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Zé Luís, o miúdo das Galveias

Galveias, vila do Alentejo, concelho de Ponte de Sor. É também o nome do novo romance de José Luís Peixoto, o ponto de chegada da “coisa sem nome”.

Numa tarde de outono como não houve muitas no verão, no jardim das Amoreiras em Lisboa, as árvores são muito diferentes das da vila alentejana onde cresceu o escritor José Luís Peixoto. Sentados num banco de jardim, o mote para a conversa foi “Galveias”, o romance, mas também o interior do país e a identidade de um mundo rural cada vez mais despovoado e só.

Galveias é uma vila do concelho de Ponte de Sor, distrito de Portalegre, a terra natal do escritor. Mudou-se para Lisboa no início dos anos 1990, para estudar na universidade, mas é a Galveias que regressa com frequência e é na vila e nas suas histórias que vive o imaginário que preenche muitos dos seus livros.

“Galveias” é também o quinto romance de José Luís Peixoto, um escritor português com obra traduzida em dezenas de línguas, vencedor de vários prémios e com honras de pertencer à lista dos autores mais importantes da sua geração. Já passou dos 40, mas na conversa sente-se de imediato a presença do miúdo das Galveias, no tom das palavras e na expressão de quem traz agarrado à pele uma fatia importante do passado.

“Entre todos os lugares possíveis, foi naquele ponto certo.” (pg. 13)

Assim começa o livro. Na herdade do Cortiço caiu “a coisa sem nome”, uma rocha que fede a enxofre, praga bíblica que infesta toda a vila e que está presente ao longo de toda a narrativa. A ação de “Galveias” decorre no ano de 1984, em duas estações bem assinaladas, o janeiro gelado e o setembro abrasador, momentos escolhidos propositadamente. “Eu tentei retratar aquela realidade em várias dimensões. Existem personagens mais ligadas aos campos e à agricultura, que sentem muito a natureza e outras personagens mais ligadas à vila [ambas já tinham sido retratadas noutros livros]. Este romance tenta fazer um balanço desse mundo, e por isso ele nunca poderia deixar de fora essa relação que existe com o tempo e com a forma como o tempo é sentido. Num lugar como Galveias o céu é muito mais presente do que numa cidade, afeta muito mais. Foi a pensar um pouco nisso que eu fiz essa divisão”, diz-nos José Luís Peixoto.

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“A terra é mais velha do que o céu, pensava. A terra sabe mais. Num dia, o céu muda de juízo a toda a hora, parece um rapaz com o cu aos saltos. Ora acha que há-de escurecer, ora acha que há-de clarear, não pára quieto, não está bem em lado nenhum. A terra tem boa paciência, assiste a essa desinquietação e resolve-a.” (pg. 44)

Este livro “é um romance com muitas personagens, e todas elas se cruzam. Nessas relações se vai dando conta da historia popular de um lugar, a partir das sua dimensão mais pública e privada.” É o relato da cultura e do modo de viver de há 30 anos. Estão lá todos, quem conhece esse tempo e lugar do interior reconhece-os: as viúvas, as procissões, o padre, a professora da primária e a telescola, o miúdo maluco, o mecânico das motorizadas e as corridas de Famel, as bebedeiras e as tascas onde se aborrecem os velhos, o cabo da guarda, as caçadas às lebres, o senhor doutor e a prostituta que também faz pão, até os cães têm nome e enredo.

Gente da vila e do campo, analfabetos, mas com um conhecimento profundo das ciências da terra e do céu. Uma terra e um tempo onde um banho por semana era o quanto bastava. E isto é apenas uma amostra. À semelhança dos outros romances de José Luís Peixoto, os detalhes ganham forma e sentido, sabor, cheiro, luz e temperatura. O frio é gelado e o calor, abrasador. As histórias são uma máquina do tempo, que transporta o leitor para um país profundo que não está tão distante como parece, nem tão pouco é apenas passado.

