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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Júlio Resende encontrou a música que se esconde entre o homem e as máquinas

Génio e assombro: o próximo álbum do pianista, "Cinderella Cyborg", é uma reflexão sobre homens e máquinas, músicos e computadores. "Sou um explorador e gosto de transgredir", diz em entrevista.

Chegados a um dos auditórios interiores da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, com um pequeno atraso, encontramos Júlio Resende já sentado ao piano, de camisa branca, calções e ténis, embrenhado nas teclas e nos novos temas de Cinderella Cyborg. O disco chega às lojas e às plataformas digitais de streaming esta sexta-feira, 5 de outubro, e até esteve para se chamar Piano Cyborg and Songs, porque no fundo o que contém são canções: “Este não é um disco de jazz, é um disco que tem improvisação. São canções, foi o que quis fazer”, dirá ao Observador, já em entrevista na esplanada dos jardins da Gulbenkian.

Também não é “um disco [feito] para um nicho, necessariamente”. Mais fácil de se ouvir com assombro do que de descrever, Cinderella Songs é o novo trabalho de originais do pianista português, que nos últimos anos reinventou fados cantados por Amália Rodrigues ao piano (Amália por Júlio Resende), juntou-se à grande cantora catalã Sílvia Pérez Cruz para um encontro ao vivo que resultou em Fado & Further, dirigiu uma banda por si idealizada (Alexander Search) e incumbida de fazer da poesia inglesa de Fernando Pessoa música de classe indisputável, compôs um tema finalista (e segundo classificado) da última edição do Festival da Canção (“Para Sorrir Eu Não Preciso de Nada”) e tornou-se escudeiro e braço direito de Salvador Sobral, compondo para o cantor, produzindo a sua música e levando-o a cantar ao vivo música improvisada ainda por descobrir, jazz de alto gabarito feito por uma banda cada vez mais oleada na fuga ao cânone.

Cinderella Cyborg, contudo, não é apenas isso, é uma reflexão sobre a benignidade que pode haver na relação entre homens e máquinas, humanos e tecnologia, músicos e técnicas de produção digital (os beats, os softwares, os pads). É um diálogo assombroso entre o piano de Júlio Resende, centro de operações que indica o caminho ao contrabaixo, guitarra elétrica e bateria, e a música eletrónica, um disco em que a improvisação volta a servir canções onde se ouve fado, jazz e música clássica. O objetivo era “criar uma identidade”, fazer uma música tão demarcada que “se alguém quiser ir para um lugar próximo do que se ouve neste disco, tenha de ir procurar isso” aqui e em mais lado nenhum.

Se Cinderella Songs fosse só isso já cumpria os objetivos a que o seu autor se predispôs. É mais do que isso. Não é “disco do ano”, medida usada habitualmente para avaliar o nível de um disco, é um disco de uma vida e de uma geração, ao mesmo tempo clássico e futurista, belo e inquietante, que se adivinha um marco em toda a produção musical portuguesa.

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https://www.facebook.com/julioresende.music/photos/a.230545647035322/1873416016081602/?type=3&theater

Júlio Resende, para quem a música resulta em simultâneo de “uma necessidade de refúgio” e de “uma necessidade de aventura, de partida para um outro lugar”, pianista que um cronista do El País comparou ao inimitável Keith Jarrett e que perante os aplausos se sente “pequeno” e “envergonhado” por achar que “nunca conseguiu ir tão longe quanto gostaria”, está satisfeito com o disco. Sentado na esplanada do café da Gulbenkian, sorrirá, dirá que esteve algum tempo “sem ouvir as gravações” mas fê-lo agora e achou “olha, isto está bom”.

