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José-Augusto França (1922-2021): protagonista da História e da Arte, o português "finalmente só"

Pai fundador da contemporânea História da Arte portuguesa, quis deixar à posteridade o seu legado literário em destaque. José-Augusto França morreu este sábado, aos 98 anos.

Chegou ao seu fim natural a invulgar longevidade de José-Augusto França (morreu este sábado aos 98 anos), ficando doravante em dúvida até onde poderá ir a sua posteridade. A questão não é retórica nem despropositada, pois como raros o historiador “contemporanista” (sic) da arte, professor catedrático, galerista, editor de revistas, romancista, cinéfilo, argumentista de filmes, co-empresário teatral, protagonista incomum da vida cultural da segunda metade do século passado português deixou a sua extensa obra literária, histórica, crítica e memoralística — bem como o seu arquivo pessoal e parte da sua colecção de arte — ordenados com um zelo quase desconhecido no país e sistemicamente confiados a instituições como a Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, a Biblioteca Nacional, a Imprensa Nacional e o “núcleo de arte contemporânea” que tem o seu nome em Tomar, sua terra-natal no distante 1922, desse modo permitindo, facilitando, sugerindo até, esse exame póstumo — que sem dúvida lhe é devido, por todas as razões.

Pelo outro lado, como decano da historiografia da arte tal como ensinada e praticada em contexto académico (de que foi pai fundador em 1976), e autor de obras que lançaram alicerces sobre muitos e variados temas ou épocas, formou e estimulou discípulos que acabariam por avançar em campo aberto e afastar-se dele usando novos conceitos e critérios de trabalho ou pesquisa, podendo por isso falar-se hoje da plena afirmação de uma ou — até — duas gerações que se lhe seguiram e em muitas matérias largamente o ultrapassaram ou, em não poucas, o contestaram.

Muito dificilmente os seus livros sobre José de Almada Negreiros (1970), Rafael Bordallo Pinheiro e Amadeo de Souza-Cardoso, publicados em 1974, 1981 e 1986 sob os títulos conjugados de “o português sem mestre”, “o português tal e qual” e “o português à força”, deixariam de ser secundarizados pelo muito e bom que depois deles e desde então se descobriu, escreveu e acrescentou por novas campanhas expositivas ou monográficas.

Em cima, a partir da esquerda) Mário Cesariny, José-Augusto França e Vespeira; (Em baixo): António Pedro, Alexandre O'Neill e João Moniz Pereira

Editora 50 kgs

Também em matérias de olissipografia — de que ele foi estudioso notável, com o clássico Lisboa Pombalina (1965, prefaciado por Pierre Francastel) e o imponente Lisboa. História Física e Moral (2008, 871 pp.!) e cujos vastos conhecimentos ficaram patentes em textos curtos como a apresentação de A Sétima Colina. Roteiro histórico-artístico (1994) ou em 28: Crónica dum percurso (1998) — recentes trabalhos de outros autores, seus alunos ou inevitáveis leitores, contribuíram para um maior e melhor conhecimento da arquitectura e do urbanismo lisboetas, exibindo uma dinâmica intergeracional que dá frutos frescos à medida que, como foi bem o caso, mais arquivos colectivos e mais espólios pessoais passam a poder ser vistos e avaliados.

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Em muitos assuntos, como não podia deixar de ser, uma história de arte feita em “laboratório participativo” ganha fácil e clara vantagem sobre o esforço de um homem só, por muito metódico, trabalhador hercúleo, experimentado e de olhar panorâmico que ele seja. Nessa acepção, a A Arte em Portugal no Século XX de José-Augusto França estava naturalmente condenada a ser um statement da década de 1970, e outros livros seus, como os dedicados ao “português por imigração” (sic) António Pedro ou aos anos 1920 ou 1936 ou 1946 (a que dedicou três volumes), não podiam aspirar a melhor sorte. Reconhecendo mas também galgando essa incontornável herança, os três curadores da recente exposição no Museu Nacional de Arte Antiga dedicada ao Retrato ­— um colapsado projecto de José-Augusto França —  fizeram-se fotografar para a capa dum jornal diário em evidente divertimento parodístico à volta do busto dele criado por João Cutileiro em 1967 e ali exposto.

