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Entrevista ao Observador ao escritor Leonardo Padura. Natural de Cuba, já trabalhou como guionista, jornalista e crítico, mas ficou conhecido pelos seus romances policiais. 4 de Maio de 2022 Alcântara, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Leonardo Padura: “O grande problema de Cuba é a sua má relação histórica com os Estados Unidos”

O romance é o reino da liberdade, diz Leonardo Padura, que não saiu de Havana porque é lá que alimenta a escrita. Entrevistámos o escritor cubano que lançou agora o novo "Como Poeira ao Vento".

É o Philip Roth da literatura cubana este Como Poeira ao Vento do cubano Leonardo Padura, pela forma como nos dá uma imagem profunda de um país, de um povo, a partir dos blocos narrativos e temporais com que constrói uma dada realidade intergeracional – neste caso a cubana. O intervalo temporal desta história vai de 1989, ano em que cai o muro de Berlim e a que se segue a queda da União Soviética, e acaba em 2016, ano em que Obama visita Cuba e alivia as medidas de bloqueio à ilha. Pelo meio, essencialmente na primeira metade da década de 90, a crise económica agudíssima que abala os valores da revolução socialista e do chamado homem novo, responsável por um fluxo enorme de emigração ilegal.

Perante esta crise, uns decidem ir – para os Estados Unidos, para a Europa –, outros decidem ficar. E, aqui, Padura explora a diáspora cubana não apenas através da dicotomia permanência/dispersão, o que vai/o que fica, mas também ao nível do que se é/do que se poderia ter sido – caso a decisão tivesse sido outra. A história começa em Hialeah, Miami, com Adela a descobrir que a mãe fazia parte do grupo de amigos dos pais do namorado, Marcos, quando este lhe mostra uma fotografia antiga de um grupo de amigos, cujo ponto de encontro era a casa dos pais, em Fontanar, um espaço onde aquela geração – filha da revolução que aconteceu em 1959 e a primeira a ir massivamente para a universidade – encontrava refúgio. É a geração do próprio Leonardo Padura, autor da série de livros cujo protagonista é o detetive Mario Conde.

A capa de “Como Poeira ao Vento”, de Leonardo Padura (Porto Editora)

Os que partem sentem falta da terra, os que ficam são privados de muita coisa. É um retrato de uma Cuba impossível?
Não é uma Cuba impossível, é uma Cuba muito real. É uma Cuba que no ano 1990, 1991, sofre uma rutura do que vinha sendo uma evolução que parecia natural, depois de 30 anos. Mas a História é imprevisível e ocorreram acontecimentos, que vão desde a queda do muro de Berlim até ao desaparecimento da União Soviética, que afetaram diretamente a vida de Cuba. Creio que a Cuba mais impossível era a anterior, era como uma espécie de Cuba virtual que dependia de uma sustentação económica e política que provinha da União Soviética. Ao desaparecer essa sustentação, começa esta Cuba real. Esta Cuba real afeta a vida as pessoas em todos os sentidos. Faltou a eletricidde, a comida, os transportes, faltou tudo. Costumo dizer que às vezes dava a sensação de que até o ar faltava para respirar. É um momento em que a geração de que falo neste romance – a minha geração – está a entrar na sua fase de amadurecimento, da sua maior capacidade de ser socialmente útil. É uma geração maioritariamente universitária, as personagens desta história são engenheiros, arquitetos, médicos, designers, físicos, matemáticos. Como o são os meus amigos, como o sou eu, como o é a minha esposa. E, de repente, deparámo-nos com o facto de que todas as perspetivas de um futuro – inclusive a realidade de um presente – se desvaneciam. Muita gente lutou para sair para o exílio; já que não havia soluções coletivas, foram à procura de soluções individuais.

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É a primeira geração a ir massivamente para a universidade.
É um fenómeno mundial. Na segunda metade do século XX, que é quando nasce esta geração, é quando se produz um crescimento das universidades em todo o mundo. Este geração [cubana] teve inclusive a oportunidade de fazer estudos universitários de qualidade. O prestígio que os médicos ou os cientistas cubanos têm tido, por exemplo, não é casual. Vem dessa preparação. Antes da revolução, em Cuba o acesso à universidade não era fácil para as pessoas.