É precisamente o que notamos. Que “está bom” quando ouvimos, no tema que dá título ao disco, o arranque com diálogo à vez entre piano e uma máquina aparentemente a ser arranjada (como num filme de Chaplin) e ainda um rapper londrino rimar, com uma impressionante capacidade de desvendar paisagens só com recurso à palavra, sobre Lisboa, a exploração dos oceanos e a passagem do tempo. Que “está bom” quando ouvimos uma fabulosa gestão dos silêncios e quase silêncios em “Tema Bonito para o Salvador”, ou quando ouvimos a melodia melancólica e belíssima de “ANA(GRAMA)”.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Está bom”, note-se ainda, quando ouvimos beats misturados com o fado imaginado pelos dedos de Júlio Resende em “Fado Cyborg”, quando ouvimos uma declaração de amor à ida à lua (com direito a diálogo entre o piano e gravações das comunicações espaciais de Neil Armstrong) e quando ouvimos o silêncio regressar para nos explicar que o que não se ouve é tão importante quanto o que se ouve, no tema “Cyborg Improvisa Sobre Luz e Madrugada”. “Está bom”, também, quando a eletrónica impera sobre o piano, deixando-o ainda assim respirar com fulgor em “After Comedy Comes Peace”. E assim sucessivamente, tema após tema, sempre “entre a extrema imperfeição do humano e a perfeição impossível da máquina”, como aponta o pianista no texto de apresentação do álbum, incluído na versão física do disco.

Se o mundo estiver de ouvidos atentos, não será fácil a Júlio Resende continuar a desdobrar-se entre projetos, continuar dividir-se entre concertos seus e concertos com Salvador Sobral. Mas a facilidade é sobrevalorizada: “A semana também tem sete dias” e “também há concertos entre domingo e quinta-feira”, pelo que, com algum esforço, tudo se arranja. Em novembro, há concertos de apresentação do disco, respetivamente no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa (dia 2) e na Casa da Música, no Porto (dia 13).

“Não estou à espera de grande coisa. Ou de quase nada”

Para este disco apostou muito numa fórmula: misturar instrumentos tradicionais como piano, contrabaixo (tocado por André Rosinha), guitarra elétrica (André Santos) e bateria (Pedro Segundo) com produção eletrónica (André Nascimento). O que o inspirou mais a seguir este caminho, projetos como Ogre [com a cantora Maria João] e Alexander Search, ter interesse nesse cruzamento de métodos enquanto ouvinte ou a reflexão filosófica sobre homens e máquinas que explica num texto que acompanha o álbum?
Esses três momentos estão de facto presentes nesta nova etapa que é este disco. Ogre, por exemplo, é um projeto antigo, mas que começou já depois de um trabalho que fazia com o André Nascimento com piano e eletrónica. Depois Alexander Search foi a continuidade. Acho que a reflexão sobre o mundo das máquinas e o mundo humano também é uma continuidade disso e culmina tudo neste disco que tenta criar uma relação benigna entre o mundo das máquinas e o mundo dos homens.

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Apesar de se dizer habitualmente que estes temas, homens e máquinas, tecnologia e humanos, são muito atuais, na verdade já são discutidos há muito tempo. Se pensarmos em filmes de ficção científica, é muito notório. Mas talvez a visão que predomina seja mais pessimista…
A mim o que me enerva é ver-se estas questões só com pessimismo, quando na verdade a tecnologia tem trazido muitas coisas positivas às nossas vidas. Dou o exemplo fácil do pacemaker: é uma coisa que muita gente tem e que nem se nota quão importante é, haver esse elemento tecnológico dentro do corpo de um humano. É um exemplo simples, não precisamos de ir para a ficção científica. E na ficção científica também há coisas maravilhosas de que se tem falado, os exoesqueletos, haver esqueletos do ponto de vista mecânico que funcionem para pessoas que são tetraplégicas. Há tantas possibilidades [no uso da tecnologia] e em potência todas são muito boas e interessantes. O cuidado que temos de ter com as máquinas é um cuidado humano, há que não ter medo das máquinas. Quem as cria são os humanos.

