi e fez muita coisa ao longo de todos esses anos de vida. Morreu esta segunda-feira, na cidade em que cresceu e quase sempre viveu.
Nascido em 1948, filho de uma professora primária com origens no Algarve e de um antigo funcionário dos correios, nascido no Minho, que depois montou o seu próprio negócio na capital (ambos portugueses, regressados depois de terem vivido na cidade angolana então conhecida como Silva Porto — hoje Cuíto), Jorge Silva Melo cresceu com livros e filmes por perto.
Aprendeu a ler antes mesmo de entrar na escola primária, contava em entrevistas, em parte por influência familiar, já que a mãe era professora e a irmã, 12 anos mais velha, fê-lo habituar-se desde criança a estar perto de intelectuais como o poeta Pedro Tamen e o professor e crítico de cinema João Bénard da Costa — à época apenas jovens universitários, colegas da sua irmã que lhe frequentavam a casa…
A literatura, a música e o cinema foram os primeiros amores artísticos. Ainda adolescente, com entre 14 e 15 anos, Jorge Silva Melo já escrevia sobre a sétima arte para o suplemento “Juvenil” do Diário de Lisboa, então dirigido por Mário Castrim. Daí passou para a crítica de cinema na revista “O Tempo e o Modo”, onde começou a publicar com apenas 16 anos.
Foi já na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde estudou Filologia Romântica, que a ligação ao teatro se estreitou: dinamizaria aí o Grupo de Teatro da Faculdade de Letras com Luís Miguel Cintra, com quem viria mais tarde a criar a companhia de teatro Cornucópia.
Em entrevista recente ao semanário Novo, Jorge Silva Melo recordava esses tempos de aproximação ao teatro durante a universidade: “Naquela faculdade — no bar, não nas aulas —, pensámos que poderia haver um teatro diferente daqueles que víamos em salas”. Com Luís Miguel Cintra, Nuno Júdice e Eduarda Dionísio, entre outros, passava o tempo a “conspirar”.
Da conspiração resultou uma ideia: “remodelar” o grupo de teatro da universidade, que era “como quase todos os grupos de teatro, aceite pela academia mais ou menos para ocupar os tempos livres dos estudantes”. Resumia, ainda em declarações ao semanário Novo: “Foi aí que, quer a Ermelinda Duarte, que entrou logo no primeiro espetáculo, quer o Luís Miguel [Cintra] quer eu, percebemos que o nosso negócio era fazer teatro, fazer cinema e conversar”. A primeira peça feita mais a sério nesse contexto universitário foi O Anfitrião, no final dos anos 1960, um espectáculo crítico do teatro que se fazia na altura em Portugal.
Por essa altura, já há muito politizado por influência familiar — do pai, também, mas sobretudo da irmã mais velha —, fora até já brevemente detido pela PIDE, em 1968, durante uma manifestação internacional contra a guerra do Vietname.
A manifestação, como contou numa entrevista, coincidia com a chegada a Portugal do presidente Américo Tomás, regressado de uma visita a uma colónia em África. O protesto internacional tinha, por isso, ainda maior significado. À jornalista Anabela Mota Ribeiro, chegou a contar numa entrevista: “Quando saí da cadeia, o meu pai abraçou-me fortemente, muito honrado e comovido por eu ter estado preso”.
Com 21 anos, pouco depois da manifestação e de ter feito O Anfitrião, mudou-se para Londres, tendo ido estudar para a London Film School graças a uma bolsa concedida pela Gulbenkian — embora a sua vontade fosse ir para Paris, na altura “ir estudar para lá era não ir a aula nenhuma e a Gulbenkian não me dava bolsa para ir para lá fumar charros durante dois anos”, como recordou numa conversa.
O regresso a Portugal acontece para trabalhar em cinema, como assistente de realização no filme Perdido por Cem (1972), a primeira longa-metragem de António Pedro Vasconcelos — já antes fizera trabalhos semelhantes, em filmes de Paulo Rocha e João César Monteiro.
É nesta década, anos 1970, que cria e começa a dirigir o Teatro da Cornucópia com Luís Miguel Cintra. Fá-lo até mesmo ao final da década, 1979, antes de deixar a companhia e voltar a rumar ao estrangeiro para (novamente como bolseiro da Gulbenkian) passar um período em Berlim, a estagiar com o diretor e fundador da companhia germânica Schaubühne, Peter Stein (de quem foi assistente), e outro período em Milão, a aprender com Giorgio Strehler no Piccolo Teatro/Scala de Milão.
Se a década de 70 é, para Silva Melo, a década do Teatro da Cornucópia, a seguinte (80s) é aquela em que começa a assinar filmes como cineasta. O primeiro foi Passagem ou A Meio Caminho (1980), seguindo-se nessa década Ninguém Duas Vezes (1985) e Agosto (1988).
