Há piadas que se repetem tantas vezes que começam a provocar, às primeiras sílabas, um ligeiro enjoo em quem as escuta; e há as que, de tanto serem proferidas, se tornam clássicos, quase obrigatórias em determinadas situações: de cada vez que há uma desgraça (um tsunami, uma guerra), sempre que alguém novo morre um ser humano declara: “Que raio de mundo vamos nós deixar para Keith Richards?”.
Como outras iterações humorísticas, a piada aqui reside no absurdo: quando nos perguntamos “que mundo vamos deixar para alguém”, esse alguém é, por norma, novo e inocente – mas Richards, um dos seres humanos que mais longe levou o hedonismo e certamente daqueles em que, há décadas, mais depressa apostaríamos que daria um belíssimo e jovem cadáver, Richards – dizia – chega aos 80 anos enquanto praticamente todas as estrelas da sua época já morreram e uma boa parte das que vieram depois (de Prince a Shane MacGowan) idem.
A piada inverte a ordem natural das coisas: é suposto que impenitentes movidos a vícios, que pouco dormem, ocupados que estão a consumir álcool e drogas, não durem até tarde. E inversão da ordem natural das coisas realça o absurdo do mundo: podemos passar uma vida a comer quinoa, fazer duas corridas por dia, não fumar e, zumba, vamos na rua e cai-nos um piano na cabeça, estamos sossegados em casa e a dita é levada por um furacão. Morre-se de pneumonia, morre-se de cancro, morre-se de levar uma vida como a de Keith Richards – só não se morre de levar uma vida como a de Keith Richards se se for Keith Richards.
Este é o homem que foi salvo de falecer devido a sobredose de heroína graças ao seu filho mais velho, que então tinha oito anos e o pai levara em digressão com os Stones; que fez com que Tom Waits deixasse de beber depois de dois dias seguidos de farra; que conhece melhor as suas veias que um habitante de Tóquio conhece as paragens do metro local; que resistiu à tortura mental que é ser um dos líderes dos Stones, roubou namoradas aos amigos, perdeu namoradas para os amigos, roubou riffs que posteriormente alterou e fez com que rapazes e raparigas tivessem vontade de perder peças de roupa e, com isso, mudou a face da música e pelo caminho inventou uma faixa sociológica: a adolescência. Devemos-lhe tanto que o mínimo que podemos fazer é, ocasionalmente, perguntar “Que mundo vamos deixar para Keith Richards?”
Calcular o exato ponto em que musicalmente Richards se tornou irrelevante é inexato – e irrelevante. Volta e meia, os Stones fazem um disco, vão em digressão, mas nada disso é mais que uma forma de fazer crescer a almofada financeira dos herdeiros e obrigar os veteranos dos blues brancos a saírem do sofá, esticarem as pernas, contratarem um PT que os ajude a aguentar espectáculos de três horas em que ninguém quer ouvir as novas canções e a média de idades da audiência se aproxima, ano após ano, da idade da reforma.
Some Girls, de 1978, terá sido um dos últimos grandes disco dos Stones, e quem se tiver deparado com a versão original de Miss You, uma sessão de improvisação que se atira para os 11 minutos, percebe o que fez dos Stones uma banda especial – como dizia a malta da Motown, os Stones foram a única grande banda de r’n’b branca: Keith não apreciava muito a batida disco da canção, e nessa gravação esforça-se por escavacá-la, enquanto ao redor todos vão trazendo novos elementos a cada meia dúzia de compassos. De repente podia muito bem ser a banda de James Brown ali, com Jagger nas vozes, simultaneamente sexy e desesperado.
Richards e Jagger, a dupla-chave dos Stones, não era suposto ter-se tornado uma dupla – a banda fora criada por Brian Jones, talentoso guitarrista que estava apenas interessado em criar versões de blues e r’n’b. Mas Andrew Loog Oldham, o agente da banda, apercebeu-se (como é típico nos agentes) de alguns detalhes: havia muito mais dinheiro a ganhar em canções originais do que em versões; Jones era um excelente músico mas não sabia escrever canções; Jones era tão traumatizado por uma infância infeliz que aos primeiros sinais de fama se afundou em drogas e num comportamento errático.
Era preciso algo mais fiável, alguém que pegasse nas rédeas da banda e criasse canções, de modo a que os royalties entrassem – e foi assim que Richards e Jagger se uniram para compor. The Last Time, de 1965, foi o primeiro single de êxito da dupla; pouco tempo depois viria (I can’t get no) Satisfaction – a história da canção diz muito sobre a identidade da banda: Richard escreveu o riff junto a uma piscina de hotel, munido de uma guitarra; Jagger pôs a melodia por cima. Gravaram as bases em digressão e a ideia seria posteriormente colocarem metais por cima. Mas Oldham gostou do que ouviu e, porque o rock’n’roll era uma indústria volátil e nunca se sabia o que ia acontecer (é bom lembrar que a primeira geração de rock vem dos anos 50 e a dos Stones já é uma geração de revivalistas), lançou o disco mesmo assim. Os Stones odiaram a versão inacabada que foi editada – até o momento em que o single se tornou o primeiro êxito internacional da banda, nesse momento adoptaram-na como matriz do som da banda.