Trabalhar muito regularmente com o Salvador Sobral alimentou de alguma forma essa reflexão? É um caso de alguém a quem a medicina e a ciência ajudaram muito.
Não alimentou. Poderia ter alimentado, mas não. O pacemaker é uma coisa que conheço melhor por causa dele, mas não foi isso que alimentou esta demanda. É uma coisa já mais do passado, que vem continuamente a ser alimentada desde antes de Ogre e de Alexander Search. A eletrónica não é uma coisa nova para mim, é-o mais do ponto de vista discográfico. Houve Alexander Search, que é um projeto mais de grupo, de banda.

Mas onde fazia a direção musical.
Exato, com a minha direção musical e com a minha composição. É um projeto meu a que poderia ter dado o meu nome, constituindo-o de outra maneira. Mas tinha a voz [Salvador Sobral]. Neste disco há menos voz, ainda que ela exista. Explora-se mais a junção benigna entre o instrumento acústico, que não precisa de eletricidade — os pianos não precisam de eletricidade, fica registado [sorri] –, com o que precisa.

[Disco] "É a minha ideia do que quero que seja a junção de homens com máquinas. Ser editado pela Sony talvez seja o culminar dessa notoriedade, da minha carreira musical e de este não ser um disco [feito] para um nicho."

Este é o primeiro álbum que edita pela Sony Music [editora major, multinacional]. Encontrei uma entrevista sua bastante antiga, de há dez anos, em que dizia: “Como sabemos as majors têm pouco ou nenhum espaço reservado ao jazz”. O facto de este disco sair pela Sony deve-se mais a não estar tão ancorado no jazz ou à notoriedade acrescida que tem tido com o passar dos anos?
Acho que é a soma das duas coisas. Este não é um disco de jazz, é um disco que tem improvisação. São canções, foi o que quis fazer. O disco quase teve outro nome, Piano Cyborg and Songs, porque tem a ver com canções. Mas gosto mais da fábula e da imagem que resulta de Cinderella Cyborg. É uma fábula sobre aquilo que poderia ser uma coisa má mas que termina bem — a Cinderela começa triste, pobre e abandonada mas acaba feliz e contente. É a minha ideia do que quero que seja a junção de homens com máquinas. Ser editado pela Sony talvez seja o culminar dessa notoriedade, da minha carreira musical e de este não ser um disco [feito] para um nicho, necessariamente. Ainda que seja um disco maioritariamente instrumental, também não estou à espera de grande coisa. Ou de quase nada [risos].

Em termos sonoros, o interesse pela eletrónica advém de alguma vontade de introduzir modernidade? É um método que torna este disco um álbum que não poderia ter sido feito há 30 ou 40 anos. Isso motivou este caminho?
Talvez, ainda que só poder ser feito agora não fosse para mim razão suficiente. O Amália [Amália por Júlio Resende, 2013], por exemplo, é um disco que já poderia ter sido feito durante o século XX, é verdade. Aqui há uma produção que obviamente só pode pertencer do final do século XX em diante, porque é aí que aparece a música eletrónica e os computadores. Acho piada que haja alguma coisa que beba do presente, mas isso não é razão suficiente. Deve-se mais a querer transformar máquinas de guerra em máquinas de paz. Escrevi sobre isso e a ideia das máquinas de paz atrai-me mais do ponto de vista musical do que a ideia de ser algo ligado à tecnologia atual.

Não no arranque do disco mas quase, ouve-se a frase “What’s essential is invisible to the eyes”, dita por uma voz algo robotizada. O que é essencial pode não ser visível a olho nu, mas ser visível ou audível através de máquinas? Mesmo no som, há quem o capture através de máquinas e o amplifique, tornando-o música audível. O Bill Fontana, por exemplo.
É bonito, gosto desse modo de olhar essa frase. A questão é que a música em geral é uma coisa que não se vê, é invisível aos olhos. E para mim e para muita gente é essencial. Essa frase é relativamente conhecida, mas gosto da ideia de ser uma metáfora para a música.

