Se António Costa conquistar a liderança do PS, “vai colocar-se novamente o problema do socratismo”, afirma Luís Campos e Cunha em entrevista ao Observador. O ex-ministro das Finanças acrescenta que a “herança pesada” do Governo que antecedeu o atual “vai estar na mesa dos debates nas próximas eleições legislativas” e que o edil de Lisboa “arrisca-se a ganhar o partido e a perder o país”.
O professor da Faculdade de Economia da Universidade Nova considera que existe o risco de Portugal e a zona euro entrarem em deflação e critica o Banco Central Europeu por não ter atuado mais cedo para evitar a ameaça. Concorda com o chumbo recente do Tribunal Constitucional a três medidas do Orçamento do Estado para 2014 e adianta que a reforma da administração pública está por fazer, apesar de o país ter recuperado a credibilidade por “mérito” do Executivo. Reestruturar a dívida pública? Seria um erro “brutal”.
O que correu bem no programa de ajustamento?
A principal vitória é, apesar de tudo, os mercados terem acreditado em nós, embora ainda haja um longo caminho a percorrer. A verdade é que a credibilidade de Portugal aumentou muito nos últimos três anos e essa é uma vitória inegável. O facto de o programa de ajustamento acordado com a troika em 2011 ter chegado ao fim é, em si mesmo, também uma vitória, já que nem o regresso aos mercados, nem o fim do programa ao fim de três anos eram, necessariamente, uma expetativa para toda a gente.
A recuperação da confiança dos mercados, com a descida das taxas de juro e o sucesso na colocação de dívida de longo prazo, é mérito do Governo ou resulta da garantia, dada por Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu (BCE), de que faria tudo para evitar o fim do euro?
É, antes de mais, mérito do Governo. Mario Draghi deu uma ajuda. Mas repare que, quando houve a crise governamental em julho de 2013, as taxas de juro a longo prazo pioraram e pioraram rapidamente. Portanto, isto significa que o papel do Governo foi necessariamente importante, na medida em que, quando o Governo se portou mal, as taxas começaram logo a subir, independentemente daquilo que Mario Draghi tinha dito.
A correção do crónico défice externo foi uma vitória?
Ao contrário daquilo que sucedeu com a maioria dos economistas, eu não fiquei muito surpreendido com o sucesso das nossas exportações.
Porquê?
Porque a maioria dos economistas tinha o modelo errado na cabeça. A minha formação e o meu doutoramento são em comércio internacional e, por isto, eu estava plenamente convencido de que a queda da procura interna levaria as empresas a virarem-se para o exterior. Parece-me que muitas empresas, desde pequenas e médias às de grande dimensão, perceberam que o mercado interno estaria deprimido durante muito tempo.
Portugal ganhou quotas de mercado e teve um bom comportamento mesmo quando a Europa estava em crise. Isto significa que, contrariamente ao que as pessoas diziam, a economia portuguesa é competitiva. O nosso défice externo tinha a ver com outros problemas, com uma excessiva procura interna, a começar pelo próprio Estado, que tinha défices elevadíssimos. Estamos a falar, em 2009 e 2010, de défices de 10%. Ora, isso era sensivelmente o desequilíbrio externo. Se nessa época o défice público tivesse estado próximo do equilíbrio, certamente que também as contas externas teriam estado próximas do equilíbrio.
Aquele que foi criticado e apontado como um dos “males” do ajustamento, a forte retração da procura interna, acabou, do seu ponto de vista, por funcionar como um incentivo que produziu resultados positivos?
Claro, foi o principal motor. Eu não coloco esta questão como um sucesso do Governo, mas como um sucesso da economia portuguesa. É uma reação que as empresas tiveram e que já tinha sucedido no passado. Em dois anos, o nosso défice externo, que era um dos mais elevados do mundo, passou a um ligeiro superávit.
Acredita que o equilíbrio alcançado nas contas externas é sustentável? Uma recuperação da procura interna não irá gerar um novo desequilíbrio por via do crescimento das importações?
