Leïla Slimani é um dos novos portentos da literatura em todo o mundo e dizê-lo é repeti-lo. Depois de Canção doce (2017) e No jardim do ogre (2021), a Alfaguara publicou O país dos outros, que confirma a autora franco-marroquina como uma das vozes mais fortes, sagazes, inteligentes, capazes e talentosas da literatura coetânea.
Sempre surpreendente, Slimani não se cinge a uma fórmula: cada romance toca num terreno que o anterior não tocou, explora os limites da experiência humana, traz uma sinceridade que não está sujeita a pudores ou medos. Não escrevendo sempre o mesmo livro, põe em cada romance o mesmo afinco e o resultado é sempre a mesma surpresa.
Neste novo romance, primeiro de uma trilogia, Slimani enfrenta uma saga familiar em torno da figura de Mathilde, uma mulher francesa no limbo de duas culturas: por um lado, tem o apego à liberdade com que cresceu em casa; por outro, tem a família que construiu com um homem árabe, com quem vive em Marrocos. Tudo isto com a colonização deste mesmo país, não por trás, mas por dentro (tal como a história da própria família, um regresso aos avós que aqui serve também de ligação entre facto e ficção). A autora, com uma exigência rara, explora as implicações da colonização na casa desta mulher que, sendo francesa e branca, por ser casada com um árabe, não podia fazer parte do mundo colonial.
Em 1944, Mathilde apaixona-se por Amine, oficial marroquino ao serviço do exército francês durante a segunda Grande Guerra. Após a guerra, mudam-se para Marrocos, instalando-se perto de Meknès. O marido quer recuperar a quinta herdada do pai, iniciando o embate de um homem contra a terra que não parece propícia a grande fruto. Cercada pelo ambiente estéril, Mathilde também começa viver numa balança: de um lado, está essa paixão inicial; do outro, está um conservadorismo que a sufoca, que a relega para um segundo plano da humanidade, que a trata como coadjuvante por ser mulher, e a personagem tem dificuldade em fazer valer a sua vontade. Sentindo-se sob o peso de outra cultura, sente-se longe de tudo, e a sua solidão adensa-se. Francesa no país colonizado por França, não sai de si a sensação de estar num lugar que é de outros, e o seu desfasamento só acentua mais o desconforto.
Vemos a colonização a partir do seu drama individual, acompanhando a tensão que desemboca na independência de Marrocos em 1956. Se, por um lado, todos parecem viver no país dos outros, as mulheres parecem ainda viver no país dos homens. Tratadas como território de homens, parecem vítimas de uma dupla colonização, e estabelece-se um paralelo entre as terras sitiadas e os corpos femininos dominados. Leïla Slimani é até clara sobre isso numa entrevista que nos dá, sublinhando esta “dupla colonização, ao mesmo tempo pelos colonos e o Estado e o poder político, e sempre pelos homens”. Assim, é para autora “interessante escrever um romance sobre colonização, mas do ponto de vista das mulheres, já que percebem melhor do que os homens o que é uma colonização, viver num sítio onde lhes dizem o que fazer, vestir e onde podem ir. É isso que os colonos dizem aos marroquinos: não podes ir à parte europeia, trabalhar aqui, ir à piscina. E eu quis fazer uma espécie de paralelo entre a emancipação do povo marroquino que queria liberdade e independência e a luta das mulheres, que também queriam liberdade e independência e os homens não as ouviam”.
No romance, torna-se claro que os homens colonizados não se põem no lugar de opressores de outros. Uma das cenas mais representativas, e até chocantes, do romance é aquela em que uma personagem está confinada a um quarto, não podendo sequer ir à janela. Aqui, a sua opressão é dupla: não pode ver os outros nem pode ser vista. Para Leïla, o que pesa mais é “talvez o facto de não poderes ser vista, porque aí não existes. Precisas de ser vista para existir. Precisas de ser um corpo, uma pessoa que os outros podem ver. A ideia de nunca poder sair e estar no espaço público como indivíduo que pode ser visto é terrível.”
O efeito da prosa de Leïla Slimani verifica-se também através da forma como explora a intimidade das personagens. No caso, foi-lhe possível adentrar-se no impacto da colonização numa casa. Com a subtileza que lhe é característica, não cede à dicotomia “bem e mal”, e afirma que “a literatura é feita para isso. Quando escreves ou lês livros, é impossível julgar, porque te identificas com toda a gente, até com as pessoas más. Exploras a alma das personagens de forma tal que o que interessa não é julgar, mas entender. E sentes ternura e compaixão. Principalmente na literatura, podes ir a fundo em alguém. É por isso que lido sempre com intimidade e descrevo todas as situações do ponto de vista íntimo. É assim que digo que nada é preto ou branco, fácil de julgar. A vida é cinzenta, ambígua, complexa. Toda a gente tem outro lado. A História procura factos. Como ciência, procura a verdade, mas os historiadores que admiro também entendem a ambiguidade. E percebem o que é ser humano e o quão complexo é, e tentam não julgar. Se escrevo um livro só para dizer que a colonização é má, não vou escrever muito. Assim que dissesse isso, que mais haveria para dizer? Estou interessada em indivíduos. É essa a diferença principal entre História e literatura. A História é sobre povos, o destino coletivo. E a literatura é sobre indivíduos, que são todos diferentes.”