Quer no final do “Tema Bonito para o Salvador” quer no início do “ANA(GRAMA)”, a batida soa-me ao som de um coração a bater. É mau ouvido, é coincidência?
A verdade é que o bombo, quer na bateria [acústica] quer na bateria eletrónica, já tem esse som, parece o bater de um coração. Só isso já faz o som. Mas acho que sim, cria-se uma boa afinidade entre a ideia de coração e a ideia de som, sem ser demasiado óbvio.

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Sendo, ainda por cima, dois temas…
Que têm a ver com qualquer coisa mais emotiva, sim.

Tem alguns colaboradores entre os músicos que tocaram no disco. Mas tem um outro menos conhecido, o Sam Azura. Quem é o Sam Azura?
O Sam é um estrangeiro em Lisboa [sorri], é apaixonado por Lisboa. Viveu muito tempo em Londres e ainda continua a ter o seu espaço em Londres. Faz as suas mixtapes, é um rapper e está no início da sua caminhada.

Como é que o conheceu?
Era meu aluno de piano, na verdade, dos poucos alunos que aceitei em tempos. Acabámos por criar uma boa relação, gosto muito dele. É também o bailarino do videoclip do “Fado Cyborg”. Ele irá para o palco comigo, nos concertos [de apresentação]. Foi ele que escreveu as letras do “LisbonHood” e do “Cinderella Cyborg”. É um belíssimo músico, acho que tem muito instinto musical.

Falava há pouco do que espera da reação das pessoas (“não estou à espera de grande coisa ou de quase nada”). Já fez vários discos: sozinho, em bandas, em trios e quartetos de jazz. Gravou este, conhece-o. Sente que é um ponto de rutura ou uma continuação do que fez antes? E qualitativamente e esteticamente está satisfeito com o resultado?
Sim. Estive uns tempos sem ouvir as gravações, agora ouvi para a masterização. Ouvi e achei: olha, isto está bom [risos]. Gosto do gesto. Tentei dar o meu melhor e gosto do disco. Acho que é uma nova porta de entrada para a minha música e a ideia não é romper com os outros lugares, vou continuar a fazer discos a solo só de piano e vou continuar a fazer discos com eletrónica ou outra coisa qualquer que me apeteça explorar.

Bandas rock…
Bandas rock, também. Sou um explorador e gosto de transgredir, gosto de me desafiar muito.

"Procuro qualquer coisa que crie uma identidade forte, de modo que se alguém quiser ir para um lugar musical próximo do que se ouve neste disco, tenha de ir procurar isso no Júlio [Resende]. É como convidar um amigo ou uma amiga para ir jantar ou almoçar porque é aquela pessoa que é daquela maneira, com quem se quer estar (...) porque ela é assim e só ela é que é assim. É isso que procuro para a minha música, [que não haja] mais ninguém que a faça."

Há tempos tinha dito algo parecido numa entrevista: “Não gosto de convergir, tento abrir novos campos no âmbito musical”. No seu site oficial, é mencionada uma “procura contínua do lugar perfeito que nunca existe”, porque só essa procura “permite explorar mais e mais”. O horizonte é criar um som que ainda não tenha sido feito?
Não é exatamente esse, é mais criar uma identidade. Procuro qualquer coisa que crie uma identidade forte, de modo que se alguém quiser ir para um lugar musical próximo do que se ouve neste disco, tenha de ir procurar isso no Júlio [Resende]. É como convidar-se um amigo ou uma amiga para ir jantar ou almoçar porque é aquela pessoa que é daquela maneira, com quem se quer estar naquele dia porque ela é assim e só ela é que é assim. É isso que procuro para a minha música, que quando se quer procurar alguma coisa que tenha a ver com ela, tenha de se ir ouvir o Júlio Resende, porque não há mais ninguém que a faça. Isso é o ideal.