Sem dúvida que uma aceleração da procura interna vai aumentar as importações e, nesse sentido, vai reduzir o superávit. Até podemos entrar em défice. Mas eu não julgo que o défice externo seja um problema grave para a economia portuguesa. É apenas um sinal de que a procura interna está sobreaquecida. Também penso que o que vai acontecer nas contas externas vai depender da evolução do investimento. É evidente que, se o investimento entrar em retoma – e é crucial que haja uma retoma, o que ainda não é certo – significará mais importações porque muitos dos bens de capital são importados. Por outro lado, muitas empresas exportadoras estão, provavelmente, a trabalhar no limite da capacidade.
Se não houver investimento, as empresas, mesmo que tenham procura externa, não vão exportar mais, o que significa, também, que é necessário aumentar o investimento nas empresas exportadoras. Penso, e espero, que as empresas, que com grandes sacrifícios e custos apostaram nas exportações, não se virem para o mercado interno e abandonem novamente os mercados externos, mesmo que haja uma retoma interna. Isto seria deitar fora a sua capacidade de penetração nos mercados externos.
A acumulação de défices externos durante anos consecutivos acabou por conduzir a uma situação de endividamento elevado também do setor privado. Não é perigoso que a situação possa repetir-se num cenário de retoma interna?
Há duas coisas a analisar. Há um elemento importante que é o da vulnerabilidade dos bancos portugueses que fazem a intermediação. Eu compro uma casa, peço dinheiro a um banco nacional, por sua vez, se o banco nacional não tiver recursos, pede dinheiro a um banco estrangeiro, alemão, por exemplo. Numa situação normal, isto não tem problema nenhum. Eu pago ao banco nacional e este, por sua vez, paga ao banco estrangeiro. Numa situação como a que sucedeu em 2010 e 2011, com a queda dos ratings da República, o banco português ficou fora dos mercados financeiros ao nível europeu. Isto é, o banco alemão deixou de emprestar dinheiro ao banco nacional e isto podia ter criado uma crise no sistema financeiro português. Isto foi evitado, é uma questão que está em boa parte ultrapassada e, com a união bancária na zona euro, será suavizada. Numa situação estável, não teria havido qualquer problema.
O setor privado, nomeadamente as empresas portuguesas, está muito endividado. Mas isto, no que respeita às empresas, tem muito a ver com o facto de haver um enviesamento fiscal. É mais benéfico para as empresas utilizarem capitais alheios do que capitais próprios. O que é perverso mas que, do ponto de vista fiscal, é uma decisão racional. Este enviesamento já devia ter sido corrigido para incentivar uma maior utilização de capitais próprios.
O que correu mal no programa de ajustamento?
Ainda não temos o problema orçamental cabalmente resolvido. Estamos, certamente, melhor do que estávamos há três anos, mas o problema está longe de se encontrar resolvido.
O que falta fazer?
Falta fazer uma consolidação orçamental que seja realizada mais com base na despesa e menos com base na receita. Este aspeto falhou. Não havia estratégia e as medidas foram sempre decididas três meses antes de o Orçamento do Estado ter de ser elaborado. Também não havia ideias para o futuro. Isto criou um problema grave que foi o problema do investimento. Não era obrigatório que o investimento privado tivesse caído tanto. O Governo criou uma incerteza para o cidadão, levando-o a consumir menos só por medo. E levou os investidores a não saber onde investir, nem como investir. As leis laborais ainda não estão estabilizadas.
Para se fazer um investimento, tem que se fazer um plano de negócios. E para se fazer um plano de negócios, tem que se saber quais são as leis laborais, tem que se saber quanto se vai pagar de IVA, IRS, TSU, IMI, IRC. Tudo isto ainda não está estabilizado. Não é preciso ter certezas, porque o futuro é sempre incerto. Mas é preciso ter uma ideia de como estas variáveis evoluem no tempo, num horizonte a cinco, oito anos, para se poder fazer um plano de negócios. Se nós temos essa incerteza, não há plano de negócios que se possa fazer e, por isto, também não há investimento.