O muro caiu, houve esse chamado Período Especial de Crise em Tempo de Paz. O que é que esta geração fez com a utopia?
É um processo de que tenho falado muito através da minha escrita. Os romances, por exemplo; as personagens de Mario Conde. Os primeiros decorrem em 1989, nesse momento em que se começa a sentir uma certa incerteza. Os romances seguintes já se desenvolvem na época de crise mais difícil ou posteriormente à crise mais difícil. O Homem que Gostava de Cães falava muito desse período, falava da frustração perante a perversão da utopia. Já Como Poeira ao Vento desenvolve-se fundamentalmente a partir do ano de 1989, em que todo essa situação que vivemos provoca um grande desencanto. É um desencanto que, ainda por cima, foi alimentado pela possibilidade de conhecer. O grande jornalista polaco – o melhor jornalista do século XX –, Ryszard Kapuściński, disse no seu livro intitulado Império que nos anos 90 nos demos conta de que da História soviética conhecíamos apenas 20%. Os restantes 80% estavam escondidos, descobertos a partir da abertura dos arquivos de Moscovo. Creio que esse conhecimento alinhou ainda mais essa frustração, esse desencanto.

"Hoje mesmo está a viver-se uma crise migratória em Cuba. Saem de Cuba, todos os dias, centenas de pessoas que procuram, através de que forma for, qualquer lugar que seja. Uma maioria está a fazê-lo através da Nicarágua, que não pede vistos aos cubanos. E, a partir daí, empreendem esse caminho terrível que vai por toda a América Central, México, para chegar à fronteira dos Estados Unidos e cruzá-la. Muita gente mesmo, na maioria jovens."

De que forma?
É um tomar de conhecimento de que havíamos vivido num mundo que tinha uma aparência e escondia uma realidade. Tudo isso interferiu na mente das pessoas, mas penso que o que mais as alterou foram as dificuldades da vida quotidiana. Foi uma crise que, na verdade – e passamos aqui da parte trágica à parte terrível –, se prolongou. E por isso hoje mesmo está a viver-se uma crise migratória em Cuba. Saem de Cuba, todos os dias, centenas de pessoas que procuram, através de que forma for, qualquer lugar que seja. Uma maioria está a fazê-lo através da Nicarágua, que não pede vistos aos cubanos. E, a partir daí, empreendem esse caminho terrível que vai por toda a América Central, México, para chegar à fronteira dos Estados Unidos e cruzá-la. Muita gente mesmo, na maioria jovens.

Trump veio contrariar abertura de Obama, abertura que é o segundo tampão temporal deste livro.
Nos últimos três anos, todo este processo de crise acentuou-se. Coincidiram dois elementos muito pesados: por um lado, a pandemia, que paralisou a indústria turística cubana, que era o que alimentava fundamentalmente a economia do país. E, por outro, as medidas de Trump: tomou muitas medidas de carácter económico, financeiro, político, que afetaram a vida de Cuba. Trump dizia sempre que a sua política ia contra o governo cubano. Mas o mais terrível é que, se se for a ver, foi contra os cubanos. O facto de se ter fechado o consulado norte-americano em Havana, sob o pretexto de uns ataques sónicos aos funcionários e diplomatas norte-americanos, implicou que as pessoas, para pedirem um visto, tinham que ir a Guiana [ao consulado norte-americano em Georgetown] – iam de Havana ao México, do México ao Panamá e do Panamá a Guiana. Sem a certeza de que obteriam o visto para os Estados Unidos.  E, com a pandemia, suspenderam-se muitos voos, por parte dos Estados Unidos, por parte de Cuba. Tudo se complicou muito mais.