“O frio e o silêncio existiam ao mesmo tempo e ocupavam o mesmo espaço. Não havia fronteira entre o frio e o silêncio. Às vezes, confundiam-se.” (pg. 35)

“Galveias” é um livro de memórias. São histórias que não ultrapassam a realidade, ficcionada para proteger a identidade dos que lá estão. “As ligações [entre realidade e ficção] não são absolutas, ainda que um dos objetivos do livro seja de que aquelas histórias sejam verosímeis, algo que retrata o mundo e uma maneira de ver o mundo e de viver. E eu estou em muitos lugares naquela história. O olhar do narrador é o meu olhar. Ao escrever, convoquei a criança de 10 anos, embora com o filtro do homem de 40.” O filho do Peixoto da serração e da Alzira Pulguinhas anda por lá.

José Luís Peixoto contou com a ajuda da mãe para construir estas histórias. Aliás, foi em Galveias que se refugiou para começar a escrever o livro, precisou dessa proximidade. A dona Alzira Pulguinhas contribuiu com as memórias mais antigas — a narrativa do livro decorre em 1984 e daí para muitas décadas anteriores. “Cada palavra é uma palavra que vem da minha experiência, é um livro escrito a partir da minha memória. Sem que efetivamente eu seja nomeado no texto, é um livro muito conotado comigo pela minha presença extra textual. A única ligação que existe entre o autor e o texto é uma pequena dedicatória à minha mãe e ao meu pai. Este é o único lugar onde eu estou.” Mas não, o cachopo anda por ali, memórias velhas espalhadas por toda a parte.

Jose Luis Peixoto / GALVEAS

O livro saiu há pouco mais de uma semana e a primeira apresentação pública decorreu precisamente na vila de Galveias. E como é que as pessoas reagiram? “Logo nesse dia alguns conhecidos começaram a encontrar paralelismos entre os personagens do livro e algumas das pessoas de lá”, disse-nos, apesar de ter tido o cuidado de “não fazer corresponder nenhum nome a uma história, para salvaguardar os intervenientes e o próprio espaço do romance, mesmo que se ampare na realidade.” Isto porque apesar de se tratar de um romance, “a fronteira entre a ficção e a realidade é muito difícil, um exercício impossível de impedir para as pessoas que conhecem Galveias, mas para o leitor que vive fora daquela realidade, o melhor é mesmo acreditar em tudo.”

E é aqui que entra o país profundo. “Aquela historia não é só Galveias. É sobre Portugal e sobre o interior.” José Luís Peixoto acredita que “aquele interior condensa alguns elementos do ser português que estão presentes noutros espaços geográficos do país, que são muito importantes e que devem ser preservados. Nós aqui, às vezes, com uma lupa, encontramos muitas diferenças, da mesma maneira que lá, na vila, as pessoas encontram muitas diferenças entre Galveias e Avis que fica a 16 quilómetros, no entanto, quanto mais nos afastamos, mais reparamos em tudo aquilo que essas realidades partilham. E o mesmo acontece também em relação a outras vivências do interior português. Sobretudo partilham a maneira de ver o mundo.”

Jose Luis Peixoto / GALVEAS

E não se pense que o olhar do miúdo das Galveias fica assim tão distante da dimensão cultural das povoações do interior de outros países. “A experiência tem-me mostrado que o mundo rural noutros países e realidades radicalmente diferentes, acaba por ter uma série de características que muitas vezes são comuns e que são transnacionais. Há uma série de características que são semelhantes, se estivermos a falar de uma pequena comunidade, onde as pessoas têm uma proximidade e uma dependência diferente da natureza, seja onde for, o interior tem a sua própria identidade.”

E é a perda dessa identidade, da ruralidade, que preocupa o autor. O interior do país, cada vez mais despovoado, deixa-o triste. Por isso concretizou este projeto, planeado desde há muito. “Tinha muita vontade de dar essa alegria a Galveias. Sinto que se trata de uma região muito esquecida e que tem sofrido muito nestes últimos anos, à qual tenho a oportunidade de dar alguma atenção, que se fale nisso, que se pense sobre isso. Considero que é urgente fazê-lo. A ação deste romance passa-se em 1984 e entre esse momento e agora muito aconteceu, sobretudo de negativo nesta região do país. Este é o momento, com toda a obsessão que existe à volta de temas económicos, é uma boa ocasião para refletirmos e para percebermos que temos um país altamente desequilibrado, que precisa de atenção e que se trace um plano nacional para o recuperar e para o ajudar a desenvolver-se.”