Para haver estabilização é necessário um acordo político que envolva a coligação e o PS? Há condições para que isto suceda?
Infelizmente, não vejo grandes condições. Aliás, penso que é outro elemento daquilo que correu mal. O Governo, a partir de determinado momento, desprezou o empenho do PS e isso foi um erro grave. Tornou a vida mais fácil para o PS. Mas a verdade é que o PS, nomeadamente o Governo de Sócrates, tinha uma responsabilidade enorme na situação em que nos encontrávamos. Houve, inicialmente, abertura do PS para alguns entendimentos. Isto não foi aproveitado e, neste momento, julgo que será impossível haver um acordo entre os partidos do Governo e o PS.
Para haver acordo, também é preciso que os partidos saibam o que é que querem para o país. Não se pode discutir em abstrato, tem que se discutir em concreto. O que é que o PSD e o CDS pretendem para o país daqui a três anos e o que é que o PS pretende para o país daqui, também, a três anos? Eu duvido que nos dois casos tenham essa ideia e, pura e simplesmente também por falta de matéria, eu julgo que o acordo não se realiza.
O tempo e o condicionalismo a que o país continuará sujeito não acabarão por forçar um acordo?
Sem dúvida que as dificuldades do país vão tornar claro que um acordo seria útil. O acordo pode ser, até, um acordo em que eles anotam que estão em desacordo, mas conversaram e torna-se claro para os eleitores quais são as divergências e o que é que existe em comum. Este aspeto seria importante porque balizaria o debate político e as expetativas. À medida que nos aproximamos das eleições legislativas de 2015, é cada vez mais difícil, politicamente, haver um acordo. Presumo que, a haver algum entendimento, acontecerá depois das eleições.
Num cenário em que nenhum partido tenha maioria absoluta, um acordo será uma inevitabilidade?
Nessa altura, espero que tenham bom senso. O país tem de ser governado e certamente não poderá ser governado com um governo minoritário numa situação difícil como aquela que vamos continuar a atravessar durante os próximos anos.
O Presidente da República fez tudo o que podia para promover um acordo entre os três partidos?
Julgo que sim. O Presidente da República tem vindo a chamar a atenção, desde há muito tempo, para a necessidade de que haja um entendimento. Inclusivamente, prometeu ao PS eleições antecipadas se houvesse esse acordo. O PS podia ter voltado à mesa das negociações nessa altura, mas decidiu não o fazer.
Foi um erro por parte do PS?
Pois, não sei. Veremos, o futuro o dirá. Aliás, neste momento é uma grande incógnita o que será o PS quando chegarmos às eleições.
Que análise faz à situação atual do PS?
Julgo que as pessoas acreditam que António José Seguro é uma pessoa honesta e parece ser uma pessoa de bem. Conheço-o mal, mas não tenho dúvidas quanto a isto. Tinha uma tarefa dura, muito difícil, porque tinha uma herança que vinha do tempo de Sócrates, que era muito pesada e constituía uma responsabilidade para o PS.
O PS soube assumir essa herança ou varreu-a para o lado?
Acho que, provavelmente, a estratégia foi mais a de assobiar para o lado e menos a de enfrentar essa responsabilidade de forma clara. Agora, a responsabilidade também não era só do PS. Outros partidos, nomeadamente os que estão mais à esquerda, de cada vez que houve tentativas de introduzir alguma restrição e contenção orçamental sempre se opuseram e sempre criaram um ambiente político pouco propício. Em 2005, a situação era perfeitamente controlável, mas, em 2008, entrou-se no desastre com a descida do IVA e depois com o laxismo e o excesso de voluntarismo que estamos a pagar muito caro. Esta herança era muito difícil de gerir para o atual secretário-geral do PS.
Qual é a sua opinião sobre António Costa?
