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O escritor Joshua Cohen
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O escritor Joshua Cohen

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

O escritor Joshua Cohen

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Joshua Cohen, autor de "A Família Netanyahu": "Bibi quer a cabeça de Sinwar [líder militar do Hamas] numa bandeja"

Joshua Cohen escreveu um livro de ficção baseado na experiência real dos Netanyahu nos EUA, em 1950. Judeu americano que vive em Telavive, mantém um olhar provocador sobre todo o conflito.

    Índice

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Joshua Cohen é o autor de A Família Netanyahu (ed. D. Quixote), que venceu o Prémio Pulitzer em 2022 — na área da ficção. O livro, porém, tem um fundo de qualquer coisa verídica: a experiência do conhecido crítico e professor catedrático Harold Bloom, como o próprio a contou a Cohen. Isso mesmo assume o escritor, no epílogo intitulado “Créditos, incluindo um especial”, enumerando que, numa das várias conversas que mantiveram, Bloom lhe falou sobre aquela vez em que “a universidade o encarregou de coordenar a visita ao campus de um obscuro historiador israelita chamado Ben-Zion Netanyahu, que se apresentou para uma entrevista de emprego e uma conferência levando a sua mulher e três filhos a reboque e armou uma grande confusão”.

Um desses filhos era “Bibi”, a alcunha pela qual sempre foi conhecido Benjamin Netanyahu, atual primeiro-ministro israelita. O livro de Cohen aproveita aquele momento fortuito para ficcionar uma experiência entre Ben-Zion e um outro professor, também ele judeu, e explorar profundamente o choque entre dois mundos tão presentes na década de 1950: a experiência do judeu americano vs. a experiência do judeu do recém-criado Estado de Israel.

Joshua Cohen sempre escreveu ficção, mas A Família Netanyahu fê-lo mergulhar na atualidade. Judeu norte-americano a viver atualmente em Telavive, tornou-se quase como um interlocutor dessas duas experiências, comparando, analisando e ligando-as em várias entrevistas e declarações públicas. Tornou-se também, quase que de forma indireta, num descodificar de Bibi — alguém a quem muitos recorrem para compreender melhor o líder israelita.

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De passagem por Lisboa para participar num dos encontros “Meet the Author – Encontros com Escritores Americanos”, promovidos pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), Joshua Cohen deu uma entrevista ao Observador onde reflete sobre a experiência “do povo judeu” face ao ataque de 7 de Outubro e a atual guerra em Gaza, nunca fugindo das declarações provocadoras.

Fala sobre antissemitismo, fazendo uma forte distinção entre palestinianos afetados (“devemos perdoar-lhes tudo [o que dizem]”) e o “tipo branco” a gritar “Do rio até ao mar” no meio da rua —o slogan que se refere a um Estado da Palestina do rio Jordão e ao Mar Mediterrâneo, equivalente à não-existência do Estado de Israel. Fala também sobre a falta de acordo para um cessar-fogo e porque razão crê que Israel tem resistido: “Há esta imagem de [Yahya] Sinwar [líder militar do Hamas] num túnel, rodeado dos reféns que restam. E essa é uma imagem muito forte que está no fundo da nossa psique e que, de certa forma, se tornou no objetivo”. E fala, inevitavelmente, sobre Netanyahu, o “Rei de Israel” que se tornou num “Rei Lear” pelo que acontece “em todo o lado” — o retrato solitário e decadente de “alguém se mantém no poder demasiado tempo”.

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

A distância entre os judeus americanos dos judeus de Israel, mais aguda na década de 1950. “Foi uma espécie de era dourada. Enquanto que em Israel era um bando de tipos a matar e a serem mortos no deserto”

Gostava de começar por lhe fazer uma pergunta que creio que já lhe fizeram algumas vezes.
Okay…

