Já perdeu a conta das vezes que veio a Portugal e olha para o país como “a casa do pai” onde tudo lhe parece familiar. Kleber Mendonça Filho nasceu no Recife e foi jornalista durante 13 anos, a profissão que mais o aproximava do cinema. Ainda jovem começou a fazer críticas de filmes, numa época em que não se identificava minimamente com o cinema brasileiro, “repleto de chichés”. A expectativa dos outros fez com que se aventurasse como realizador, primeiro nas curtas-metragens, depois com um documentário e mais tarde nas longas. Foi com elas que mais deu nas vistas além-fronteiras. “O Som ao Redor” (2013) e “Aquarius” (2016) foram filmes aplaudidos pela crítica e que, por mais anos que passem, o deixarão sempre orgulhoso.
O argumento de “Bacurau” (2019) viveu 10 anos na gaveta, foi escrito com tempo e maturação, num horário “careta” e tipicamente laboral, juntamente com Juliano Dornelles. Conta a história de uma povoação que subitamente desaparece do mapa, um cenário que desponta instintos de sobrevivência, de resistência, de união e de liberdade. Rodado no sertão do Seridó, entre o Rio Grande do Norte e Paraíba, este é o filme de aventura que sempre quis fazer, embora tenha também uma boa dose de política. Kleber Mendonça prefere deixar as definições, os rótulos e as categorias para os outros, afirmando que o propósito da sua obra é apenas fazer pensar. Parece tê-lo conseguido, pelo menos nos festivais de Cannes, com o prémio júri, e de Munique, com a distinção de melhor filme.
“Bacurau” abriu a 27ª edição do festival Curtas Vila do Conde e prova o momento algo contraditório que se vive no Brasil, país onde “a cultura é desprezada pelo Governo” e, ao mesmo tempo, “premiada internacionalmente”. O atual cenário político, no qual ainda se recusou a acreditar, não desfaz a sua certeza de que a cultura sobreviverá sempre. Diz mesmo que Jair Bolsonaro devia ver o filme.
Aos 51 anos, Kleber Mendonça escreve de forma diferente cada argumento. Agora, com dois filhos menores, talvez o próximo filme seja escrito “isolado” em Portugal.
Não é a primeira vez que vem a Portugal, como vê o cinema português?
Sim, já vim muitas vezes. Na década passada vim umas sete vezes para o Festival de Cinema Luso-Brasileiro em Santa Maria da Feira, um festival que me apresentou ao cinema português dos últimos 20 anos, a realizadores portugueses que hoje conheço bem. Adoro Portugal, acho que para todo o brasileiro visitar Portugal é como visitar a casa de seu pai onde tudo parece tão familiar e ao mesmo tempo não é o Brasil, é uma outra coisa. Sou fascinado pelo cinema português.
Porquê?
De Manoel de Oliveira a João Pedro Rodrigues, de Miguel Gomes a João César Monteiro, há um estilo totalmente particular de contar histórias. Todo o mundo que trabalha e gosta de cinema sabe e entende que existe um toque especial no cinema português. São referências fortes fora de Portugal, é um cinema extremamente autoral e pessoal, que não parece obedecer a regras normais do que você espera ver no cinema. O fenómeno Manoel de Oliveira é muito particular, ele teve uma longevidade sem igual na história do cinema e isso continua nas curtas-metragens, eu vejo muita curta portuguesa. Há um festival no Recife e em duas edições acho que curtas portugueses ganharam metade das competições. Mas isso é só um lado de Portugal, Lisboa e Porto são duas grandes cidades do mundo, tenho a sorte de estar a sete horas de Lisboa. A minha relação com Portugal é muito boa. Na apresentação do filme aqui no Curtas Vila do Conde destaquei que Portugal me trata muito bem, acho que todas as minhas curtas e longas foram bem recebidas aqui.
“Bacurau” começou a ser desenvolvido em 2009. Por que razão ficou tanto tempo na gaveta?
Isso nunca deve ser visto como um drama ou como uma coisa sofrida. Eu fiz outros coisas nesse período, dois filmes, uma curta metragem, vivi a minha vida, tive dois filhos. Ele ficou sendo pensado e às vezes a gente dizia que tínhamos que voltar a ele e no mês seguinte voltávamos. Depois do sucesso de “Aquarius”, em 2016, fui quase obrigado a voltar para o material que já tinha escrito e a deixar tudo pronto para filmar. Aí ficou bem claro que “Bacurau” poderia ser o próximo filme.