Até há bem poucos anos, era comum avistá-lo na sala de leitura da Biblioteca Nacional — impecavelmente trajado — entretido em consultas que mais tarde o seu fiel secretário Fernando Eduardo Nunes haveria de prosseguir a seu pedido, quando “o professor” se transferiu para a sua residência apalaçada em Jarzé, uma aldeia “a hora e meia de TGV de Paris” (Memórias, p. 379), deliberadamente disposto a acabar os seus dias no país que lhe deu o sobrenome e em que as coisas da Arte e do Património têm, sem a mínima dúvida, uma preponderância desconhecida entre nós.

França escreveu nas suas Memórias para o ano 2000 que "balanço não há, nem deve haver nas contas feitas — e moral nenhuma, nem lição" (p. 14), mas um tal postulado em início de uma longa narrativa pessoal feita testemunho duma época bipartida deve ser tido como figura de retórica e pouco mais.

Certo desalento por se sentir arredado dum novo status quo historiográfico ou crítico parece ter melindrado estes derradeiros anos de vida, porquanto o velho estudioso e agente cultural deixou de ser chamado a participar em colóquios, catálogos, livros ou doutoramentos sobre artes e artistas de que ele havia sido — por décadas — a principal referência crítica, senão mesmo a leitura indispensável ou obrigatória.

Também o fim abrupto da sua Colóquio Artes em 1996 e a morte, em Novembro de 2008, do seu amigo de juventude e editor “bem raro” (sic), sempre atento, disponível e generoso Rogério Mendes de Moura, a cuja memória dedicou um livro de 2013, podem ser considerados outros tantos marcos dessa rota de afastamento, como — admite-se — o facto de em nenhum momento ou instituição a original vida do hoje defunto ter sido objecto de um estudo crítico de grande fôlego ou de uma biografia. A inutilidade do seu prestigiado e forte empenho cívico na tentativa de travar a demolição da casa de Almeida Garrett em Lisboa (2005-6), às ordens do ministro Manuel Pinho, seu proprietário — “um caso nacional de grande significação cultural, cívica e moral!”, como escreveu algures com enfático ! — também não podia ser animadora.

16 livros para conhecer o enorme legado de José-Augusto França

E se dúvidas houvesse, há poucas semanas a Biblioteca José-Augusto França foi lançada na Fundação Gulbenkian diante duma plateia reduzida a mínimos muito confrangedores, os dedos duma só mão bastando para contar os alunos, discípulos, outros historiadores de arte ou artistas sobre os quais escreveu que compareceram. O primeiro desses livros é tido como um marco da literatura, o segundo um clássico europeu sobre Charles Chaplin. As coisas são o que são.

França escreveu nas suas Memórias para o ano 2000 que “balanço não há, nem deve haver nas contas feitas — e moral nenhuma, nem lição” (p. 14), mas um tal postulado em início de uma longa narrativa pessoal feita testemunho duma época bipartida deve ser tido como figura de retórica e pouco mais. Muitas das suas crónicas incluídas nos dois tomos dos Quinhentos Folhetins (1984 e 1993, c. 900 pp. — recolha da sua colaboração no Diário de Lisboa e no Jornal Novo entre 1970 e 1990), em Cem Exposições (1982) e nas “Cartas Persas” (Diário de Lisboa e Jornal de Letras, 1988-2010, ainda e para sempre inéditas em livro) outra coisa não são que uma recorrente revisitação das matérias dadas e das situações vividas, em que o observador muitas vezes também protagonista perfilado se justifica e posiciona a par e passo diante daquilo que viu feito ou fez, usando uma linguagem cronística talvez movida por uma intenção de boa convivialidade com os leitores — e obviamente auto-seduzido por aquilo que Eugénio Lisboa apelidou de “o seu estonteante virtuosismo estilístico” —, mas que resulta menos bem, facilitando equívocos interpretativos e no fim das contas produzindo pouco sumo.

Com Eduardo Lourenço, em 1982

Cem Quadros Portugueses no Século XX é, deste ponto de vista, um completo desapontamento, quase um desastre, algo que parece ter sido escrito com olímpica displicência por um rei absoluto, indiferente ao que outros disseram sobre tudo aquilo e que julgue bastar o seu próprio nome para merecer ser lido (“Não renega o autor a História […] mas nem sempre ela lhe apetece”, p. 219).