Mas tendo em conta como as coisas se desenvolveram desde o 7 de Outubro, talvez a sua resposta tenha mudado entretanto. A Família Netanyahu é um livro que aborda muito claramente a diferença de experiência dos judeus americanos quando comparada com a dos judeus que viviam no território da Palestina e depois no recém-criado Estado de Israel. No momento que vivemos atualmente, em que parece haver um maior afastamento político entre os governos destes dois países, crê que essas experiências se tornaram ainda mais diferentes?
Hmm. [Pára para pensar]. Diria que não tem nada a ver com os governos. As pessoas, aquelas a quem chamamos “o povo judeu”, existem como uma identidade separada das identidades políticas dos países onde vivem. Acho que estamos a assistir precisamente ao oposto. Na altura em que o livro se passa, entre 1959 e 1960 havia esta grande quebra dentro do mundo judaico. Tento explicar como, logo a seguir à II Guerra Mundial, todos os judeus do mundo, na prática, tentaram tornar-se outra coisa qualquer. Os judeus europeus já não estavam a ser assassinados, mas começam a sair da Europa. E a América torna-se [o lugar d]a maior comunidade, com exceção da Palestina, que acaba por dar lugar [à criação do] Estado de Israel. Há também um enorme êxodo de judeus de países árabes, como os mizrahim [originários do Médio Oriente e norte de África], que saem voluntariamente dos seus países ou são empurrados, na sequência da criação do Estado de Israel em 1948. É nesta altura que, por fatores socioeconómicos, a comunidade americana e a comunidade israelita passam a ter noção da experiência uma da outra. Olhemos em termos históricos. Quando se fala no regresso a Sião: desde a destruição do templo romano que demorava semanas, senão meses, a chegar até lá. Morria-se pelo caminho. Olhem para os Cruzados: era perigoso, havia quem não chegasse sequer. Mas desde os anos de 1950 que passou a ser possível viajar para lá. Repare, vou daqui de Lisboa para Telavive e chego em cinco horas… Em termos históricos isto é quase um milagre. Portanto acho que vários fatores contribuíram para, na verdade, aproximar a experiência americana da experiência israelita, em concreto a facilidade de viajar entre os dois sítios.

"É frequente ouvir jovens israelitas que vão aos EUA, a Berlim, à América do Sul, e é lá que se sentem pela primeira vez judeus. Porque nunca se tinham deparado com o antissemitismo — com a guerra sim, sabem o que é a guerra, mas não conheciam o antissemitismo."

Depois tivemos aquele espírito de voluntarismo americano na década de 1970, e na Europa também, das pessoas irem trabalhar para lá, para os kibutz. E a tradição dos israelitas de viajarem depois de cumprirem o serviço militar — porque para os israelitas isso é muito importante, quando se vive num país onde não é possível atravessar a fronteira de carro, sair do país torna-se uma obsessão. Isso criou uma sensação mais profunda da diáspora. É frequente ouvir jovens israelitas que vão aos EUA, a Berlim, à América do Sul, e é lá que se sentem pela primeira vez judeus. Porque nunca se tinham deparado com o antissemitismo — com a guerra sim, sabem o que é a guerra, mas não conheciam o antissemitismo. Mas a altura em que o meu livro se passa é a altura em que as duas comunidades estiveram mais afastadas. Em que os judeus americanos gozavam de todos os privilégios da experiência triunfante da II Guerra Mundial, de uma economia pós-guerra, de uma assimilação dos judeus na cultura mainstream americana — através de Hollywood, da televisão. Foi uma espécie de era dourada. Enquanto que em Israel era um bando de tipos a matar e a serem mortos no deserto. Desde os anos 70 e 80 que essas experiências convergiram.

