Lewis era um miúdo empertigado de nove anos, que desfilava um smoking emprestado e vestia um sorriso confiante. Preparava-se para receber um prémio num evento promovido pela revista Autosport — afinal, acabava de ganhar o campeonato britânico de kart. Mas os olhos do pequeno Hamilton não se arregalavam em direção ao palco. Longe disso. Naquele dia, a sua missão era outra.
Entre a audiência estava Ron Dennis, o então homem forte da McLaren. Era a oportunidade de uma vida. Lewis avançou na sua direção, com um livro de autógrafos numa mão e uma tremenda lata na outra:
— Olá, eu sou o Lewis Hamilton. Ganhei o campeonato britânico e um dia quero correr nos seus carros — disse-lhe.
Do lado de lá, Dennis parece ter achado piada à ousadia. Além do autógrafo, devolveu-lhe:
— Liga-me daqui a nove anos, arranjaremos qualquer coisa nessa altura.
Não foram nove anos — foram três. E não foi Lewis que ligou a Dennis — foi o contrário. Queria oferecer-lhe um lugar no programa de desenvolvimento de jovens pilotos da construtora — fazendo de Hamilton o piloto mais jovem de sempre a ser contratado por uma equipa de Fórmula 1. Naquele dia de 1995, Ron viu-lhe a centelha do talento — como viria a confessar, mais tarde, em entrevista ao The Telegraph. “Ele já tinha tido sucesso nos karts, por isso sabia que tinha talento, mas foi mais do que isso; vi algo nos seus olhos. É como conhecer um parceiro para a vida. Conheces essa pessoa e sabes que é aquilo. Há algo na linguagem corporal, no contacto visual, na presença. Apenas se sabe. E soube-o com o Lewis”.
A partir daí, foram dez anos de trabalho meticuloso. “Disse-lhe que a única regra era que ele fizesse o que dizia, que nós íamos estar sempre a olhar para os interesses dele”, conta ainda Ron Dennis. “Ele disse ‘OK’ e eu disse-lhe que não podia deixar a escola”.
Dennis acreditava que, antes de queimar pneus nas pistas de Formula 1, Lewis tinha de conhecer tudo sobre carros — desde a forma como os travões funcionavam à maneira de conservar os pneus e poupar o combustível. Por isso dotou-o de um conhecimento alargado sobre o seu instrumento de trabalho. Mais do que isso, trabalhou de perto com ele, tornou-se, como chegou a dizer nessa mesma entrevista, um “pai emprestado”.
Quando o patrão da McLaren resolveu apostar tudo num jovem desconhecido, muita foi a surpresa entre os amantes da modalidade. Mas os olhares de espanto chegaram, verdadeiramente, quando o tal desconhecido agarrou os comandos do carro. Logo na temporada de estreia na Formula 1, em 2007, desatou a bater recordes e fez sombra ao então companheiro de equipa e bicampeão mundial, Fernando Alonso. O título escapou-lhe entre os dedos e fugiu para Kimi Raikkonen, por apenas um ponto.
Mas o ano seguinte, 2008, viria a confirmar aquilo que Ron Dennis tinha percebido no olhar de Hamilton. O piloto britânico haveria de se sagrar campeão do mundo — sendo, na altura, o mais jovem da história a tê-lo feito, com 23 anos (Vettel haveria de quebrar este recorde mais tarde) — com uma ultrapassagem na última curva da última volta.
Felipe Massa, o grande favorito à vitória final, jogava em casa — que é como quem diz no circuito de Interlagos. Nessa tal última curva da última volta, bastava ao brasileiro que Hamilton terminasse em sexto lugar. E lá estava ele, depois de ter sido ultrapassado pelo alemão Sebastian Vettel. Mas tudo mudou num ápice. De uma só vez, Vettel e Hamilton, ultrapassaram Timo Glock, que não tinha parado nas boxes para colocar pneus de pista molhada, e que, por isso, não tinha conseguido acompanhar a pedalada dos rivais. E assim o britânico subiu, pela primeira vez, ao lugar mais alto do pódio.
Passaram dez anos sobre essa primeira conquista. E dez anos depois, Hamilton voltou a fazer história ao tornar-se pentacampeão de Fórmula 1 — o que o faz pisar um terreno quase imaculado apenas pisado por outros dois pilotos. Com este campeonato, Hamilton igualou o histórico piloto argentino Juan Manuel Fangio (que foi ‘penta’ em 1957). Acima dele só Schumacher, que tem sete títulos mundiais — e que, curiosamente, conquistou o quinto campeonato com os mesmos 33 anos de Hamilton.