No entanto, é precisamente esse duplo estatuto de José-Augusto França — o do historiador ou crítico que também “esteve lá” — que o distingue quase sempre, e a longa distância, da larga maioria dos outros comentadores da arte portuguesa do século passado. Isso ficou particularmente evidente com a exposição da sua colecção de arte no Museu do Chiado em 1997, em que as legendas das obras expostas consistem em “apenas memórias de vária e ocasional índole” (catálogo, p. 14), registos tout court do seu “longo e lento companheirismo” (sic) com os artistas plásticos, e os quadros nas paredes — fora algumas aquisições precoces, como um Carlos Botelho e um Costa Pinto em 1946, e um Mário Eloy em 1952 — foram quase todos ofertas ao crítico, historiador e amigo. Desde “A linguagem” de Alexandre O’Neill até “A mão exdrúxula” de João Vieira, de um Amadeo até um Almada, além de obras de Dacosta (incluindo Amor Jacente), do brasileiro Jorge de Lima e do próprio que António Pedro (além dos já referidos, alguns desenhos e o Aparelho Metafísico de Meditação, de 1935) lhe deu pelos anos 1950, ou a maqueta do D. Sebastião de João Cutileiro em Lagos (1970) — um lote onde também encontramos obras dos primeiros anos de Lourdes Castro e de Júlio Resende. Ou então que tenha sido retratado por Dacosta em 1957, Nikias Skapinakis em 1969, por José de Guimarães em 1980, ou várias vezes fotografado por Fernando Lemos a meio do século.

Os agrestes embates e debates estéticos que percorreu, ou a rede tutelar de circuito internacional em que se posicionou como crítico e comissário expositivo, ajudam sobremaneira a explicar esta centralidade sem rivais que isola José-Augusto França na cena portuguesa.

A invulgar longevidade (nasceu a 16 de novembro de 1922), os influentes e poderosos cargos que exerceu (29 anos à frente duma revista de arte com meios como nenhuma outra no país, 6 anos como director dum centro cultural português em Paris, 18 anos de tutela académica na Universidade Nova de Lisboa, jubilado em 1992), as iniciativas que tomou (e destacaria a revista Unicórnio-Pentacórnio, 1951-56, a que justamente falta um estudo monográfico e uma edição facsimilada, apesar da exposição documental que lhe foi dedicada em 2006-7), mas também os agrestes embates e debates estéticos que percorreu, ou a rede tutelar de circuito internacional em que se posicionou como crítico e comissário expositivo, ajudam sobremaneira a explicar esta centralidade sem rivais que isola José-Augusto França na cena portuguesa.

António Pedro foi sem dúvida a sua grande influência, o que não surpreende. Enorme, magnético, poderoso, cosmopolita, vanguardista puro, “o primeiro de todos nós”, como lhe chamou Adolfo Casais Monteiro num obituário hoje tão esquecido e subestimado como injustamente o personagem que retratou, era na verdade o oposto físico e humano daquele que em 1972, com tremenda crueldade, João Abel Manta representou sobre a lâmina dum microscópio e, num outro cartum, assustadiço dobrado diante dum truculento Souza-Cardoso que o aborda na rua a propósito dum certo livro.

Isabel da Nóbrega, José Arrochela, Sophia de Mello Breyner e José Augusto França, em Julho de 1958

Durante muitos anos teve em casa e depois levou para o seu gabinete gulbenkiano em Paris o quadro “O Avejão Lírico” (99 x 79 cm, 1939), que Pedro lhe ofereceu e pôde escolher para capa do seu segundo volume de memórias; e já na capa do primeiro exibira outro quadro de Pedro, “Sabbat, Dansa de Roda” (1936), “ilustração conveniente” (Memórias para pós ano 2000, p. 13), que igualmente lhe foi dado. E sobre António Pedro haveria de escrever isto, em que se reflecte também um pouco, pelos obstáculos oficiosos que lhe foram motivos durante a ditadura: “Ninguém, entre tantos outros exilados no próprio país policialmente ocupado, foi mais imigrante do que ele, no terreno das artes plásticas. Essa a sua maneira, algo desencantada e bem dolorosa, de ser Português”.