No livro, a casa de Fontanar é uma metáfora para algo?
Essa é uma casa que eu eu construí. É uma construção literária a partir de modelos possíveis. Fontanar é um pequeno bairro que está na periferia de Havana. Um pouco longe, mas é uma zona urbana. Essa localização permitia-me que tivesse características em que estivesse dentro da cidade, mas também fora. Construí esta casa de forma muito vanguardista, muito peculiar, como algumas que existem nesse bairro, acentuando essas características. Coloco nessa casa toda uma série de elementos simbólicos e sociais para que funcione como uma imagem possível de Cuba. Há uma pedra de cobre que está relacionada com a Virgem da Caridade, padroeira de Cuba; uma suposta chave das grilhetas de José Martí, o herói nacional cubano; uma pequena figura de barro em representação [da carga mitológica] do furacão para os aborígenes cubanos. Há toda uma série de elementos que se relacionam simbolicamente com Cuba. E, em termos sociais, é um local em que coincidem todas estas personagens do romance, que tem 8 a 10 personagens importantes – algumas delas mais protagonistas, mas todas importantes. Reúnem-se nesta casa e desta casa vão saindo ou vão ficando. E a casa vai sofrendo processos de deterioração, de mudança, de recuperação. Há uma altura em que o jardim inglês é convertido numa horta de subsistência. Há bananas, são criados porcos. Há depois uma altura em que a casa está muito deteriorada e um dos que saiu de Cuba e regressa faz um investimento para recuperar um pouco a casa. São detalhes que têm uma ação física, direta, sobre a casa, mas têm também uma conotação metafórica no que diz respeito a esse espaço que pode ser Cuba.

Entrevista ao Observador ao escritor Leonardo Padura. Natural de Cuba, já trabalhou como guionista, jornalista e crítico, mas ficou conhecido pelos seus romances policiais. 4 de Maio de 2022 Alcântara, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Decidimos ficar [em Cuba] porque eu tive sempre muito claras as minhas funções. Talvez fora de Cuba pudesse ter benefícios materiais. Mas em Cuba tinha algo que lá fora não iria ter: tempo"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Não é por acaso que os pais da dona da casa, Clara, eram arquitetos.
Sobretudo para poderem construir essa casa de forma tão peculiar. São duas personagens muito típicas de um momento em que a parte maioritária da intelectualidade cubana se entregou à revolução.

O próprio Leonardo nasceu 4 anos antes da revolução. Toda a sua vida tem sido a acompanhar a revolução.
A minha vida é mais parecida com as personagens protagonistas do romance. Os pais de Clara são da geração dos meus pais, chegam adultos à revolução. A nossa é uma geração que se cria, que vive na revolução. A minha esposa, Lucía, nasce no mesmo ano da revolução, 1959. Eu nasci em 1955. Toda a minha vida consciente foi depois de ’59. Participámos de tudo o que ocorria no país de uma forma natural. Íamos à escola, íamos aos acampamentos agrícolas por períodos de dois meses, fazia-se o serviço militar. Tive a sorte de isso não me ter tocado, mas fui a Angola um ano como jornalista. Numa altura ano em que Cuba estava muito presente em Angola. Soube o que foi viver num país em guerra, embora nunca tenha participado em nenhuma ação militar, felizmente. Passámos por todas as experiências destes anos. Nós também vivemos num bairro da periferia de Havana e trabalhávamos no centro. Tínhamos que fazer um percurso de 15, 20 quilómetros de bicicleta para ir trabalhar de manhã e depois à tarde, quando regressássemos. Essa viagem de manhã faz-se bem mas, quando são três, quatro horas da tarde, com o calor do verão em Cuba é uma viagem ao inferno. Passámos por tudo.

Porque ficaram em Cuba?
Decidimos ficar [em Cuba] sobretudo porque eu tive sempre muito claras as minhas funções. Talvez fora de Cuba pudesse ter determinados benefícios materiais. Mas em Cuba, inclusive nesses momentos difíceis, eu tinha algo que lá fora não iria ter: tempo. O tempo é fundamental para o escritor. Entre 1990 e 1995, os piores anos da crise, escrevi como um louco para não ficar louco. Escrevi três romances, um livro de ensaio, duas antologias – de jornalismo, de contos. Escrevi para cinema. Trabalhei muito. O que me permitiu passar um pouquinho melhor essa etapa, porque ganhava algum dinheiro fora de Cuba. E, por outro lado, a minha mente estava concentrada não só na sobrevivência, mas também em coisas menos agressivas e mais agradáveis como é a criação.