António Costa é um excelente presidente da Câmara de Lisboa. Se ele assumir a liderança do PS, provavelmente vou ter saudades de o ter como autarca. É um homem muito inteligente, capaz, muito determinado, confiante e em quem podemos também confiar. Espero é que o PS consiga resolver o problema rapidamente. É essencial à democracia uma oposição consistente e séria e o maior partido da oposição está neste momento paralisado por razões que são conhecidas. Isto não é bom para o funcionamento da democracia. É urgente que haja uma solução.
Assumindo que António Costa chega à liderança, vai colocar-se novamente o problema do socratismo. Vai colocar-se a questão de saber como é que ele vai lidar com os socratistas e com essa herança, que é uma herança pesada, e que vai estar na mesa dos debates nas próximas eleições legislativas. Ele arrisca-se a ganhar o partido e a perder o país. Ele é que terá de decidir, mas seria importante ter um PS sem amarras em relação a alguns aspetos do passado recente e mais orgulhoso do seu percurso na defesa da democracia.
Qual deles tem o perfil mais adequado para primeiro-ministro?
Tenho alguma dificuldade em responder porque conheço razoavelmente bem António Costa e conheço razoavelmente mal António José Seguro. Tenho boa impressão, do ponto de vista humano, dos dois e conheço a capacidade de gestão e de liderança de António Costa, mas isso pode ser consequência de eu conhecer mal António José Seguro.
Após o programa de ajustamento, Portugal é, agora, um país mais interessante para investir?
Uma certa estabilização macroeconómica é essencial para os investidores poderem investir. Portugal é, neste momento, um país muito interessante, não pensando no mercado interno, mas pensando no mercado europeu, para a localização de empresas, sejam nacionais, sejam estrangeiras.
Porquê?
Primeiro, porque o que se fez na legislação laboral até agora permite-nos pensar que essa legislação é competitiva em termos de investimento. Havia muita rigidez e uma parte dessa rigidez desapareceu.
Não são necessárias mais alterações? Entidades como o FMI têm insistido neste ponto.
São os dirigentes das confederações patronais os primeiros a dizer que já não são as leis laborais que limitam a atividade das empresas. Existe, neste momento, um país que tem desemprego, que tem uma capacidade humana que é de excelente qualidade. Os alunos saem muito bem preparados das nossas universidades e podem facilmente integrar qualquer empresa tecnologicamente sofisticada que venha a instalar-se em Portugal, seja com investimento estrangeiro ou nacional. Temos preços por metro quadrado, seja de terrenos, para habitação ou escritórios, que são muito interessantes. Tratamos melhor os estrangeiros do que nos tratamos uns aos outros, o que é, provavelmente, caso único na Europa. Do ponto de vista fiscal, a situação pode ser diferente. As leis não estão estabilizadas.
Há um acordo entre o PS e o Governo sobre o IRC. Não chega?
Pois, mas tem que se ver também o IRS. Foi um erro não se ter visto essa matéria da tributação direta em conjunto, em vez de se tratar do problema em separado. Mas, além dos aspetos fiscais, o custo da energia em Portugal é muito elevado. E isso é, em parte, consequência de medidas que foram tomadas nos últimos cinco a dez anos que nos estão a sair muito caras. É o défice tarifário, são os subsídios concedidos a investimentos que, de outra forma, não teriam sido feitos. Basta olharmos para as nossas faturas de eletricidade para percebermos que existe um peso grande de custos que não têm origem direta na energia consumida.
Como analisa a decisão do Tribunal Constitucional (TC) de chumbar três medidas do Orçamento do Estado para 2014, entre elas os cortes que estavam previstos nos salários dos funcionários públicos?
Nós devemos ter em consideração que o TC existe com aquela composição, em parte indicada pelos partidos. É um tribunal que está previsto funcionar daquela maneira e tem como objetivo velar pelo cumprimento da Constituição. Não podemos ficar surpreendidos que haja leis que sejam consideradas inconstitucionais. Podemos discutir, podemos estar em desacordo, mas não podemos atacar o TC da forma como eu o tenho visto ser atacado ultimamente. Penso, mesmo, que do ponto de vista do Governo, utilizando a expressão de um colega vosso, esta dramatização que está a fazer é perigosa.