“A introdução do Jeff Buckley na “Hallelujah” é um improviso. E é bonito”

Falava há pouco do improviso. É há muito um motor importante na forma como compõe…
Completamente, completamente.

O gosto pelo improviso veio de um disco do Keith Jarrett, o “The Köln Concert”? Escreveu uma vez o seguinte, a propósito desse disco: “Consegui entender que era improvisado pelo ouvido, pelo modo como tocava. A música parecia que estava destinada a ser aquela, como se estivesse já escrita, mas ao mesmo tempo havia uma fluidez que me indicava algo mais corajoso, algo a ser escrito no momento”.
Não foi por causa disso, porque de certo momento sempre improvisei. Comecei a tocar de ouvido, a tentar criar melodias, o que é mais ou menos improvisar. Sempre foi uma coisa muito presente para mim. Agora, tenho grandes inspirações na improvisação, desde o Miles [Davis] ao [Keith] Jarrett. A guitarra portuguesa também tem grandes improvisadores, tal como o rock, porque nos solos de guitarras faz-se coisas belíssimas. A introdução do Jeff Buckley na “Hallelujah”, por exemplo, também não me parece ter sido uma coisa muito pensada, é um improviso. E é bonito.

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Estudou no Conservatório de Faro, tem formação clássica. É comum os improvisadores terem formação clássica?
É comum. Talvez agora haja cada vez mais escolas para miúdos com aulas de jazz e de improvisação. Antigamente não havia, o primeiro caminho era pelo mundo clássico. Agora se calhar será menos comum, haverá talvez mais gente a ter aulas de jazz desde início, sem passar necessariamente pela música clássica.

O Conservatório para si foi bom ou, sendo um ensino mais clássico, originou alguma frustração?
Tive sorte. Tive bons professores que não eram avessos à minha ideia de improvisar. Até pelo contrário, alimentaram-na muito. Tive muita sorte, porque há muitos casos em que acontece o contrário. Também conheci grandes compositores: conhecer [Frédéric] Chopin, [Johann] Bach e [Ludiwg van] Beethoven é uma boa base.

“Perante os aplausos sinto-me sempre pequeno. Ou envergonhado”

Começou a tocar muito cedo, aos 4 anos. Na infância ou na adolescência teve alguma figura tutelar, alguém por quem tivesse um respeito e uma reverência ímpar?
Tive muitas. A primeira foi o meu pai [sorri], que me ofereceu um teclado aos quatro anos e que me tentou sempre orientar. Depois foram essas figuras, desde o Beethoven, Bach e Chopin ao [Franz] Liszt, Thelonious Monk, Miles Davis, John Coltrane e a todos os pianistas que entretanto escutei: a Maria João Pires, o Keith Jarrett… são muitos. Fui sempre descobrindo coisas de que ia gostando muito e que me inspiravam a procurar melhorar-me.

"Perante os aplausos sinto-me sempre pequeno. Ou envergonhado. Ainda que tenha trabalhado para os mesmos, sinto-me sempre envergonhado perante eles, sobretudo porque acho sempre que nunca consegui ir tão longe quanto gostaria. Há sempre uma frustração em cada gesto. Às vezes concentro-me demais nisso, tenho tentado nos últimos anos aproveitar melhor esses momentos, desfrutar mais e ser menos exigente. Perante o aplauso também é importante sentir-mo-nos alegres."