“A terra faz nascer do seu interior. Depois, acautela essa vida, alimenta-a, oferece-lhe horizonte e caminho. A seguir, tarde ou cedo, recupera o que emprestou. Plantas e animais caíram nesta terra, mergulharam na sua profundidade até lhe tocarem o centro. […] A humanidade inteira, pais dos pais foram recebidos nesta terra onde viveram. A terra é tudo o que existiu, desfeito e misturado.” (pg. 58)

Para quem não conhece o interior português, ler “Galveias” é aprender. O romance “fala de um tempo em que aquela era uma terra viva, onde havia crianças, gente a viver. Hoje em dia já não é essa a realidade, são cada vez menos as crianças, a população está muito envelhecida. Em 30 anos, Galveias tem metade da população que tinha. Às vezes acho que é preciso que certas coisas batam no fundo. Com todas as dificuldades, isto ainda não é o fundo. Mas eu sou otimista, sinto que hoje, dentro de diversas áreas artísticas, na música, na literatura, no cinema, já não existe um certo complexo que existia antes em relação a estas raízes. Existe até uma vontade de trabalhá-las, de atualizá-las. Em muitos aspetos, este livro é também uma afirmação de identidade: eu sou das Galveias, eu sou português.” José Luís Peixoto tem uma intenção clara, “que cada um se sinta motivado para fazer essa mesma afirmação em relação a si próprio, na medida em que o país precisa dessa auto-estima e eu acho que cada um também precisa dela.”

Mas afinal o que é “a coisa sem nome”? José Luís Peixoto ri-se.
“É muito curioso isso porque neste romance tudo é nomeado, existem os espaços que são nomeados, os lugares, as ruas, quem tiver oportunidade consegue traçar ali um roteiro onde aconteceu tudo. Existem mais de cem personagens nomeadas ao longo do livro, todas elas com um nome, às vezes até com mais de um nome, mas esse objeto é a única coisa que efetivamente que não tem nome. Não nomea-la é contribuir para a sua importância, para o seu mistério. Aquilo que não tem nome, foge de definições, por isso vamos ser nós a dar-lhe uma forma. E essa forma, dentro do livro, é a forma do medo, do desconhecido. O cheiro de enxofre tem ressonâncias bíblicas fortes, ligadas à condenação e ao apocalipse, que estão ligadas ao inferno, tem uma série de conotações negativas. Não poderia ser nomeada, senão não seria assim tão má. Se a maldade tivesse um nome concreto, não era tão má assim.”

“Nesse preciso momento, caiu a primeira gota. Logo a seguir, uma chuva mundial. Era o céu inteiro que chovia. Sem descanso, sem uma interrupção, noite e dia, exatamente com a mesma avidez, choveu durante uma semana, sete dias seguidos.” (pg. 26)

Em “Galveias” consegue-se ouvir as motorizadas a acelerar, as velhas a ralhar umas com as outras, a enxada a bater na terra, as pancadas secas do machado que arranca a cortiça do sobreiro. Sente-se o cheiro a suor dos homens cansados, imagina-se a largueza das roupas gastas e das botas largas. A vida do campo continua a ser assim, uma empreitada dura. “O meu trabalho, muitas vezes, passa por duas vertentes essenciais. Uma é falar do mundo às Galveias, outras vezes é falar das Galveias ao mundo. E este é claramente um desses momentos. Acredito que o mundo se vai interessar por Galveias.”

“Galveias” é um livro que faz rir, mas também um romance que revira as tripas, é ficção que não se deixa ultrapassar pela realidade. É um exercício de memória, está em paz com o passado e é também um agradecimento por tudo aquilo que fez por José Luís Peixoto, hoje um dos autores mais interessantes da literatura portuguesa contemporânea.

“Galveias” é um romance publicado pela Quetzal Editores, 2014.

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