"Para escrever um romance, uma reportagem, o que for, criticando o governo cubano, não preciso de dizer mentiras, porque a verdade é suficiente. Se digo mentiras, estou a pôr em jogo a tua credibilidade. Digo sempre que a verdade é relativa, mas a mentira é absoluta. Posso ver uma realidade de uma perspetiva diferente e ambas serem verdadeiras, porque interferem nelas determinados conceitos que cada um possa ter. Mas, quando é mentira, é mentira."

O que trouxe a sua experiência enquanto jornalista à escrita de ficção? Ao retrato, que é histórico, neste romance?
Trabalhei 15 anos como jornalista, era o meu trabalho de subsistência. Primeiro trabalhei três anos numa revista cultural, depois num jornal e outros 5 em outra revista cultural, já como chefe de redação. Em 1995, termino a minha vida laboral como jornalista e, em 1996, torno-me escritor independente. Continuei a colaborar com jornais, com revistas. Ontem mesmo enviei uma crónica para o El País. Os anos de ’89 e ’90 foram muito importantes para mim. Tinha escrito um romance, que se chama Fiebre de Caballos, em 1983, 1984. E, nos seis anos seguintes, dediquei-me apenas ao jornalismo. Não tinha tempo de escrever literatura porque fazia reportagens muito grandes, de investigação histórica, de personalidades. Fazia grandes entrevistas. Dediquei-me por completo ao jornalismo. Quando deixo de trabalhar nessa revista, volto a ter tempo para escrever e escrevo o primeiro romance de Mario Conde. Quando lês Fiebre de Caballo e Pasado Perfecto – há seis, sete anos entre a publicação de um e de outro –, dás-te conta de que este escritor jovem, que começou a escrever aqui [aponta, com a mão esquerda, para um ponto no ar], e este escritor aqui [aponta, com a outra mão, para um ponto no ar mais à direita], um pouco mais maduro, houve uma grande evolução. Houve uma grande aprendizagem. E essa aprendizagem foi feita durante esse espaço jornalístico. Ensaiei ali formas de expressão, estrutura, formas de comunicação, linguagens, conhecimento da realidade. Amadureci muito como escritor fazendo jornalismo.

Que relação faz da ficção com a verdade, neste livro?
A relação da ficção com a verdade é uma relação muito especial. O historiador tem de trabalhar com documentos e tem que ser o mais fiel possível a uma realidade que ocorreu. Ainda que sempre medeiem os interesses pessoais, ideológicos, de classe – tem um compromisso ético com a verdade. O compromisso do escritor é com a verosimilhança: que o que conta seja credível. O romance tem um código que é muito bondoso e muito claro, desde o princípio: “vou contar-te uma mentira como se fosse verdade e tu vais ler essa mentira como se acreditasses que é verdade”. Desde o princípio, as regras do jogo estão claras. Por isso, quando trabalho por exemplo com conteúdos históricos, faço investigações, procuro informação, fixo, anoto, procuro mais informação, enfim, tenho uma conhecimento o mais profundo possível de um contexto, de uma personagem, de uma época, de um processo. Mas, quando faço isso para um romance, começo a manipulá-lo literariamente. Porque não vou escrever um livro de História. O historiador fala de um processo e eu falo de umas personagens que estão a viver esse processo. É um olhar interior da realidade. Passa-se o mesmo não só com a realidade histórica como com a realidade contemporânea. Aí, a ficção beneficia-te no sentido em que te concede uma grande liberdade. O romance é o reino da liberdade. Toda a criatividade é possível, se bem que tanto na realidade histórica como contemporânea deves ter uma certa postura ética, um comportamento ético para com essa verdade.

