O problema, como de costume, são as expectativas. Levamos poucos segundos a desenvolver certezas absolutas sobre coisas e pessoas que, depois, se dão ao desplante de não serem o que decidimos para elas. Chamem-lhe realidade, se quiserem; para nós, é plot twist. Leonardo DiCaprio era só um menino bonito para fazer suspirar adolescentes, que nós bem o vimos. Como foi que se atreveu a transformar num dos atores mais marcantes do seu tempo e a liderar alguns dos melhores filmes que Hollywood nos deu nos últimos 20 anos? Se nem sequer é um fulano dilacerado por uma tortuosa história familiar ou uma adição desviante a qualquer coisa autodestrutiva? Não era suposto ter-se perdido há anos, numa espiral de drogas, álcool e lamentáveis escolhas de carreira?
Tantos livros se teriam escrito sobre ele. Teria dado artigos tão mais interessantes de jornal. Mas não. Em vez disso, tornou-se o actor-fétiche de Martin Scorsese ou Quentin Tarantino, que nas horas vagas namora com super-modelos e tenta salvar ursos polares. Agora, em menos de nada, faz 50 anos. Leo, quando é que vais acordar e começar a fazer qualquer coisa a sério da vida?
Teen dream
A sensação de que tudo nele parecia uma fórmula de estrela pronta a dissolver em água e usar começava no nome. Por favor… Quem é que se chama Leonardo DiCaprio, espécie de versão atualizada para destino turístico de artista dos sete ofícios? Mas era mesmo esse o nome verdadeiro do filho da secretária Irmelin Wilhelm, que um agente ainda tentou em vão americanizar para Lenny Williams. Ficou Leonardo, por causa dum pontapé dentro da barriga da mãe quando esta contemplava um Da Vinci durante uma visita aos Ufizzi, em Florença, e DiCaprio como o pai George, obscuro criador de BD que chega a fazer algumas aparições nas páginas de American Splendor do amigo Harvey Pekar.
Tinha, portanto, nome de estrela, cara de estrela e até nascera na terra delas: Los Angeles, nos idos dessa Hollywood renascida dos anos 70. Fez as primeiras experiências como ator-criança na televisão ainda a década não tinha terminado; depois, continuou pela seguinte como se Deus nunca tivesse tido outro plano para ele: séries, publicidades, conteúdos educativos. Apareceu ao lado da Lassie e do Mickey. Tudo o que se podia esperar de alguém que, a qualquer momento, descambasse para a delinquência e a tentativa de abuso de menores, portanto. Mas não.
Logo a partir de Growing Pains começámos a vê-lo também deste lado do mundo: o adolescente adotado que, episódio a episódio, roubava as cenas à família Seavers. Cedo os guionistas tiveram de escrever o fim da personagem: Leo estava a caminho do cinema e a porta de entrada parecia mesmo uma dessas feitas para o desastre – Critters – Seres do Espaço – III. O filme cumpriu o destino do género – um terror –, mas o jovem prodígio escapava incólume. Dois anos depois, já fazia de filho de Robert De Niro em This Boy’s Life (A Vida Deste Rapaz) e sacava uma nomeação aos Óscares para melhor ator secundário por What’s Eating Gilbert Grape?, ao lado de dois dos maiores ícones do cinema do fim de século: Johnny Depp e Juliette Lewis. Em 95, dá início à caderneta de personagens reais encarnando Jim Carroll em Basketball Diaries (Grito de Revolta); no mesmo ano, surge ao lado de Gene Hackman e Sharon Stone em Rápida e Mortal, e faz o Rimbaud que era para ter sido do falecido River Phoenix em Eclipse Total. E ainda só tinha 19 anos. Para a vida ser justa, a desgraça devia estar quase, quase a começar.
Mas nada. Nunca nada de desgraças. Nem uma altercação com um realizador, uma traição a uma namorada, um acidentezinho a alta velocidade. Em vez disso, veio o convite de Baz Luhrmann para Romeu + Julieta. E depois, o de James Cameron para ser o Romeu outra vez, mas desta feita em Titanic. Era o rei do mundo. Rico, bonito, famoso, amado por meio planeta – e, portanto, obviamente odiado por outro tanto. Berlim deu-lhe um Urso de Prata para melhor ator por Romeu + Julieta? Hollywood arranjou-lhe um Razzie para pior por O Homem da Máscara de Ferro. E logo a seguir, outro por A Praia. Era preciso arrumá-lo bem arrumado numa categoria: a do louro burro, pretty boy floyd. Era um poster que fazia sucessos de bilheteira – Deus nos livre de o apreciar como ator.