Mas acha que nos últimos meses alguns desses antigos sentimentos de distanciamento regressaram?
Infelizmente, a minha resposta vai ser provocadora. Não tem de quê [risos]. Os media americanos e, por arrasto, os europeus, gostam de sublinhar as exceções — quantos judeus estiveram presentes numa manifestação por um cessar-fogo, por exemplo, adoram falar sobre isso. E creio que isso é um exagero imenso. Estão sempre a entrevistar e a filmar as mesmas 200 pessoas nos EUA, é hilariante, conheço metade deles. Acho que na verdade os judeus estão muito mais unidos do que divididos e isso surpreendeu-me. Achei que, após o horror e choque inicial do 7 de Outubro, haveria unidade, mas que, quando começasse a guerra e os bombardeamentos aéreos, a morte de civis, etc… a distância foi maior no inverno. Nos EUA, a minha experiência é que, para muitos judeus, as manifestações começaram a parecer mais e mais antissemitas e, portanto, passaram a contar com menos presença e menor apoio de judeus. Foi aí que alguns dos protestos passaram das marcas. E, é claro, para cada pessoa as marcas são diferentes — definir onde está a linha é quase orweliano, é como insistir em definir critérios para diferenciar o antissemitismo do antissionismo, parece-me fútil. Mas, à medida que mais e mais judeus, a nível individual, começaram a sentir que as reivindicações passaram de exigir um cessar-fogo para questionar a legitimidade do Estado [de Israel], que passaram de exigir a demissão de [Benjamin] Netanyahu para passar a exigir o fim da ‘ocupação’…. Todas essas coisas relacionam-se com a acusação de que há uma mentalidade de colonizador [por parte de Israel] e isso ativou um medo muito primário entre os judeus.

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

A maioria dos judeus acredita que o Estado de Israel é algo necessário para a sua sobrevivência e sente que isso está a ser questionado. Mais do que ser necessário, sentem-se insultados por a sua legitimidade ser questionada. Necessário não é uma boa palavra, porque a resposta na América será dizer aos judeus: “Ninguém vos está a por numa fila e a enviar-vos para um campo de concentração”. Acho que é mais a ideia de legitimidade, de Israel ser um Estado democrático. Não estou a falar dos territórios ocupados, mas do Estado dentro das fronteiras que tem neste momento. Não estou a dizer que apoio um lado ou outro ou que há aqui uma definição moral correta, mas estou a dizer que, dentro do nosso Estado, há democracia, há direitos para a comunidade LGBT, há 27% de população árabe, há os druze [comunidade árabe minoritária em Israel que mantém o uso da sua língua e cultura] — alguns até fazem serviço militar. E dizem-nos que não somos legítimos?

“Há o antissemitismo. Depois há o antissionismo. E depois há uma terceira [categoria], que é a crítica ao governo”

Acha que algumas das manifestações nos EUA ultrapassaram essa linha — seja ela qual for — e podem ser descritas como antissemitas? Por exemplo, o que acha do uso da expressão “Do rio até ao mar”? Os manifestantes têm consciência de que isso significa a não-existência do Estado do Israel ou não têm noção?
Em primeiro lugar, não sei se isso de facto interessa. Não sei. Ou melhor: não sei se é possível contê-las [esse tipo de expressões]. Sei que há entre os manifestantes pessoas que, como eu, estão horrorizadas com a morte em massa de civis. Mesmo que aceitemos os números do governo de Israel, que dizem que 15 a 20 mil dos que morreram eram combatentes do Hamas, continuamos a ter pelo menos 20 mil civis mortos.

"É ridículo achar que alguém que foi afetado dessa forma tenha atenção à forma como exprime a sua mensagem. Estão a agir de um ponto de partida de tal raiva, luto e horror que devemos perdoar-lhes tudo o que dizem. A minha questão é com as pessoas que estão fora da comunidade. Uma coisa é Gaza, outra coisa é o resto do mundo." 

O que é muito mais do que em qualquer outra guerra em Gaza.
Bem, é certamente muito mais do que o número de pessoas que eu matei na vida. E quando se é alguém que tem lá família, alguém cuja família foi morta, alguém que foi afetado por isto… É ridículo achar que alguém que foi afetado dessa forma tenha atenção à forma como exprime a sua mensagem. Estão a agir de um ponto de partida de tal raiva, luto e horror que devemos perdoar-lhes tudo o que dizem. A minha questão é com as pessoas que estão fora da comunidade. Uma coisa é Gaza, outra coisa é o resto do mundo. Quer dizer, um palestiniano que viva em Inglaterra e tenha a família lá, por exemplo, eu compreendo. Agora, quando vejo um tipo branco a gritar isso no meio da rua, acho que ele deve entender o impacto do que está a dizer. E creio que uns entendem e outros não.