Honestidade?
Sim, uma certa honestidade. Digo sempre que, para escrever um romance, uma reportagem, o que for, criticando o governo cubano, não preciso de dizer mentiras, porque a verdade é suficiente. Se digo mentiras, estou a pôr em jogo a tua credibilidade. Digo sempre que a verdade é relativa, mas a mentira é absoluta. Posso ver uma realidade de uma perspetiva diferente e ambas serem verdadeiras, porque interferem nelas determinados conceitos que cada um possa ter. Mas, quando é mentira, é mentira.

La Habana - Cuba

"Acho que o grande problema de Cuba é a sua má relação histórica com os Estados Unidos. Temos uma experiência muito trágica dessa relação"

NurPhoto via Getty Images

E há também a autoficção. Colocou algo de si em alguma personagem em especial?
Não creio que no meu caso se possa falar de autoficção. A minha vida é tão pouco interessante do ponto de vista dos acontecimentos que ocorreram comigo que não é ficcionável. Fiz a maior parte do meu exercício vital a escrever. O que faço é que nestas personagens vou explorando histórias que me chegam de partes diversas. E que, de alguma maneira, tiveram alguma relação comigo: por via do conhecimento, por via da época, por via sentimental. O romancista não pode viver a vida de todas as suas personagens, mas pode aprender e refletir sobre elas a partir das suas próprias experiências – e sobretudo através do conhecimento destas histórias que vai armazenando. O novelista também é um armazém de memórias. De repente tira algo e utiliza-o para determinada personagem. Isto não quer dizer que tenha a mesma relação com cada personagem. A minha relação com Trótski ou com Ramón Mercader, de O Homem que Gostava de Cães, não é a mesma que tenho com a personagem de Mario Conde. Mario Conde é um homem da minha geração, viveu num bairro como o meu, tem gostos parecidos com os meus, tem a mesma idade, tem a mesma relação com os cães, faz as mesmas leituras. Com Conde há toda uma comunicação geográfica que cultivei e acentuei de romance em romance, sem chegar a ser um processo de autoficção. Conde é uma personagem criada e eu sou uma pessoa, real.

As mulheres em Como Poeira ao Vento têm um destaque especial – Elisa, Adela e Clara –, são motores da história. Concorda?
Há três personagens muito importantes, que são possivelmente as três protagonistas do romance, que são três mulheres. Duas mulheres da minha geração e uma mais jovem. Essa mulher mais jovem é uma cubana-americana nascida em Nova Iorque, com uma experiência de vida que eu não tive. No meu caso, trato de refletir sobre a maneira de pensar de gerações mais novas ou mais velhas que a minha de forma muito cuidadosa. Porque sei que os conceitos mudam muito. Por exemplo, uma coisa típica: na geração dos meus pais, a virgindade era um tabu; na minha geração, começámos a levantar esse tabu; na geração seguinte, nem sequer pensam que existe um tabu. E isso estende-se a tudo. Tu mexes nesse telefone de forma distinta de mim. Quando tinhas 10 anos, já tinhas um telefone na mão. Eu tive um telefone na mão quando tinha 45, 50 anos. Em muitas coisas temos maneiras diferentes de pensar. E, se dou um telefone à minha mãe ou à minha sogra, tenho de ir comprá-lo a um daqueles lugares incríveis que ainda vendem aparelhos com teclas. Se lhes dou um de ecrã táctil, ficam loucas. Estas três personagens, ainda por cima mulheres, traziam-me uma grande complicação. E, sim, são como dizes: são os motores da história. No princípio do romance, Adela descobre uma foto que nos leva ao passado e, a partir daí, começa a desenvolver-se toda a história. Um passado em que há um grupo de personagens e dois focos fundamentais: um que trata de colocar coerência às coisas, a Clara, e um que se vê descentrado na sua vida por causa de algo que ocorreu, a Elisa. A gravidez de Elisa é o que faz com que saia de Cuba e tudo isto se complica com a morte, um pouco obscura, de alguém próximo do grupo, que se chama Walter. Estas três mulheres são movidas por esse vento que sopra ao longo de todo o livro. Para mim, foi muito gratificante o momento em que me dei conta de que estas personagens estavam vivas. E dei-me conta de que estavam vivas quando estava a acabar o romance e descobri que, entre Clara e Elisa, havia mais coisas do que eu achava. Não vou dizer o quê, os leitores terão de descobrir.