Por vezes, a música é vista como um espaço de agigantamento, até de preenchimento do ego — por se subir a palco, pelos aplausos, por tudo isso. Disse uma coisa interessante há algum tempo, quando lhe perguntaram o que se aprendia sobre a música quando se era músico há tanto tempo: “Que nenhuma vida chega perante o imenso e que perante o imenso deves ser humilde, ousado e que a tua maior alegria será faltar-te sempre algo por fazer”. Mais do que agigantar e preencher o ego, a música apequena? No seu caso, pelo menos?
Perante os aplausos sinto-me sempre pequeno, na verdade. Ou envergonhado. Ainda que tenha trabalhado para os mesmos, que os tenha tentado criar — porque quando vou para palco tento criar o aplauso e não a vaia — sinto-me sempre envergonhado perante eles, sobretudo porque acho sempre que nunca consegui ir tão longe quanto gostaria. Há sempre uma frustração em cada gesto. Às vezes concentro-me demais nisso. Tenho tentado nos últimos anos aproveitar melhor esses momentos, desfrutar mais e ser menos exigente. Tenho tentado relaxar, porque às vezes a exigência frustra um bocadinho a alegria ou inibe-a e acho que perante o aplauso também é importante sentir-mo-nos alegres.

Há também uma ideia enraizada de que a música e outras artes, para quem nelas se inicia e por elas se começa a interessar, servem como um refúgio do quotidiano. No seu caso, foi assim?
Sempre, sempre. Ainda hoje. Há dois gestos que envolvem a minha necessidade de música: necessidade de refúgio de alguma coisa e necessidade de aventura, de partida para um outro lugar. São gestos diferentes mas estão os dois presentes.

Já disse que era suposto ter nascido nos Estados Unidos da América. Pode explicar?
Poderia ter sido americano, não nascer na América. Os meus pais estiveram para ir para a América quando tinha dois anos e se fossem também teria ido e ficado lá. Poderia ter ficado americano. Acho piada a isso porque é uma imaginação sobre uma vida alternativa que não tive.

Uma vida que também poderia ter envolvido estádios de futebol, porque já disse que poderia ter sido futebolista.
Sempre gostei muito de jogar futebol e continuo a jogar. Aliás, vou jogar agora [risos].

“Lisboa e Paris ofereceram-me um novo universo”

Quando veio para Lisboa estudar filosofia [na Universidade Nova de Lisboa], conciliando os estudos com a frequência do Hot Clube de Portugal, que importância teve este clube de jazz? E que ambiente cultural é que encontrou em Lisboa?
A importância do Hot Clube, de Lisboa e de Paris (onde fiz Erasmus) foi muito grande, pelo acesso às coisas: aos concertos, à informação. Se Lisboa já o tinha, Paris multiplicava-o em muito. Na altura ainda não havia internet como há agora. Havia bibliotecas com muitos discos. Foi incrível, foi muito importante essa ligação à cidade cosmopolita. Cosmopolita no sentido de cosmos, ofereceu-me um cosmos que não tinha, um novo universo.

"O Bernardo Sassetti continua a ser uma das minhas grandes inspirações. Ele próprio passou por várias fases, andava sempre à procura de novos acontecimentos para ele, não era um tipo que repousasse sobre o que já tinha feito."

Quando veio para Lisboa, teve uma tentativa de contacto, de encontro ou de aprendizagem com o Bernardo Sassetti [terá tentado convencê-lo a dar-lhe aulas e não conseguiu]. Como é que isso se passou, exatamente?
Nunca tive aulas com o Sassetti mas ficámos amigos. Falámos, tivemos almoços — poucos, infelizmente, para os que gostava que tivéssemos tido. E ele enquanto músico é uma grande inspiração. Não o referi há pouco mas poderia ter referido. Bernardo Sassetti, Mário Laginha, Maria João… todas essas pessoas têm-me inspirado. O Bernardo continua a ser uma das minhas grandes inspirações. Ele próprio passou por várias fases, andava sempre à procura de novos acontecimentos para ele, não era um tipo que repousasse sobre o que já tinha feito.

Como professor talvez fosse mais difícil.
Ele próprio disse-me que não dava aulas, não dava aulas em geral. Percebo plenamente porquê, agora ainda percebo melhor. Não só dar aulas é perigoso como [sendo músico a tempo inteiro] não há tempo para as dar.