Esse processo foi mais longo porquê?
Talvez por ser um filme de género, um pouco mais maluco, precisava de mais ajustes mais desenvolvimento, mais ideias, mais maturação.
Aventura, político, ativista ou western são alguns estilos associados ao filme. Como o define?
Para mim, mais do que tentar definir uma radiografia do filme, é muito mais interessante eu entender o que fizemos através das reações das pessoas, positivas ou negativas, do lado de fora da sala ou da imprensa internacional. O filme foi construído a partir de muitos elementos, de um amor pelo Brasil, pela região Nordeste, onde eu moro, de um amor pelo cinema, pelo filme de aventura. O cinema de aventura não existe no Brasil, tinha o desejo de fazer um filme de aventura brasileiro. Ele fala sobre muitos temas brasileiros que fazem o país ser como ele é, para o bem e para o mal, aí ele passa a ser um filme político, mas a gente não planeou isso. Em nenhum momento pensamos isso. Geralmente você escreve um filme, gosta do texto e parte para filmar.
[o trailer de “Bacurau”:]
https://www.youtube.com/watch?v=IYz5QTm2wDQ
Sentiu uma expectativa e uma responsabilidade maiores depois de fazer “Aquarius”?
Talvez. Me fizeram essa pergunta depois de “O Som ao Redor” porque há uma cobrança muito grande do segundo filme, é como se fosse a prova de que você é mesmo bom. Em primeiro lugar tenho de estar bem com o filme, isso é o mais importante. Se eu tivesse que escolher entre todo o mundo estar bem com o filme e eu não, preferia eu estar bem com o filme e não agradar a ninguém. Acho muito importante você ter uma relação saudável com o seu filme e a relação que eu e Juliano [Dornelles] temos com “Bacurau” é a melhor. Francamente o filme tem sido muito bem recebido internacionalmente e por muitos brasileiros, apesar de ainda não ter sido exibido no Brasil.
Será para quando?
Vai ser a 29 de agosto e a 25 de setembro na França. O circuito do filme já tem distribuição em mais de 30 países, espero que seja distribuído em Portugal, mas ainda não é certo.
Disse que na narrativa do filme são retratados os “problemas crónicos que se repetem no Brasil”. Quais são eles?
Dizem respeito a educação, corrupção, violência, questões de desprezo de classes, poder, dinheiro, a uma divisão que existe, mas que cada vez menos se discute, que é social e geográfica entre o nordeste e o sudeste. No filme a comunidade desaparece do mapa, mas não é algo acidental, alguém faz isso acontecer e é uma questão de poder. É anular geograficamente e quase do ponto de vista da cidadania também. Curiosamente, há um mês vários amigos me enviaram um link de uma notícia de que o ministério das energias tirou do mapa as áreas ambientais protegidas, ou seja, a gente escreveu isto há quatro anos atrás e agora, em 2019, algo muito semelhante acontece. Porque é que isso foi feito? Para facilitar o trabalho de um novo tipo de mentalidade política relacionada com aquela área, onde a proteção não é importante porque atrapalha o progresso. Então são estes problemas que se repetem e que fazem do filme algo futurista, embora a gente viva muito um ciclo de repetições.
Sente que, de alguma forma, abanou mentalidades com um filme inesperado?
Na verdade eu tenho sentido isso cada vez que o filme é exibido. Ganhamos agora um prémio em Munique e senti uma energia muito forte no final, aqui em Vila do Conde também. Talvez o filme seja capaz de gerar uma carga humana e política, mas também compaixão e provocação. Ele fala de resistência, de sobrevivência, de liberdade, mas isso não foi desenhado num laboratório, a gente simplesmente escreveu, gostou e fez.
A atriz Sónia Braga foi protagonista em “Aquarius” e volta a aparecer em “Bacurau”. É especial trabalhar com ela?
Sim, em primeiro lugar porque ela é uma pessoa especial, já virou família. No entanto, é possível trabalhar com atores e ser exclusivamente uma transação comercial, um contrato.
Isso nunca aconteceu consigo?