"Cada exilado é uma história. Acontece com bastante frequência os cubanos quando vêm viver para a Europa procurarem a integração e adotarem os costumes dessas sociedades. Apesar de continuarem a manter uma cultura, uma essência, que os relaciona com Cuba. Porque é muito difícil que, a determinada idade, mudem por completo todos os seus hábitos, a sua maneira de pensar. Mas adaptam-se a esse novo lugar."

A morte, no caso a de Walter, deve-se a questões dramáticas ou é também metafórica?
Creio que a morte de Walter é dramática e é simbólica. É dramática porque cria uma tensão argumentativa para que esta história avance e ocorram determinados acontecimentos. Por exemplo, toda a reação que, a partir da morte de Walter, houve em Irving, que o leva inclusive ao exílio. Mas a morte de Walter é também como o fim de um tipo de personagens que existiu num dado momento em Cuba e que depois não podia existir. Talvez fosse mais fácil colocá-lo num avião e tirá-lo de Cuba, mas a verdade é que a morte é o mais dramático que há na vida. Passam-se muitas coisas dramáticas: o medo é dramático, a dor é dramática, mas a morte é irreversível. Daí esta morte, um pouco obscura, inclusive no final do romance continua a ser obscura. O que a torna ainda mais dramática.

O tabu em relação à homossexualidade, inclusive a repressão, ainda existe?
Esse foi um programa dos anos 60 e 70. A partir dos anos 80, houve menos agressividade para com os homossexuais. O problema da homossexualidade em Cuba é que existe uma conceção histórica, cultural, filosófica, no pensamento cubano que vem do catolicismo, do preconceito em relação à homossexualidade, que se mistura demasiado com o machismo latino. A homossexualidade foi por isso sempre reprimida, marginalizada, condenada. Além disso, quando é dotada de uma carga política, complica-se muito mais. Houve alturas em que os homossexuais foram recolhidos em campos especiais, para a sua reeducação. Esse preconceito e essa política de que o Homem Novo tinha de ser íntegro, o Homem Novo não podia ser homossexual. A sociedade cubana socialista aspirava a criar esse Homem Novo. Isto manteve-se até aos anos 70. A partir daí, começou a haver uma mudança e, nos anos 90, houve uma mudança total. Houve um filme que foi como uma campainha que soou, Morango e Chocolate [de 1994], em que se falava da tolerância no que diz respeito aos homossexuais. Nos últimos anos, não há nenhum problema. Está inclusive a falar-se de um código da família em que se aprove o matrimónio em que duas pessoas do mesmo sexo se possam casar, ter filhos, como em outros países onde já se aprovou estas medidas. Isto retirou uma carga dramática ao tema da homossexualidade, ainda que continue a haver preconceito a nível cultural, filosófico, religioso, como em muitas partes do mundo.

O machismo pode ser a causa para uma relação entre as mulheres bastante competitiva, como é o caso de mãe e filha, Elisa e Adela?
Esse é um fenómeno cultural.

Latino?
Que se manifesta muito no mundo latino e em especial no mundo cubano.

Entrevista ao Observador ao escritor Leonardo Padura. Natural de Cuba, já trabalhou como guionista, jornalista e crítico, mas ficou conhecido pelos seus romances policiais. 4 de Maio de 2022 Alcântara, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Toda a gente me conhece, e nem toda a gente me conhece como escritor, mas como filho do meu pai, da minha mãe. Isso dá-me uma relação com o ambiente muito profunda, muito integral"

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Relacionado com o machismo ou não?
Não. Uma das pessoas que me ajudou muito nas investigações que tive de fazer para este romance é cubana, que saiu de Cuba ainda criança e trabalhou em universidades e queria que me explicasse como funciona o mundo académico norte-americano: coisas como “bachelor”, se isso é equivalente a um licenciado, por exemplo. Além disso, leu o manuscrito do romance. Ela disse-me: “a relação entre Elisa e Adela é a relação que eu tenho com a minha filha e é muito típica das mães cubanas com as filhas cubanas”. É uma relação de uma certa tensão, é um amor tenso. Não sei se é um fenómeno de carácter psicológico ou cultural, mas a verdade é que parece ser bastante frequente esse tipo de relação.