Perigosa? Por que motivo?
A dramatização pode assustar os nossos credores. E vamos ter novamente taxas de juro a subir. Até agora, os nossos credores não ficaram nada preocupados com o chumbo do TC e seria bom não passarem a ficar preocupados por causa da dramatização que o Governo está a fazer da situação.
Concorda, então, com o sentido das decisões do TC?
Penso que o mais importante é a questão do princípio da confiança. Não há Governo, não há Estado, que possa conduzir o país quando está abalado o princípio da confiança. Nós temos que acreditar que, quando fazemos um contrato, ou quando descontamos para a Segurança Social, ou quando trabalhamos para o Estado, nós temos de ter a confiança de que a parte que está do outro lado vai cumprir a sua palavra e o que está acordado. O princípio da confiança é mais importante, nas leis que foram analisadas, do que o princípio da proporcionalidade. A desigualdade existe, mas não são os salários da função pública ou as pensões que devem servir para reduzir essa desigualdade.
Os instrumentos apropriados para isso são o IRS, tributando quem ganha mais e isentando quem ganha menos, os apoios no combate à pobreza ou os subsídios de desemprego, por exemplo. A educação também é um excelente instrumento de combate à desigualdade entre gerações. O sistema de pensões funciona com base num contrato, explícito ou implícito, que o Estado fez, aliás, impôs ao cidadão, e os salários da função pública têm que ser minimamente competitivos para podermos ter gente capaz na função pública. Se queremos reduzir o apoio de escritórios de advogados ou engenharia e reduzir o outsourcing, temos de ter dentro da função pública essas competências que, nos últimos 15 anos, diminuíram drasticamente.
Não existem, atualmente?
Nos últimos 15 anos, essas competências diminuiram drasticamente. É difícil, atualmente, um ministro ter uma resposta de qualidade e a tempo. Portanto, o recurso a gabinetes de estudos e a sociedades de advogados torna-se quase inevitável, o que não é uma boa solução. Se calhar sai mais caro, mas, mais grave do que isto, essas entidades não são independentes, enquanto o funcionário público tem um estatuto de independência face aos interesses privados.
Pode haver corrupção, e há concerteza, mas isto pode ser combatido, e deve ser combatido. Mas o estatuto de independência reduz os custos com consultorias como, além disso, dá um melhor serviço ao Estado. Quando estamos a negociar, por hipótese, uma parceria público-privada (PPP), se tivermos uma sociedade de advogados a assessorar um ministro, ela sabe que um dia esse ministro se vai embora. Mas sabe que o grupo económico que está do outro lado da mesa vai continuar. É muito difícil garantir a independência do apoio que é dado ao Estado.
Quais são as áreas mais sensíveis?
Tudo aquilo em que estejam em causa interesses económicos como nas grandes obras públicas ou nas PPP. Mas há outras áreas, como a das previsões económicas. Quando cheguei ao Ministério das Finanças, em 2005, o gabinete de estudos era praticamente inexistente, para minha grande surpresa. Não tinha capacidade para responder às perguntas e não a tinha em tempo oportuno. Fazer uma pergunta hoje e obter uma resposta daqui a dois anos não é particularmente útil para a decisão que tem de ser tomada daqui a três dias.
A avaliar pelas decisões do TC, há um país, na função pública, que vive sob a proteção do princípio da confiança e outro, no setor privado, em que este princípio não se aplica.
Um Estado em que os cidadãos e as empresas não confiam, é um Estado que não consegue gerir um país. O princípio da confiança não é apenas importante para os funcionários públicos. Também é importante para as empresas saberem que o princípio da confiança se aplica nas relações entre elas e o Estado. É importante para o funcionamento da sociedade, como um todo. Dir-me-á: os estatutos do funcionário público são imutáveis? Não, não são. Nem devem ser. Há alterações que podem ser realizadas.