[Pausa] Não. Bem, “Bacurau” tem 54 personagens, “O Som ao Redor” tem 22, “Aquarius” tem uns 40. Talvez um ou outro ator que fez papéis menores sim, não porque a pessoa era chata, mas sim porque foi um trabalho rápido. Em geral eu tenho tido a sorte de com o ator ou a atriz vir também uma boa pessoa, que entende o que a gente está fazendo ali. Em “Aquarius” Sónia entendia todas as cenas mesmo antes de a gente se encontrar, e eu fui a Nova Iorque para a encontrar. É realmente muito triste quando um ator diz que não entende uma cena e não a quer fazer. Isso para mim é a morte. Sónia teve uma entrega e uma inteligência grande de querer fazer “Bacurau”, porque este não é um “Aquarius 2”, é uma outra coisa. No filme anterior ela estava em todas as cenas, era a imperatriz do filme.
Neste não há protagonistas.
Não, mas mesmo assim ela quis fazer parte dele quase como uma orquestra, em que cada um toca um instrumento. Ela na hora certa entra e faz a sua parte.
Sente que o Brasil vive um momento irónico e contraditório onde o cinema é premiado ao mesmo que tempo que a cultura é desprezada?
Eu vejo mais a ironia como algo que é fruto do acaso e não é fruto do acaso o que está acontecendo agora, é mais uma falta de compreensão da sociedade brasileira. O cinema brasileiro vem sendo construído com políticas públicas ao longo dos últimos 15 anos e isso significa que, sendo ou não alguém de esquerda, você precisa entender que essas políticas vieram no momento em que o Brasil estava sob o governo do Partido dos Trabalhadores. Esse cinema foi construído com muito diálogo e democracia para fortalecer uma indústria de audiovisual. Leva muito tempo para construir algo assim, essa construção passa por trabalho, investimento e credibilidade. Este ano o cinema brasileiro teve dois filmes premiados em Cannes (além de “Bacurau”, foi distinguido também o filme “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Karim Aïnouz) e isso é resultado de um caminho gradual.
Como é feito esse caminho?
“O Som ao Redor” chegou a Roterdão e foi lançado na França, o que fez com que a imprensa francesa já construísse um caminho para o meu próximo filme “Aquarius”, que esteve no Festival de Cannes há três anos. Então eu não tenho como fazer um filme e magicamente participar na competição de Cannes, isso é conquistado aos poucos. Agora com a mudança de enfoque político no Brasil, o novo governo não parece ter o menor respeito pela cultura e isso é muito grave e muito triste. O João Gilberto faleceu agora e o Bolsonaro teve aquela reação, dizendo “Era uma pessoa conhecida. Meus sentimentos à família, tá ok?” Ele não entende a herança cultural que João deixou ao mundo em 60 anos de trabalho. Isso é muito grave. Quando Bolsonaro chega a outro país as pessoas têm como referência do Brasil João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, os meus filmes. É isso que constrói a imagem de um país. Para mim, Portugal não é só fado, é Manoel de Oliveira, a cidade do Porto, o vinho. Esse desrespeito ao que uma nação representa é extremamente grave.
Isso contamina ou influencia o seu trabalho? Como é que se continua a criar e a fazer cultura num período como este?
Alguns dos momentos mais férteis da nossa cultura vieram em momentos difíceis na sociedade e foram como uma reação. “Bacurau” já é uma reação a esta realidade e apesar de ter sido escrito ao longo de 10 anos os últimos quatro foram decisivos. O Brasil saiu da estrada democracia em 2016, aliás, começou a ameaçar em 2015. As pessoas como eu não acreditavam que iria ser assim, eu achava que não era possível, pensava que a nossa democracia já era sólida o suficiente para não chegar a este ponto. Em 2016 vi que não estávamos preparados e tudo isso teve um impacto no que o filme é, pois ele acaba por ser uma reação. Muitas pessoas dizem que é uma reação raivosa, eu não consigo ver raiva. É um filme de western, as pessoas reagem com violência, faz parte do universo do filme ser um pouco áspero. O Brasil é um país extremamente violento e o sertão é uma região onde há conflitos.
Bolsonaro devia ver o filme?
Eu acho totalmente justo que ele queira ver o filme, mas ainda não recebi nenhuma intenção nesse sentido. Quem sabe ele poderia gostar do filme. Se ele visse, talvez aprendesse que a cultura brasileira faz coisas boas, interessantes, ricas e reconhecidas internacionalmente. Sim, seria bom ele ver este filme.