Há pouco falávamos sobre como o antissemitismo por vezes é misturado com antissionismo…
Mas onde está a terceira categoria? Porque há o antissemitismo. Depois há o antissionismo. E depois há uma terceira, que é a crítica ao governo [de Israel]. Dito de outra forma: eu não sou anti-americano e não sou contra a democracia, mas acho que alguns dos nossos Presidentes e algumas das nossas políticas foram uma merda.

Mas era aí que eu queria ir. O próprio governo de Israel não tende por vezes a classificar as críticas de que é alvo como antissionismo e às vezes até antissemitismo?
Não sei. Todos os sábados à noite há centenas de milhares de pessoas nas ruas [em Israel], a levar com canhões de água, a ser atropeladas por polícias a cavalo, que exigem o fim do regime de Netanyahu. Andam a queimar pneus na auto-estrada de Ayalon, andam em lutas de rua com agentes da polícia. E alguns são militares na reserva, pessoas que cumprem o seu serviço na reserva durante a semana e ao fim de semana vão protestar. Portanto não me parece que aí eles [o governo] confundam uma coisa com a outra.
Agora, internacionalmente, talvez. Depende dos slogans. Se os slogans forem: “Netanyahu fora”, “Likud fora”, “fim da ocupação”, “saiam dos territórios”. Mas há um minar da raison d’être do Estado [de Israel] e isso toca na ferida. Também temos de entender que, da perspetiva de Israel, há toda uma ordem internacional desenhada para reforçar a falta de legitimidade [do seu Estado]: na ONU, na UNRWA [agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos], nos governos mundiais que têm dado fundos ao Hamas que eles usam para construir os seus túneis. Agora, é claro que o próprio Netanyahu também deu fundos a estas pessoas que atacaram Israel. Mas [os israelitas] quando veem pessoas nas ruas a criticar Israel pensam: “Estas são as mesmas pessoas cujos governos financiaram a construção dos túneis onde estão os nossos reféns”. E, para além disso, creio que há uma desresponsabilização dos líderes palestinianos.

Marwan Barghouti, o eterno D. Sebastião dos palestinianos que ninguém quer (nem o Hamas). “Se alguém sugerisse isso numa reunião do Departamento de Estado, riam-se à gargalhada e expulsavam essa pessoa”

Para lá do Hamas, há a própria Autoridade Palestiniana? Parece quase arredada do tema.
Bem, eles não têm eleições há anos. O Abu Mazen [alcunha usada na região para Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestiniana] neste momento pesa 200 quilos e tem centenas de anos. Está a perder toda a popularidade. Ele e Netanyahu são muito semelhantes no sentido em que minaram qualquer protégée que pudessem vir a cultivar. Todos os potenciais sucessores foram sistematicamente prejudicados, alguns tiveram mesmo a carreira destruída.

Ao mesmo tempo, a administração Biden fala frequentemente em off nos jornais norte-americanos sobre como o seu plano para o pós-guerra inclui a Autoridade Palestiniana e que é o governo de Israel que resiste a essa ideia. Acha que é uma narrativa verdadeira ou não há qualquer desejo de que isso aconteça?
O que eu acho é que se precisasse de ganhar tempo e de distrair o mundo do facto de que sou eu que estou a fornecer as bombas que caem sobre os civis, também diria isso à imprensa. Não me parece que a ideia de uma Autoridade Palestiniana revitalizada seja boa. A verdade é que, se houvesse eleições na Palestina agora, o vencedor seria [Marwan] Barghouti. Ele está numa prisão israelita por ter feito uma série de ataques terroristas há décadas. E, ano após ano, continua a ser popular. Continua a sê-lo porque é incorruptível e porque não é um islamista, é um nacionalista. E a maioria da população [palestiniana] prefere isso. É visto pela maioria como uma forma de manter integridade e não estar dependente de poderes estrangeiros. Agora: se a revitalização da Autoridade Palestiniana significasse a libertação de Barghouti e permitir-lhe que concorresse a eleições, maravilha. Mas é um sonho louco, é psicótico. Se alguém sugerisse isso numa reunião do Departamento de Estado, riam-se à gargalhada e expulsavam essa pessoa. Agora, também direi isto: toda a gente diz “Libertem os reféns”, mas ninguém quer saber dos prisioneiros que seriam libertados em troca. O Hamas faz listas com os prisioneiros políticos que quer ver libertados. Barghouti nunca está nessa lista. Claro que não está. É claro que não.