Quanto à diáspora, pode dizer-se que cubanos que vão para a América, para Hialeah, em Miami, mantêm-se cubanos e cubanos que vão para a Europa europeízam-se?
Cada exilado é uma história. Acontece com bastante frequência os cubanos quando vêm viver para a Europa procurarem a integração e adotarem os costumes dessas sociedades. Apesar de continuarem a manter uma cultura, uma essência, que os relaciona com Cuba. Porque é muito difícil que, a determinada idade, mudem por completo todos os seus hábitos, a sua maneira de pensar. Mas adaptam-se a esse novo lugar. Há outros tipos de emigrantes, que são muito visíveis nessa cidade do sul da Florida que se chamada Hialeah, e que vivem num gueto. Esse não é um fenómeno exclusivamente cubano. Esse é um fenómeno português em Nova Inglaterra, de portugueses pescadores que vivem numa vila onde há restaurantes portugueses, lojas portuguesas; há os bairros chineses; Vito Corleone [da saga “O Padrinho”] vivia em Little Italy [em Nova Iorque]. É muito próprio dos imigrantes criarem um gueto em que comunicam com os mesmos códigos do país de origem. Isso é muito visível em Hialeah, em que há uma grande quantidade de cubanos que reproduziram os seus modelos de vida em Cuba, falam cubano, comem cubano, jogam dominó em cubano, gritam em cubano, praticam a religião afro-cubana – mais que em Cuba. É um mecanismo de defesa e é também uma forma de preservar uma cultura, porque – e isto que te vou dizer é científico – há lugares no mundo que preservam valores, expressões, condutas, costumes, já desapareceram do ponto de onde partiram. Nessa sociedade de Hialeah, é possível que o que as pessoas fazem, dizem, comem, já não façam, digam, comam, em Cuba. Estão presas a uma recordação, mais do que a uma realidade.

A paixão por basebol não pôde ficar de fora.
A paixão por basebol é parte da cultura cubana. É como os portugueses ou os espanhóis serem fanáticos por futebol. Nós somos fanáticos por basebol. É o nosso desporto nacional, é um símbolo de identidade. Chegou dos Estados Unidos, muito rapidamente foi adotado em Cuba, cubanizou-se. Aconteceu inclusive uma coisa curiosa: o basebol veio dos Estados Unidos para Cuba e foi de Cuba que foi para o México, Venezuela, República Dominicana, Porto Rico. Estendeu-se pelo Caribe a partir de Cuba.

"Não é necessário disparar bombas para conquistar um país. Portugal soube-o, quando a troika esteve aqui. Portugal, Espanha, Grécia, Itália, sentiram como havia uma dependência terrível de determinadas potências que lhes diziam “isto agora não podes”, “podes fazer uma estrada”, “não podes fazer uma estrada”. Creio que esse poder é muito mais eficaz, domina as pessoas sem ter de colocar um canhão no seu peito. Penso que a China vai ter muito êxito. Está a conquistar África sem disparar e vai continuar a expandir-se, de forma lenta, asiática. Tem esta forma de pensar oriental de que o tempo está a favor deles. E vão alcançar as coisas."