Mas também, de certa maneira — e por idêntica circunstância e modo pessoal —, Jorge de Sena (1919-78), outro gigante na vastidão dos seus interesses e na avassaladora quantidade de escritos que produziu, e afinal o único de quantos conheceu de que lhe interessou publicar e comentar o comum epistolário (Imprensa Nacional, 2007, 443 pp.: 185 cartas e bilhetes em mais de três décadas, avisando França ser ele próprio, a p. 16, “mais discreto de queixas e de modos…”). Deixou, portanto, para uma posteridade difusa e incerta a divulgação das 327 cartas de e para Fernando Lemos (1967-2007), ou até aqueles 185 documentos epistolares com Eduardo Lourenço relativos aos anos 1940-80, ou os 89 de e para Casais Monteiro — os conjuntos mais extensos e significativos duma mole de documentação artística e histórica, nacional e internacional, que desde 2006 ficou à espera de conveniente estudo e utilidade, porém sob estrita e vigiada reserva na Biblioteca Nacional, pois a sua consulta e reprodução exigiam — e exigirão ainda por quanto tempo? — intermediação telefónica internacional ou selo postal, uma vez que o depositário manteve-se relutante a utilizar o prático correio electrónico.

Anunciada com uma média anual de dois ou três volumes, a lentidão dessa programação editorial [da Obra ou Biblioteca de José-Augusto França] — se não for corrigida, repondo toda a bibliografia francesa em quatro anos, em vez de sete ou oito — pode dissipar ainda mais, sem obviamente o querer, a presença do autor nos estudos a que dedicou o melhor da sua vida.

Admitindo em Maio de 2002 que “se fartou de tratar personagens existentes”, José-Augusto França acabou os seus dias voltando à ficção literária, com uma dezena de novos títulos. Exercícios de Passamento, um livro lançado em 2005 por editora pequena e quase insignificante, faz uma última ponte sobre esses dois mundos, com a narrativa de 50 mortes de ilustres das letras, artes e política portuguesas (o primeiro é o pintor primitivo Nuno Gonçalves), dando largas a uma efabulação consentida pelo aluvião de tantos saberes acumulados ao longo da vida bastante longa de um autor que vê para breve chegada a sua hora.

Mas onde esse retorno ao ficcional sobretudo se destaca é — do meu ponto de vista — na claríssima disposição testamentária que é a estrutura da edição da sua Obra ou Biblioteca, iniciada este ano pela Imprensa Nacional. Não é possível observar o elenco e sequência desses 16 livros sem admitir aí o cuidado do seu autor em pré-definir a sua própria posteridade (ou, dará no mesmo, a posteridade que ele se adiantou a recomendar-nos), colocando em posição de quase paridade o romancista e contista que teve de suspender-se para ser também — por “deveres de ofício” — crítico e historiador da arte, e que afinal retornou à sua imaginação literária quando liberto de encargos profissionais.

José-Augusto França em 1949

Alguns poderão ver nesse gesto uma maneira subtil de escapar ao crivo severo duma reavaliação crítica dos seus trabalhos historiográficos expostos ao tempo, porquanto José-Augusto França recusou rever ou actualizar a maior parte deles. Outros consentirão no convite feito pelo autor a uma revisitação da sua obra romanesca e teatral, que não obteve no passado o reconhecimento que ele esperou receber para ela. Anunciada com uma média anual de dois ou três volumes, a lentidão dessa programação editorial — se não for corrigida, repondo toda a bibliografia francesa em quatro anos, em vez de sete ou oito — pode dissipar ainda mais, sem obviamente o querer, a presença do autor nos estudos a que dedicou o melhor da sua vida.

Ainda assim, qualquer que seja o ponto de vista escolhido nesse inevitável exame de posteridade, convém recordar que o autor viveu convencido do seu excepcional valor, a ponto de ter concluído as suas Memórias ­— sinalizando-se assim como óbvio e parecido estrangeirado — com um “Ainda o apanhamos, ainda o apanhamos!” que coincide com o final de Os Maias de Eça de Queiroz. Realmente, José-Augusto França não (se) faria por menos…

Nota: O título deste artigo retoma o epitáfio escrito pelo próprio autor: “Aqui jaz José-Augusto | França, finalmente só. | Tudo foi, s’não, por seu gusto, | General, m’nistro ou bispó.” (“Memórias para o ano 2000”, fim do prefácio, p. 15).

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