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Marwan Barghouti continua a ser a figura palestiniana mais popular, mas está preso em Israel há décadas por atentados terroristas

AFP via Getty Images

Porque seria uma ameaça ao próprio Hamas?
Exatamente. E isso diz tudo. Mesmo que não aceitemos nenhuma das outras narrativas do Hamas, mesmo que se ache que eles não usam civis como escudos humanos, que não roubam ajuda humanitária, mesmo que não se acredite em nada disso. Eles tiveram a oportunidade de por numa lista alguém que poderia ajudar a reconstruir ou restabelecer algum tipo de soberania ou legitimidade [para os palestinianos]. E Barghouti não estava na lista.

O taxista de Telavive que captou algo sobre Netanyahu (e Putin). “Há qualquer coisa nestes líderes que o são há muito tempo, não sei o que lhes acontece, mas começam a parecer senhoras de idade”

Olhando para os reféns que ainda estão em Gaza, não é sequer claro quantos estão vivos. As famílias em Israel têm sido muito críticas. Acha que essa mobilização é eficaz junto do governo? Ou a libertação dos reféns apenas é promovida em voz alta, mas, na verdade, não é o principal objetivo?
Creio que chegámos a um ponto em que há uma narrativa que diz que Netanyahu não quer um acordo por causa dos seus parceiros de coligação de extrema-direita, porque um acordo significaria um colapso da coligação, uma nova eleição e ele perderia. Haveria comissões sobre o que falhou, etc.

E teria de ir ao seu julgamento.
A vários julgamentos, até! Isto pode ser verdade. No entanto, tenho sentido cada vez mais que há outra hipótese: a de que não haverá acordo porque ele não poderá apresentá-lo como uma vitória. A narrativa de que Netanyahu não aceita um acordo porque podia por em causa a sua sobrevivência política é muito de acordo com o seu caráter. O Fórum das Famílias dos Reféns tem sido muito ativo desde o início, não apenas dentro de Israel, mas também junto de governos estrangeiros — não nos podemos esquecer que também há pressão internacional, há reféns que são cidadãos americanos, por exemplo. Portanto quero acreditar que há algum consenso [de que é preciso salvá-los].

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Mas, puramente no campo da especulação, porque isto é matéria dos serviços secretos: eles [o Hamas] não sabem onde estão os reféns. Vejamos a última operação de resgate, em que os reféns estavam em túneis por baixo de casas de famílias — isto indica-me que é uma rede que não está interligada e organizada. Portanto, como é que eles são resgatados? Como é que eles podem ser recolhidos? Fazer um acordo de cessar-fogo que não traz de volta os reféns ou só traz alguns deles. Que tipo de acordo seria esse? Porquê aceitar um acordo desses? O que se recebe em troca?

Mas, ao mesmo tempo, porquê continuar com os bombardeamentos? O que tem Israel a ganhar com isso?
Está a perguntar-me a mim, caso eu fosse primeiro-ministro? Ou está a perguntar-me o que eu acho que Netanyahu pensa? Porque estes cenários que estou a colocar não são o que eu penso, são como eu acho que ele pensa.

Estou a pedir-lhe que se ponha na cabeça de Netanyahu. O que é que ele quer?
Quer a cabeça de [Yahya] Sinwar [líder militar do Hamas] numa bandeja. É isso. Há quem diga que ele pode ter fugido, há quem diga que ele saiu pela fronteira do Egipto, mas… Mas o que Netanyahu quer é dizer que cortou a cabeça da serpente. Apesar de aparentemente haver alguma divisão entre Sinwar e a liderança política do Hamas, que está no Qatar. Há esta ideia no imaginário popular, que pode ser ficção, pode ser uma alucinação, pode ser coisa de Hollywood. Mas há esta imagem de Sinwar num túnel, rodeado dos reféns que restam. E essa é uma imagem muito forte que está no fundo da nossa psique e que, de certa forma, se tornou no objetivo.