A canção preferida de Marcos, “Siempre Happy”, poderia definir o espírito cubano?
Essa é uma canção de um grupo de músicos cubanos que, durante um tempo, viveram em Espanha. Alguns ainda estão em Espanha, alguns foram para os Estados Unidos, outros regressaram a Cuba. Fizeram um projeto que se chamava Habana Abierta, porque entravam uns e saíam outros. Fizeram um disco, creio que foi em 2006, que se chamava Boomerang. É um disco maravilhoso. E neste disco está esta canção, que diz “se todo o mundo fosse feliz”. É um desejo de que todo a gente seja feliz, de que todas as pessoas vivam bem. É um canto entre a esperança e a desesperança de saber que isso não é possível. A oração tem o condicional “se”. E, sim, é uma das mensagens do romance. É também uma filosofia muito próxima da personagem de Marcos, que é um pragmático e vê a parte boa de todas as coisas – vai sempre, sempre em frente. E assim vai fazendo a vida. Marcos é engenheiro, nunca trabalhou como engenheiro, mas esse conhecimento rapidamente lhe permite ter uma ascensão laboral quando chega a Hialeah e dá-lhe umas luzes para poder entender o mundo.

Ser desenrascado é um retrato do que é ser cubano?
Claro. As estratégias de sobrevivência que as pessoas tiveram de praticar obrigaram-nas a tudo. Houve uma altura, nos anos 90, em que a minha mulher, Lucía, trabalhava numa produtora de cinema e começou a fazer um curso de cabeleireira. Para cortar cabelos e ganharmos a vida. Eu fiz mil coisas. Houve médicos a trabalhar como taxistas, eu fui carregador de malas em hotéis, houve cientistas que montaram um restaurante em casa. Quando a situação se torna difícil, há que inventar. Como dizia um velho cartaz que víamos em Cuba nos anos 60: a necessidade é a mãe da invenção.

Nasceu e vive até hoje na mesma casa.
Continuo a viver na mesma casa. A minha mãe ainda lá vive. Foi construída em 1954. É o meu território. Essa casa está num bairro onde nasceu o meu pai, nasceu o meu avô, nasceu o meu bisavô. É o meu “caracol”. Toda a gente me conhece, e nem toda a gente me conhece como escritor, mas como filho do meu pai, da minha mãe. Isso dá-me uma relação com o ambiente muito profunda, muito integral, e permite-me entender as esperanças, as desesperanças, as relações, os sonhos, das pessoas de forma muito fácil.

Cuba viveu sempre com o peso e a sombra dos Estados Unidos ali ao lado. O facto de os Estados Unidos serem hoje uma potência mundial cessante, a dar lugar a uma nova, a China, está a mudar de algum modo a vida dos cubanos?
Acho que o grande problema de Cuba é a sua má relação histórica com os Estados Unidos. Temos uma experiência muito trágica dessa relação, porque intervieram na guerra da Independência, mediaram a independência cubana. Imagine uma Constituição que se aprova em Cuba em 1902, quando nasce a república, em que há uma cláusula que dá direito aos Estados Unidos de intervirem em Cuba sempre que queiram? Fizeram-no em 1906. Foi sempre uma relação problemática porque foi o país mais poderoso do mundo e nós estávamos demasiado próximos dele. Foi também o lugar para onde foram os cubanos que politicamente se converteram em inimigos do governo cubano e fizeram a partir de lá um lobby que tem força política dentro dos Estados Unidos e afeta muito a política de Cuba contra os Estados Unidos. Por outro lado, a China é uma potência muito mais pragmática. É uma potência do século XXI e, por isso, isto que está a acontecer na Ucrânia parece-me muito pouco permissível, do ponto de vista de uma perspetiva histórica de há três, quatro anos. Penso que, neste momento, o poder é um poder que se desenvolve e se concretiza através dos mercados. Não é necessário disparar bombas para conquistar um país. Portugal soube-o, quando a troika esteve aqui. Portugal, Espanha, Grécia, Itália, sentiram como havia uma dependência terrível de determinadas potências que lhes diziam “isto agora não podes”, “podes fazer uma estrada”, “não podes fazer uma estrada”. Creio que esse poder é muito mais eficaz, domina as pessoas sem ter de colocar um canhão no seu peito. Penso que a China vai ter muito êxito. Está a conquistar África sem disparar e vai continuar a expandir-se, de forma lenta, asiática. Tem esta forma de pensar oriental de que o tempo está a favor deles. E vão alcançar as coisas.

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