Salvador Sobral: “Estes fenómenos desaparecem rapidamente”

Voltando ao Hot Clube de Portugal: foi aí que conheceu o Salvador Sobral, numa jam session. Nessa altura já teria tocado com muitos músicos e cantores, em jam sessions e em concertos. Sentiu logo que havia uma química especial entre os dois, que falavam uma linguagem parecida, ou a parceria teve de se desenvolver para o sentir?
Nessa jam session já senti que havia uma comunicação musical simples, fácil. Depois foi-se desenvolvendo. Mas não havia nenhuma premonição sobre ele de repente vir a tornar-se já uma estrela. Achei que mais tarde ou mais cedo poderia acontecer, que ele tinha todas as hipóteses e mais algumas de se tornar um músico de grande craveira com uma carreira distinta. Que é o que ele ainda vai ter de fazer.

"[Salvador Sobral?] Nos próximos anos, vai fazer dezenas de discos. É isso que se espera, é isso que ele vai fazer e é isso que temos de cimentar, porque estes fenómenos de celebridade têm efeito rápido e desaparecem também rapidamente."

Desde já, no próximo disco…
E nos próximos anos todos, em que ele vai fazer dezenas de discos. É isso que se espera, é isso que ele vai fazer e é isso que temos de cimentar, porque estes fenómenos de celebridade têm efeito rápido e desaparecem também rapidamente.

Ainda assim, esse efeito existiu e existe. Trouxe-vos mais pressão ou mais liberdade, quanto tocam com ele? Têm um público identificado e conquistado à partida convosco, que não vos permite fazer tudo, mas…
Conquistado não diria, mas impressionado, sim. Tem sido muito bom dar às pessoas esse gesto de liberdade em cada concerto, sem termos mudado nada antes e depois da Eurovisão. Fazemos até mais jazz do que fazíamos, creio.

Porque há esse capital de confiança? Permite-vos explorar mais coisas?
Sim, sobretudo a ele ainda lhe dá mais confiança. Eu já era assim antes. Ele também, numa certa medida.

Dessa vitória na Eurovisão, para a música portuguesa, há consequências concretas, palpáveis, que consiga identificar? Seja na música que se está a fazer em Portugal, seja no acolhimento que a música portuguesa tem fora de portas.
Sobretudo para o Salvador, há mais público. Espanha, por exemplo, é um mercado fechado para a maior parte dos músicos portugueses e neste momento é um mercado muito aberto para o Salvador e para o seu projeto. Isso é extraordinário e acho que em muitos mais países há a oportunidade de criar mercado musical: fazer concertos, deixar lá os discos. Uma das grandes virtudes que a vitória do Salvador trouxe é possibilitar que as pessoas queiram conhecer um pouco mais um músico português e abram as portas de sua casa — e abram a sua carteira [risos] — para ir ver esse músico.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Tem tido um percurso ascendente ao longo de vários anos. O disco “Amália por Júlio Resende” abriu-lhe bastantes portas fora de Portugal. Este novo disco, editado e promovido por uma editora de grande dimensão, pode tornar mais difícil conciliar agenda com outros projetos?
Pode, mas terá de ser conciliável. Não penso muito nisso, logo se vê. Neste momento é um problema hipotético, não é um problema real. Ainda consigo conciliar, a semana tem sete dias, ainda há espaço para fazer concertos. Se pensarmos em termos mundiais, felizmente os concertos não se fazem todos nos mesmos dias, sexta-feira e sábado. De domingo a quinta-feira também se pode fazer concertos. Espero que este disco chegue a mais ouvidos, mas acho que, internacionalmente falando, o disco Amália por Júlio Resende e a minha relação com fado se calhar até tem mais hipóteses de prevalecer. Mas vamos ver o que é que este disco traz.

Obrigado, Júlio. E bom jogo.
Obrigado eu.

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