"Mas tal como o Hamas é uma ideia, o Estado de Israel também se baseia na ideia de que nunca se conseguirá convencer as pessoas a não serem antissemitas. Baseia-se na ideia de que é necessário criar um Estado, um exército e um programa nuclear. E ao remover Sinwar e ao desmantelar as operações financeiras do Hamas e a forma como construi armamento dentro de Gaza, é certo que se continua a ter uma guerra em termos de ideológicos, mas perde-se a capacidade militar representada por Sinwar. "

Mas isso resolveria o problema? O próprio Joshua escreveu num artigo na The Atlantic, a seguir ao 7 de Outubro, onde dizia que “com cada bomba largada em Gaza, está-se a criar uma nova geração de pessoas que odeiam os judeus”. 
Sim, sem dúvida. Mas tal como o Hamas é uma ideia, o Estado de Israel também se baseia na ideia de que nunca se conseguirá convencer as pessoas a não serem antissemitas. Baseia-se na ideia de que é necessário criar um Estado, um exército e um programa nuclear. E ao remover Sinwar e ao desmantelar as operações financeiras do Hamas e a forma como construi armamento dentro de Gaza, é certo que se continua a ter uma guerra em termos de ideológicos, mas perde-se a capacidade militar representada por Sinwar. Eles não saberiam como chegar às contas na Suíça. Não saberiam como montar um míssil iraniano. Mas a questão é que, numa frase muito americana, esta não é uma guerra para “conquistar os corações das pessoas”. Essa ideia nunca esteve em cima da mesa. Já agora, o próprio conceito de Israel de ter financiado parte dessa estrutura em Gaza [no passado] era uma tentativa de “conquistar os corações”, esse era o conceito de Netanyahu. Uma estratégia de: “Nós pagamo-vos e vocês deixam-nos em paz”.

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Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, tem rejeitado um novo acordo de cessar-fogo

AFP via Getty Images

Nessa mesma entrevista também disse que hoje olha para Netanyahu como uma espécie de Rei Lear. Mas, em tempos, ele era Bibi melech Yisrael [Bibi, rei de Israel] — ignore a minha má pronúncia —, isso era dito em comícios. O que é que aconteceu?
O que acontece em todo o lado quando alguém se mantém no poder demasiado tempo. Perdoe-me o que vou dizer, que pode ser um comentário misógino, mas vou repetir o que me disse um taxista há uns tempos. Ele disse-me: “Sabe qual é o problema do Bibi?” E eu pensei: “Oh não, aqui estou eu num táxi e lá vem alguém explicar-me tudo.” E ele diz: “Vi-o no outro dia. Há qualquer coisa nestes líderes que o são há muito tempo, não sei o que lhes acontece, mas começam a parecer senhoras de idade. Olhe para o Arafat, olhe para o Bibi. Começam a parecer-se com as avós deles.” [risos] Peço-lhe desculpa, mas achei que havia aqui uma ideia interessante.

Pelo menos algo engraçada.
Sim. E ele ainda acrescentou: “Sabe quem também está a ficar assim? O Putin.” E aí eu pensei: “Há aqui qualquer coisa”. Quando as pessoas se mantêm durante muito tempo no poder começam a usar muito maquilhagem de cada vez que aparecem em frente a uma câmara. E já não aceitam que alguém lhes diga que não, geralmente destruíram qualquer concorrência e há uma corrupção profunda dos seus princípios iniciais. E acho que isto é verdade, é sempre assim. Acontece o mesmo com os escritores — temos falado aqui muito sobre política, mas não falámos de literatura, não faz mal. Mas coloco-me a questão: se alguém for escritor durante 50 anos, é sempre um bom escritor? Ou está apenas a escrever um livro por ano porque é escritor e as pessoas o apelidam de escritor?

E porque a sua própria identidade se tornou essa e já não sabe fazer outra coisa?
Exato. Em privado é ainda mais exagerado, mas… Em política é o mesmo processo. É o mesmo processo.

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