Era uma pena que os grandes realizadores fossem cada vez mais de outra opinião: Luhrmann, Cameron, Danny Boyle e até Woody Allen, em Celebrity (Celebridades), já o tinham chamado para trabalhar com eles. Mas os grandes convites, os grandes desafios para os grandes filmes e os grandes papéis, só iam começar a seguir.
A única coisa no caminho entre ti e o sucesso é a história de merda que tens contado a ti mesmo
No fundo, 2002 poderia ter sido o ano do tudo ou nada. Na ressaca do 11 de Setembro, Martin Scorsese prometia uma viagem épica às origens da cidade que agora sentíamos mais do que nunca como nossa, universal. Mas nem Gangues de Nova York sairia à altura da expectativa nem DiCaprio ileso do duelo com o regresso ao ativo daquilo que era – é (?) – possivelmente, o maior ator de cinema vivo do mundo: o talhante Bill Cutting de Daniel Day-Lewis podia perder na trama, mas, em talento, desfazia o de DiCaprio em picadinho para hambúrgueres. Só que, antes que a malta dos Razzies pudesse esfregar as mãos de contente e arrumar de vez o Peter Pan de LA na categoria de poster boy, um segundo filme nesse mesmo ano contaria uma história diferente.
Estranhamente estreado apenas poucos meses depois de outro lançamento seu, Apanha-me Se Puderes revelar-se-ia, não só um dos melhores de Steven Spielberg em muitos anos – bem melhor conseguido do que Relatório Minoritário, dispendiosa e desajeitada adaptação do conto de Philip K. Dick para onde desviara todas as atenções pouco antes naquele mesmo ano –. como também a definitiva ordenação de DiCaprio como cavaleiro da ordem dos crescidos. Como se crescesse literalmente diante dos nossos olhos, do adolescente de ombros encolhidos que conhecemos nas soaps e sitcoms dos anos 80 ao adulto que carregará filmes inteiros às costas a partir dali, a sua encarnação do vígaro Frank Abagnale Jr. através do tempo e das múltiplas peles por que se fez passar é qualquer coisa para a História.
E para quem não viu ou não quis ver, dois anos depois repetia o show de representação: três horas de tour de force como Howard Hughes, dos aviões aos amores, do cinema à lenta espiral para a obsessão – “The way of the future, the way of the future…” O novo Citizen Kane de um Orson Welles para o século XXI, se acaso tivesse a talvez não despicienda dimensão de autor.
Logo depois dessa segunda colaboração com Scorsese, uma terceira: The Departed – Entre Inimigos traz finalmente o Óscar ao realizador, pondo de fim a uma das mais absurdas esperas da história de Hollywood (30 anos de atraso para Taxi Driver) e mais uma tentativa bem-sucedida de ignorar o brilho de DiCaprio, mesmo quando incrustado num elenco estelar com Jack Nicholson, Matt Damon, Mark Wahlberg, Alec Baldwin ou Martin Sheen. No mesmo ano, só porque podia, outra interpretação fabulosa como o traficante sul-africano Danny Archer, crescendo no ecrã até não se dar pela diferença de envergadura para o gigante Djimon Hounsou, no menos-falado-do-que-devia Diamante de Sangue, de Edward Zwick.
O abraço do urso
Se tivesse desaparecido de cena depois destes quatro últimos filmes, retirado para um barco no Índico ou simplesmente o canto dum balcão de bar em Boston, talvez se tornasse uma lenda; mas, exigência dele ou do meio, para DiCaprio parecia que era preciso estar sempre a demonstrar mais. Seguiu-se o regresso aos braços de Kate Winslet, pelas mãos do marido Sam Mendes, em Revolutionary Road, e a Baz Luhrmann para um não tão Grande Gatsby assim; uma parceria com Russell Crowe ao serviço da CIA, nas areias do deserto jordano de O Corpo da Mentira, de Ridley Scott, e a colaboração com um dos mestres que lhe faltava, Clint Eastwood, em J. Edgar. Mas se nenhum daqueles saiu a proeza que os envolvidos talvez pretendessem, Shutter Island comprovava à saciedade a requintada eficácia da relojoaria de luxo Scorsese-DiCaprio e Inception – A Origem o talento grandiloquente de Christopher Nolan num dos seus momentos mais felizes.