O PS fez uma grande reforma na Segurança Social, mas fê-lo com o cuidado necessário, em 2007, para não falsear o princípio da confiança. Alterou as regras, que passaram a ser outras para o futuro. Uma pessoa que estivesse a meio da sua carreira contributiva já sabia que metade da sua pensão seria calculada de acordo com as regras antigas e a outra metade seria calculada de acordo com as regras novas. O princípio da confiança não foi colocado em causa. Isto é crucial para a relação entre o cidadão, as empresas e o Estado.
Para não ferir o princípio da confiança, essa reforma foi feita com o sacrifício das gerações mais jovens, que vão contribuir com o mesmo ou mais para, no final da vida ativa, receberem pensões de reforma muito mais baixas. Isto é justo?
Em relação às gerações que têm hoje 80 anos, foram estas que deram às gerações mais novas uma melhor educação. Além disso, se disserem a uma pessoa com 40 anos que vai pagar mais e que vai ter uma reforma mais pequena do que a do avô, essa pessoa pode fazer muitas coisas. O avô é que não pode. Pode aforrar mais, arranjar complementos de reforma, arranjar outras formas de poupança que permitam minimizar o impacto das mudanças.
Uma pessoa com 90 anos não tem essa capacidade, nem, provavelmente, consegue entender o que se está a passar. Além disso, a produtividade e os salários, felizmente, de uma pessoa que tem hoje 40 ou 50 anos e que tem um nível de educação que lhe foi legado pelos atuais reformados, são mais elevados. Também houve uma transferência para as novas gerações de capital humano, de desenvolvimento económico, de infraestruturas e de educação que as gerações que têm hoje 80 ou 90 anos não tiveram.
Está contra a ideia de que os atuais pensionistas devem dar uma contribuição para ajudar a sustentar financeiramente a Segurança Social?
Não, eu não disse isso. Houve uma boa ideia, que foi despezada inicialmente, mas que agora foi repescada com outro nome, que é a “TSU dos pensionistas”. Eu penso que deve haver uma pequena contribuição de todos os pensionistas para a Segurança Social com o objetivo de ajudar à sustentabilidade. Acho que isto é razoável e que o princípio da confiança não fica abalado porque a medida apanharia toda a gente e, em segundo lugar, seria certamente uma contribuição pequena. Se o Estado disser a um reformado que, em vez de receber dois mil euros, irá receber 1.950, não penso que o princípio da confiança fique abalado.
Outra coisa é a contribuição extraordinária de solidariedade (CES) que eu acho que abala o princípio da proporcionalidade e da igualdade perante a lei e da confiança. O Tribunal Constitucional não a chumbou, não vou discutir isso. Mas é uma história diferente de haver uma contribuição de toda a gente, porque um regime destes permite recolher grandes recursos. A medida devia ser acompanhada de um programa, que devia estar fora do sistema de pensões, de apoios sociais, para compensar as situações em que a quebra de rendimento nas pensões mais baixas originada pela contribuição fosse muito gravosa. É para isto que pagamos impostos, para termos uma sociedade mais igualitária. E também não podemos esquecer que o IRS, nos últimos anos, subiu muito mais para os reformados do que para os ativos. Mas há muitas coisas que a política orçamental devia ter feito e não fez.
Quais?
Cortar na despesa.
Cortar na despesa é, entre outras coisas, cortar nos salários da função pública, mas o TC não deixou.
Para reduzir a despesa cortando 5% a toda a gente, baixando as pensões e reduzindo os salários, não precisamos de grandes gestores. Qualquer pessoa o consegue fazer.
Em que despesas se deve cortar, então?
Exatamente: onde se corta? A primeira coisa que se deve fazer é ir à procura de onde se corta, porque ninguém tem uma varinha mágica para o saber. Devem fazer-se auditorias de gestão. Deve comparar-se uma repartição de finanças que funciona bem, e há indicadores de produtitivdade que podem ser objetivamente medidos, com outra ao lado que funciona mal. Para isto é preciso tempo. Mas já lá vão três anos. Nós próprios, no dia a dia, encontramos isso. Lojas do cidadão que funcionam bem e outras que funcionam mal.