Leïla Slimani opta sempre por mostrar em vez de contar, e afirma que “Não cabe à literatura fazer pedagogia ou tentar ser ideológica ou passar uma mensagem. A literatura é algo subtil.” Para mais, “queria que o livro fosse sensual. Que as pessoas sentissem Marrocos, a cor, os cheiros, as paisagens. Queria que fosse sobre sensações, mais do que sobre explicações e teoria. É algo que se sente. E queria que o leitor se identificasse com Mathilde e descobrisse este país e se surpreendesse.”
Através de figura de Mathilde, encontramos um ambiente global em que se mata o desejo feminino, e logo em dois sentidos – os corpos são colonizados, tal como os cérebros. Não é a primeira vez que Slimani trata o assunto, que lhe é caro: “Como escritoras, devemos explorar este território que nunca foi explorado: a forma como as mulheres experienciam o mundo, como desejam e amam. Não são só amantes e mães. São pessoas que também querem ser heroínas, passar por aventuras e lutar. É por isso que acho muito interessante escrever uma trilogia e um romance histórico e ter mulheres como personagens principais. E lidar com a guerra e a colonização, que são geralmente tratadas do ponto de vista masculino, porque os homens são sempre os soldados e os heróis e são aqueles que supostamente fazem a guerra. O subtítulo do livro é ‘A guerra, a guerra, a guerra’ porque as mulheres fazem a guerra. Não é preciso usar uma farda e ter uma arma para isso. Todas as mulheres sabem o que é a guerra. E vem muitas vezes ao quarto e à sala delas, porque são vítimas de violência doméstica e de tantas formas de dominação e violência. Acho que as mulheres sabem muito sobre a guerra.”
Esta guerra, contudo, parece escondida na literatura e na história. “E na vida”, acrescenta a autora. “Todos os dias. Quando o movimento MeToo apareceu em França e nos EUA, muitas mulheres falaram de violação e abuso e muitos homens ficaram admirados, perguntaram-se como seria possível que tantas mulheres passassem por isso e eles nunca o tivessem sabido. As mulheres durante demasiado tempo tiveram o hábito do segredo e guardavam tudo para elas, porque toda a gente lhes dizia para não fazerem barulho, um escândalo, para serem boas meninas, aceitarem o que tinha acontecido, não acusarem os outros. Pediam-lhes que casassem e tivessem filhos e era tudo. Há uma violência escondida que está todos os dias na rua. Vai da casa à rua, é feita pela mãe, pelo pai, pelo marido, pelos filhos, por desconhecidos. Não me refiro só à violência sexual, mas a todo o tipo de violência.”
No seu romance, também esta violência é clara e os homens medem as mulheres consoante a sua capacidade de submissão absoluta:
“Por vezes, [Amine] sentia uma necessidade violenta e cruel de regresar à sua cultura, de amar de corpo e alma o seu deus, a sua língua e a sua terra, e a incompreensão de Mathilde punha-o fora de si. Queria uma mulher parecida com a mãe, que o compreendesse nas entrelinhas, que tivesse a paciência e a abnegação do seu povo, que falsse pouco e trabalhasse muito. Uma mulher que o esperasse ao final do dia, silenciosa e dedicada, e que o observasse enquanto comia e encontrasse nisso toda a sua femlicidade e toda a sua glória.” (p. 103)
Além disso, as mulheres são de tal forma invisibilizadas que não parecem sequer mães dos próprios filhos: “O nosso casamento, na igreja, não tem valor legal aqui. O país está prestes a conquistar a independência e, se eu morrer, não quero que dês por ti sem nenhum direito aos meninos” (p. 180), diz Amine a Mathilde.
Leïla Slimani encontra-se agora a preparar a segunda parte desta trilogia, cuja ação se passará durante os anos 60, em torno de “hippies, contracultura, o ambiente peace and love”. “É sobre o desapontamento desta geração e o início da ditadura em Marrocos com o rei Hassan II. Será também muito violento e sobre mulheres mas também sobre o que é ser-se jovem e as desilusões que se enfrenta quando se chega a adulto e se tem de escolher um emprego, uma forma de viver. Será mais sobre classes sociais, vai ser um livro muito marxista”.
Estando quase a acabar este romance, acrescenta ainda que a terceira parte desta trilogia será sobre a sua geração, incidindo no tema da emigração: “Na minha geração, muitos marroquinos foram para França, Espanha e os EUA. É sobre o tempo da globalização e o início do terrorismo e do Islão radical.”
A trilogia adivinha-se, assim, abrangente e intensa, como já é apanágio na obra da autora. De Slimani, já só se esperam obras calibradas, que escrutinem a realidade e no-la devolvam em forma de literatura.