Fazer parte dos Stones sempre foi isto: lidar com traições (dos colegas, dos empresários), prisões (por indecência ou posse de drogas), estar sempre a congeminar o próximo golpe (como despedir Brian Jones da banda que o próprio criou, um facto que há-de ter ajudado à sua morte por afogamento na sua piscina) e, acima de tudo, pôr o êxito acima de tudo — família, amigos, honra, básica decência humana.
Mas algures no meio da tragédia humana que compõe o grosso da história dos Stones (ou, pelo menos, a história dos anos em que os Stones foram relevantes, de 1965, com Out Of Our Heads, até 1981, com Tattoo You, e estamos a ser simpáticos porque podíamos ter acabado a contagem em 1972, com Exile on Main Street) existe um fator que transparece nas melhores canções dos Stones e as melhores canções dos Stones são pelo menos uma centena: um amor danado ao Senhor Riff, uma devoção pelos blues, pela country, pela soul, pelo r’n’b, pelo gospel. E uma lata danada: quem mais poria um coro (nem mais) gospel em You Can’t Always Get What You Want, uma canção sobre, basicamente, estar agarrado à heroína?
É dúbio que Richards e Jagger sejam hoje amigos, décadas após roubarem namoradas um ao outro, andarem à batatada, etc; mas, perdida nas sombras enevoadas do tempo, existe uma amizade de juventude feita de amor à música. Richards e Jagger conheceram-se na escola primária – Richards vinha de uma família working class, de pendor político esquerdista e com relações à música: o avô materno fora música profissional de jazz, e os primeiros discos que encantaram Keith foram discos de jazz.
Foi esse avô que lhe ofereceu a primeira guitarra, aos 10 anos, e que lhe ensinou as primeiras melodias, as primeiras afinações, os primeiros discos. Em breve, porém, o jazz daria lugar a Elvis nas preferências musicais do jovem Keith, que se revelou se não um aluno brilhante, pelo menos um aluno aplicado – não na escola mas na guitarra: de ouvido sacava canção após canção de blues, descobrindo afinações esquisitas e inventando as suas.
Um dia, no comboio, já depois de ter sido expulso de uma escola e recambiado para uma universidade de artes (onde os falhados costumavam ir ver o seu futuro morrer), reencontrou Jagger; por essa altura já Richards era capaz de tocar a maior parte dos solos de blues dos seus heróis; juntos criaram os Blue Boys, que desapareceram quando Brian Jones os convidou para formarem os Rolling Stones.
O êxito dos Stones, então ainda uma banda de versões, foi quase imediato. Por alguma razão o rock, que mais não era que um rythm’n’blues mais energético, conhecia uma espécie de revivalismo. Jones era a estrela – o melhor músico, o mais bonito, aquele que parecia ter nascido para a fama e a glória, mas era também altamente inseguro, paranoico, problemático, inconfiável e propenso a consumir quantidades absurdas de drogas.
Foi isso que levou Oldham desde cedo a incentivar Richards e Jagger a criarem canções – não só para os Stones mas também para outros artistas (da mesma forma que, por exemplo, Bob Dylan fazia, e sacava bem mais dinheiro com as canções que escrevia para outros que com as suas). Desde 1963 que a dupla tentou criar junta e, lentamente, foi aprimorando a sua arte – a versão de Gene Pitney para That Girl Belongs to Yesterday chegou ao top ten do UK e, em 62, Marianne Faithfull também lá chegou com a sua versão da belíssima As Tears Go By.
Por esses dias, as bandas tocavam incessantemente, muitas vezes em cartazes divididos com outros artistas, e foi assim que os Stones começaram a aprender os truques de outros (negros, particularmente) e as suas afinações, que acabaram por definir o som da banda: a guitarra ritmo de Keith costuma ser quase autónoma, não se limita a debitar as bases da canção, já inclui uma linha melódica, um volteio, como se fizesse parte de um todo e vivesse de forma autónoma, tudo ao mesmo tempo.
Pouca gente soube escavar tanto no poço sem fim da música negra como os Stones – que eram vistos como pares pelos músicos da Stax e da Motown. Oldham publicitou a banda como o oposto dos Beatles: rapazes mal comportados, drogados, sexualmente desviantes, mas nada disto fazia muito sentido – em ambos os casos eram músicos apaixonados pela música negra, curiosos com o que os rodeava e dispostos a experimentar tudo. Talvez a única diferença entre as bandas é que os Stones sabiam o que era um ritmo e nunca escreveram uma canção tão má como Ob-La-Di-Ob-La-Da (nem me dou ao trabalho de verificar a grafia correta da pior canção alguma vez escrita).
O mundo vai mudando, as alterações climáticas são um problema, há guerras por todo o lado, os miúdos já não querem saber de rock’n’roll e, honestamente, às vezes quando me vou deitar penso de mim para mim mesmo: que mundo é este que vamos deixar para Keith Richards?