É importante fazer auditorias de gestão com os próprios funcionários porque é quem sabe onde está o desperdício. Aqui, sim, está uma área em que os privados podem dar uma ajuda, porque estão habituados a fazer isto nas empresas. Quem diz repartições de finanças, diz hospitais ou institutos. Não é fazer aquilo que se fez com as fundações que foi um exercício feito em cima do joelho para justificar algumas medidas. No final, não se poupou grande coisa.
Acredita que esses ganhos de eficiência seriam suficientes para corrigir a acumulação de desequilíbrios nas contas públicas?
O défice público, há cinco anos, estava em 4%. Admito que houvesse algumas operações que estariam escondidas. Ora, 4% é o que temos hoje. No fundo, estamos como estávamos há cinco, seis ou sete anos. Não houve um ganho extraordinário e sofremos muito. Era bom que se percebesse como é que poderemos reformar a administração pública com o objetivo de poupar recursos. Poderia, no final disto, haver um reajustamento salarial e um ligeiro ajustamento das pensões de reforma. O que eu penso é que não se deve começar por aqui. É depois de se tentar tudo o resto que podemos chegar à conclusão que não é suficiente. E este trabalho não foi feito.
Que medidas devia o Governo adoptar para contornar o chumbo de medidas de corte da despesa decidido pelo TC?
Antes de mais, o “chumbo” do TC aponta para cortes nessas áreas, mas de diferente gravidade. Segundo, o Governo deve procurar fazer cortes “verticais” em vez dos tradicionais cortes “horizontais” e temporários. Ou seja, fechar actividades e não reduzir, significativamente, os salários da função pública e as pensões. Por último, e apenas em desespero, poderá ter de aumentar as receitas com aumento de impostos.
Concorda com um aumento do IVA?
Preferia cortes na despesa da forma que já falámos. No caso extremo de o Governo considerar o aumento de impostos como necessário, penso que o aumento do IVA seria o “menos mau”.
A dívida portuguesa é sustentável?
Primeiro, veremos quanto é que a economia portuguesa vai crescer em 2014. Se o investimento retomar, o crescimento pode ser superior às previsões oficiais. A economia está com um excesso de capacidade e prevejo que uma certa aceleração, ainda que moderada, da economia europeia, certamente vai ajudar. Não estou particularmente pessimista neste momento, assumindo que o investimento retoma. Quanto à sustentabilidade da dívida, há quem defenda a reestruturação. Eu acho que é um erro gravíssimo.
Porquê?
É um erro, especialmente quando a defesa da reestruturação da dívida é feita por pessoas com responsabilidade. Em termos grosseiros, um terço da dívida pública está com a troika. Com a troika podemos negociar alguma extensão dos pazos e, eventualmente, uma pequena redução da taxas de juro.
Isso já foi feito por Vítor Gaspar.
Ora bem. Isto em parte já foi feito e não penso que possamos ir muito mais longe. Depois, temos outro terço que está em instituições financeiras portuguesas, como bancos, seguradoras e fundos. Reestruturar a dívida significa dizer a estas entidades que a dívida de cem passa a ser de cinquenta. No dia seguinte, os bancos portugueses estarão a precisar de apoio do Estado, e provavelmente com socorro da troika, o que significava um novo pacote de ajuda parecido com o de há três anos, para recapitalizar os bancos e não deixar as seguradoras entrarem em insolvência. Ou seja, seria retirar de um bolso para colocar noutro. Ficava tudo na mesma.
Um último terço da dívida pública está no mercado internacional, nas carteiras de fundos de investimento e de fundos de pensões. Estas são as instituições que acreditaram em nós. Temos de pensar nas perdas de reputação de quem atravessou um período em que a nossa dívida foi considerada “lixo” e, apesar de tudo, apostou que Portugal era capaz de recuperar. Iriamos, agora, defraudar as poucas pessoas no mundo inteiro que tiveram confiança em nós? Pedir a reestruturação da dívida é uma coisa brutal neste momento. As taxas de juro de longo prazo ressentiram-se durante uma semana a dez dias, precisamente quando foi divulgado o abaixo-assinado que defendeu a reestruturação da dívida e que foi tecnicamente errado e completamente inoportuno.