Nos anos 90 é ainda realizador de várias longas-metragens: fez Coitado do Jorge (1993), A Linha da Vida (1996), A Entrada na Vida (1997) e António, Um Rapaz de Lisboa (2000), além dos documentários Palolo, Ver o Pensamento a Correr (1995) e Joaquim Bravo, Évora, 1935, etc, etc, Felicidades (1999). O filme António, Um Rapaz de Lisboa partiu, por sinal, de uma peça (com o mesmo título) apresentada cinco anos antes (1995), particularmente importante para o teatro português e para Silva Melo, na medida em que foi a primeira de cerca de uma dezena de que viria a ser autor.
É nesta década, também, e mais precisamente também no ano de 1995, que Silva Melo cria o grupo Artistas Unidos, motivado pela vontade de trabalhar autores contemporâneos com atores de gerações posteriores à sua (mais jovens).
Em entrevista ao blog Vidas e Obras, Jorge Silva Melo explicou assim a génese da companhia teatral, cuja história pode ficar a conhecer aqui em maior detalhe: “Percebi que havia um sítio que o teatro português não ocupava. Estavam a fazer muitos clássicos, a fazer Shakespeare, Molière, Almeida Garrett, mas ignoravam que havia teatro a ser feito por rapazes e raparigas da nossa idade ou mais novos. (…) Vamos descobrindo Spiro Scimone [atualmente com 57 anos] na Sicília, Jon Fosse [hoje com 62 anos] na Noruega… Enda Walsh [55 anos neste momento] na Irlanda, agora radicado em Londres”. Ou, por exemplo, Dimítris Dimitriádis (78 anos) na Grécia, Annie Baker (40 anos) nos EUA e Pau Miró (48 anos) na Catalunha.
Desde o nascimento do grupo Artistas Unidos, a vida de Silva Melo passou a estar mais dedicada ao teatro, com peças por si encenadas ou a que se associou por via do grupo, apresentadas em várias salas e teatros nacionais e na casa que serve de sede à companhia, a Escola Politécnica, no Rato, em Lisboa. Ali cresceram atores portugueses, sobretudo, mas também novos autores de teatro. E ali deu-se a conhecer ao público, em maior profundidade, o trabalho de Harold Pinter, autor britânico “nobelizado” que até aos anos 90 e à insistência de Silva Melo poucas vezes tinha sido encenado em Portugal.
Projetos inviabilizados, também os teve. Nomeadamente, a tentativa de tornar as antigas instalações do jornal A Capital, no Bairro Alto, a sede dos Artistas Unidos, projeto vetado pela Câmara Municipal de Lisboa.
Em 2016, em entrevista ao Observador, Silva Melo recordava essa tentativa falhada, por responsabilidade — apontava então — dos poderes políticos: “Não perdoo terem recusado um projeto que era barato, que era possível, e que ia transformar não só o teatro que se fazia como aquele local. O Bairro Alto seria diferente, não seria só copos se lá estivessem a trabalhar naquele edifício, durante o dia — como estavam —, cerca de 80 a 100 pessoas. E mesmo a relação entre as companhias teria sido diferente. Teria sido uma coisa radicalmente inovadora na Europa. Mas não existiu e não vai existir nunca mais”.
Apesar de não ter conseguido instalar os Artistas Unidos no Bairro Alto, e de ter andado de mochila às costas com a companhia — que chegou a estar no Teatro Taborda e no Convento das Mónicas, por exemplo —, a ligação a este grupo diminuiu radicalmente a sua produção para cinema.
Na sétima arte, nos últimos 20 anos, trabalhou como cineasta apenas em documentários: Conversas com Glicínia (2004), Álvaro Lapa: A Literatura (2008) e Sofia Areal: Um Gabinete Anti-Dor (2016). E na literatura, pela editora Cotovia — que acolheu a coleção “Livrinhos de Teatro”, dos Artistas Unidos, reveladora de muitos autores internacionais por traduzir e descobrir no país — publicou dois volumes de memórias: Século Passado e A Mesa Está Posta.
Os palcos foram a sua casa quase até ao fim da vida. Em 2016, por exemplo, dizia: “Ainda não acabámos o que temos para fazer: inventar um teatro que seja amigo das pessoas, não um teatro de espetáculo — de espavento — mas um teatro companheiro do espetador”. E insatisfeito, criticava o panorama atual, contra o qual remava trabalhando, fazendo: “Sei que o teatro que me interessa não está a ser muito feito em Lisboa. Passou-se à conferência e não ao drama. O drama, ou seja, a apresentação de vários pontos de vista numa peça, foi substituído pela proclamação de verdades. E isso aborrece-me. Não gosto de ver verdades, gosto de ver pessoas com opiniões diferentes e desejos diferentes. Isso é o que me interessa no desenrolar de uma peça. Estar a ver conferências, por mais poéticas que sejam… que chatice”.
As homenagens e o reconhecimento por ter ajudado a mudar o teatro e, por conseguinte, o panorama cultural português, chegaram-lhe ainda em vida. Em 2004 foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem da Liberdade e no ano passado recebeu o grau de doutor honoris causa, pela Universidade de Lisboa. O maior grau de reconhecimento é, porém, uma constatação: em Portugal, houve um teatro antes e outro depois de Jorge Silva Melo. Não é mudança pequena.