Independentemente do contexto político, a cultura sobreviverá sempre?
Acredito que sim. Neste filme confirmámos algo que já sabíamos viajando pelo sertão, escrevemos com base na nossa perceção dele como pessoas do Nordeste, mesmo sendo da cidade. O sertão não é fácil de descrever, é um desafio de complexidade. É esse o problema dos filmes e de coisas feitas na televisão que geralmente colocam o sertão numa caixinha de exotismo e simplismo. Queríamos fazer algo diferente, passar uma ideia forte, mas sem cair nos clichés habituais. A parte mais difícil foi não os retratar como selvagens, mas como pessoas que estão apenas reagindo a um ataque de violência.
É verdade que gravaram num local onde já não chovia há sete anos e quando chegaram começou a chover?
Sim, a gente escolheu essa região porque era perfeita. Precisávamos de uma comunidade clássica de western, uma rua única com casas dos dois lados, uma igreja, uma escola e com um chão que não fosse de asfalto. Foi esse lugar maravilhoso que encontrámos, era interessante como imagem também porque era extremamente seco, parecia que tinha sido queimado. Então quando a gente se instalou lá e iniciou a pré produção começaram as chuvas depois de sete anos e aí a gente pensou que o sertão também pode ser verde, decidimos ficar e usar isso no filme.
Formou-se em jornalismo, como foi o seu percurso até chegar ao cinema?
Trabalhei 13 anos como jornalista, escolhi jornalismo porque era o que existia de mais próximo do cinema, pois na época não existia escola de cinema no Recife. De certa forma eu estava certo, porque se tivesse feito direito ou arquitetura eu ia estar muito distante do cinema. Era totalmente nulo a matemática, o jornalismo me permitia ler livros sobre cinema, escrever e me aproximou muito da ideia de cultura. Quando me formei fui trabalhar para um caderno cultural num jornal e aos poucos me tornei o critico chefe. Aí foi um momento muito intenso da minha vida porque eu via muitos filmes e escrevia muito.
Lembra-se de fazer boas críticas?
É impossível ter feito só críticas boas, havia muita coisa ruim, mas houve bons momentos.
O cinema brasileiro mudou muito?
Sim, sem dúvida. Eu era um jovem crítico, quando você quer mudar o mundo pode ser muito arrogante e eu lutava muito contra o cinema brasileiro. Naquela época o cinema brasileiro era o cinema que eu não queria fazer.
Porquê?
Eram filmes que não me diziam nada, que não falavam sobre mim ou sobre as pessoas que eu conhecia. Seguiam uma espécie de linha com a qual eu não me identificava. Por exemplo, os filmes do Nordeste eram sobre fome, seca, folclores. Na minha cabeça eram clichés. Porque é que eles não falavam do que eu estava vendo? Isso foi há 25 anos atrás, aos poucos as coisas foram mudando. Ainda crítico fui fazendo curtas metragens, elas foram tendo projeções cada vez maiores até que começou a cobrança por longa metragens.
Sentiu esse peso da expectativa?
Sim e o que mais me incomodava era a quantidade de cobranças. Fiz muitas curtas em vídeo e as pessoas perguntavam quando é que fazia curtas em 35 mm, aí eu fiz. Depois “quando é que vai fazer uma longa?” e aí eu fiz um documentário em vídeo. “Sim, mas quando vai fazer uma longa de verdade, de ficção com personagens?” Eram sempre cobranças. Agora mesmo em Cannes me perguntaram qual é o próximo filme. Calma, eu acabei de fazer este.
À exceção de “Bacurau” que estava gaveta, nunca pensa no próximo filme?
Eu tenho 25 páginas de alguma coisa, mas eu não sei se irei fazer um filme com aquilo. Tenho de continuar a trabalhar, preciso de me isolar e escrever.
É isolado que trabalha sempre?
Não. Em “Aquarius” sim, eu me isolei várias vezes. “O Som ao Redor” eu escrevi à noite em casa, geralmente entrando na madrugada. “Bacurau” escrevi sempre com Juliano de dia, num horário careta, das 9h às 17h. Este ainda não sei, agora tenho dois filhos de cinco anos, é outra realidade. Talvez seja mais adequado eu me isolar em algum lugar para escrever.
Em Portugal, por exemplo?
Estava falando disso mesmo hoje ao almoço. Sim, talvez em Portugal.