A ideia de que temos que reestruturar a dívida para crescer é errada. Pelo contrário, nós temos de crescer para pagar a dívida. Uma reestruturação da dívida implicava andar para trás três ou quatro anos em termos de taxas de juro. Não iria haver crescimento porque não haveria quem quisesse investir e o Estado também não o poderia fazer porque não haveria quem lhe emprestasse dinheiro.
Existe o risco de deflação em Portugal e na zona euro?
Deflação é uma doença muito grave. O Japão está em deflação há quase trinta anos e praticamente não tem crescido. É um pântano do qual é muito difícil sair. No caso europeu, já há vários países em deflação, como são os casos português, espanhol e, provavelmente, italiano. Há a probabilidade de a zona euro entrar em deflação. É baixa, mas é suficientemente grave para que se tomem medidas. Se há acordo entre todos os economistas de todas as escolas, é o de que a melhor maneira de combater a deflação é fazê-lo antes de ela tomar conta da economia.
Haver um período curto, pontual, de queda nos preços não é grave. A questão é a de saber se essa queda de preços pode contaminar as expetativas. A partir do momento em que contamina as expetativas, inverter a situação, especialmente numa economia de grande dimensão como a europeia, torna-se muito, muito difícil. Para combater a deflação, é preciso ter política orçamental e é preciso ter política monetária. A zona euro tem uma política monetária muito segmentada. O mecanismo de transmissão dessa política monetária, que tem sido expansionista, não tem permitido que chegue a Portugal, por exemplo.
Segundo ponto: não há política orçamental na zona euro. Existe apenas o Tratado Orçamental que coloca restrições orçamentais a países como Portugal, mas não há uma autoridade que coordene as políticas orçamentais por forma a sair de uma situação de deflação. A zona euro está muito mal equipada para combater uma eventual situação de deflação.
As medidas anunciadas a 5 de junho pelo BCE dão resposta ao risco de deflação?
Vejamos o que foi anunciado. Primeiro, o corte da taxa de refinanciamento de 0,25 para 0,15%. Este valor não tem qualquer impacto direto nas economias. Presumo que o BCE pretende manter o “corredor” de 0,25 entre as taxas. Pode sinalizar uma vontade política, mas é pouco. Segundo, baixou a taxas de depósito dos bancos no BCE para terreno negativo, ou seja, -0,1%. Penso ser a primeira vez que tal acontece na história. O objetivo desta medida é “forçar” os bancos a colocarem no mercado os seus excessos de liquidez e reservas excedentárias. Se tal acontecer, terá algum efeito na economia.
No entanto, os bancos podem reagir de outra forma e reduzir apenas o excesso de liquidez que obtêm do BCE. Passam, certamente, a gerir a liquidez com muito mais cautelas. Se este efeito for dominante, reduz significativamente o impacto desta medida na economia. As medidas do BCE deveriam ser acompanhadas de compra direta de ativos nos mercados onde a política monetária chega deficientemente, por exemplo, comprando dívida pública ou de grandes empresas de Portugal, Espanha e de outros países.
O BCE reagiu tarde?
Sem dúvida. Foi tarde e sabe a pouco. Dificilmente se é excessivo para combater o perigo de deflação. Eu gostaria que o BCE já tivesse assumido estar consciente de que existe esse perigo. Mas o discurso foi, todo ele, no sentido de dizer que não havia esse risco de deflação. Se o BCE tivesse dito há meses que o problema era real e que estava a seguir a situação, provavelmente nunca necessitaria de fazer nada porque os mecanismos de mercado e das expetativas seriam auto corretivos.
A melhor maneira de combater um fenómeno monetário é tomar em conta as expetativas, não as falsear e considerar que a gestão das expetativas é, também, um grande instrumento de política monetária. Gostaria de ver maior preocupação verbal da parte dos responsáveis do BCE em relação à deflação e, é evidente, só as palavras não chegam.