Os heróis atormentados, caminhando na corda bamba entre o real e o delírio, tornaram-se uma das suas especialidades. Mas também as grandes figuras tragicómicas, clownescas, violentas ao ponto da autodestruição, humanas dignas de toda a misericórdia, pagam todos os cêntimos que o bilhete para os filmes de super-heróis e muito CGI que até aqui nunca aceitou fazer possam valer. No fim, o que fica do cinema dos últimos 20 anos são cenas como a do jantar presidido pelo esclavagista Calvin Candie, dissertando de caveira na mão sobre as diferenças entre brancos e negros no formidável Django Libertado, primeira incursão às mãos de Tarantino, ou o maias-que-frenético Jordan Belfort rastejando para o carro, tentando alcançá-lo como um mutilado atravessando uma zona de guerra debaixo de intenso bombardeamento, quando na verdade se tratam apenas de uns poucos metros de passeio e uma gigantesca moca resultante de um mix de Quaaludes, Adderall, Xanax, cocaína e morfina, no inesquecível Lobo de Wall Street.
Nesta altura, claro, já se tinha tornado uma tradição americana não dar, ano após ano, o Óscar a DiCaprio. Depois da nomeação logo aos 20 anos para melhor secundário por Gilbert Grape, fora já indicado para melhor ator principal por O Aviador, Diamante de Sangue e O Lobo de Wall Street. As duas colaborações com Scorsese tinham já resultado em Globos de Ouro e, das suas muitas participações à frente do elenco de produções nomeadas para melhor filme, duas tinham já vencido esse Óscar dos Óscares: Titanic, obviamente, e The Departed.
Mas, depois de tanta personagem, tanto discurso torrencial, tanta entrega física aos papéis, tanto trabalho de rosto, olhar, sotaques, adaptação a tempos históricos (dizem que já interpretou personagens em todas as décadas dos últimos 165 anos), é claro que a Academia lhe deu finalmente um Óscar… quando quase não abriu a boca. Em 2016, a estatueta entregue pelo trabalho em The Revenant, de Alejandro Gonzalez Iñarritu, valeu ainda mais tweets que a selfie de Ellen DeGeneres com meia Hollywood dois anos antes. Choveram prémios, além do Óscar: BAFTA, Globo de Ouro e até o Screen Actors Guild Award, a distinção atribuída pelos seus pares atores. Leo tinha finalmente saldado a dívida de ser bonito, talentoso, bem-comportado e uma criança-prodígio que não se perdeu. Bastaram 37 anos de carreira e ser violado por um urso.
Riscos da meia-idade
Nos últimos anos, o eterno Romeu americano parece, enfim, ter abrandado o ritmo. Não Olhem para Cima foi quase um filme-manifesto da causa de que se tornou um dos principais advogados a nível global, a da consciencialização para o apocalipse ambiental eminente. Assassinos da Lua das Flores, a sexta colaboração com Scorsese, porventura, a precisar de renovação; Era uma Vez em Hollywood uma segunda e, por ora, mais criativa parceria com Tarantino, a resultar em mais alguns dos momentos mais felizes da história do cinema americano no século XXI: a homenagem ao atores de serials, a dupla com o “duplo” Brad Pitt ofuscada pelo frente-a-frente com a pequena-grande Julia Butters, o épico ajuste de contas, de lança-chamas em punho, com os assassinos de Sharon Tate.
Aos 50 anos, já trabalhou com Scorsese, Tarantino, Spielberg, Woody Allen, Clint Eastwood, James Cameron, Ridley Scott e Christopher Nolan. Contracenou com Kate Winslet, Cate Blanchett, Margot Robbie, Daniel Day-Lewis, Robert De Niro, Jack Nicholson, Tom Hanks ou Matthew McConaughey. Nunca fez um filme mau ou um fracasso de bilheteira. Talvez lhe falte correr mais riscos, assumir um lado de autor, mostrar-nos quem é e o que pensa quando não está a ser o que os outros precisam e querem que seja e pense. Sem isso, talvez fique apenas como um James Dean sem tormenta – como se isso fosse pouco. Em vez de rebelde sem causa, bem-comportado e com causas. Assumidamente, nunca tocou em drogas; cresceu demasiado perto das más esquinas de Los Angeles para não saber o que fazem. “As pessoas querem que sejas louco, um pirralho adolescente descontrolado”, declarou numa entrevista ainda no princípio de carreira. “Querem-te miserável, como elas. Não querem heróis; querem ver-te cair.”
Já perdíamos a mania de confundir de que lado da pele dum ator devem acontecer as histórias que valem a pena contar. Às vezes, um grande ator é só um fantoche. Cultor da arte de ser máscara. A mais extraordinária marioneta.