E nem podemos dizer que isto estivesse propriamente escrito nas estrelas.
A infância pobre e o ‘outsider’ nas corridas
Hamilton começou no mundo dos carros quase como um outsider. Se no futebol são muitas as histórias de meninos pobres que começam a jogar na rua e chegam ao topo do mundo — veja-se o caso de Ronaldo –, o mesmo não acontece no universo elitista do automobilismo. O mundo dos carros não se presta a contos de fadas. Ou não prestava.
Lewis Carl Hamilton — que foi buscar o nome a Carl Lewis, atleta norte-americano que venceu dez medalhas olímpicas –, cresceu em Stevenage, um pequeno município a norte de Londres. O pai, Anthony, é filho de emigrantes vindos de Granada, nos anos 50, e conheceu a então mulher, Carmen Larbalestier, quando os dois trabalhavam numa empresa de comboios. Não havia cá luxos — bem pelo contrário.
O casamento não durou muito. Os dois separaram-se quando Lewis tinha apenas dois anos. Até aos 12, viveu com a mãe e duas meias-irmãs num casa geminada em Stevenage. Mas sempre com o pai muito próximo. Anthony tinha uma fé inabalável nas capacidades do filho e nunca se poupou a esforços para lhe concretizar o sonho. Chegou a acumular quatro empregos para financiar as aventuras de quatro rodas de Lewis — fazia um pouco de tudo, desde reparar computadores a trabalhar na distribuição de bebidas.
E tudo começou, precisamente, com o pai. Lewis tinha seis anos quando Anthony lhe deu o primeiro carro telecomandado. E logo aqui se revelou um fora de série — a prova de que os carros sempre foram o seu terreno, mesmo que fossem de brincar. Foi vice-campeão da Associação Britânica de Radiomodelismo e conquistou três emblemas dourados no programa infantil de BBC Blue Peter — que distingue, há mais de 50 anos, crianças que são uma inspiração pelos seus talentos. Hamilton chegou mesmo a vencer uma corrida contra o apresentador do programa — e este vídeo mostra a forma triunfante como levantou o seu pequeno braço direito para celebrar.
Foi um pulo até largar os comandos e passar para as pistas. No início, eram as dos karts. O primeiro foi-lhe oferecido também pelo pai, no natal. Era um carro em quinta mão mas que foi suficiente para mostrar o prodígio que Lewis já era em cima das quatro rodas. E também para lhe acender a vontade de chegar mais longe. “Lembro-me do meu primeiro dia num kart”, contou em entrevista à Time, em 2016. “De sentir aquele vrrrrrrrrrrrrm“.
Foi esse vrrrrrrrrrrrrm que o fez continuar, apesar das dificuldades, apesar dos olhares de lado — e das palavras de desincentivo dos pais das outras crianças. Enquanto corriam os vários circuitos britânicos, Lewis e Anthony não passavam despercebidos. “Chegávamos, com o kart enfiado na bagageira do carro, enquanto os outros tinham todos tendas e caravanas. Éramos tão amadores”, recordou, em 2016, à revista Complex . “Todos olhavam para nós, todos os olhos estavam em cima de nós, como se perguntassem: ‘O que é que eles estão a fazer aqui?’. Éramos a única família negra. E era assim todos os fins-de-semana”.
Era a outra face do sonho, ter de lidar com comentários racistas de um mundo dominado por pilotos brancos. “Havia pais de outras crianças que me diziam: ‘Não és bom o suficiente, devias desistir’. E eu pensava: ‘Mas acabei de ganhar ao teu filho. De que é que estás a falar?'”, recordou ainda à Time.
Foi também o racismo que diz ter sentido que o fez praticar karaté. Aos seis anos, pediu aos pais para aprender a arte marcial, como forma de se defender do bullying que sofria na escola. Podia ter sido só mediano; mas chegou a cinturão negro.
Os comentários depreciativos engrossaram-lhe a pele e fizeram-no resistir a todas as barreiras. Mais do que isso, incendiaram-lhe a vontade de ser melhor. “São como marcas de guerra, que nos fazem mais fortes”, disse ainda na mesma entrevista à Complex. “O meu pai sempre me disse: ‘Responde na pista’. E sempre foi isso que fiz, desde o primeiro dia. ‘Deixa os resultados falarem mais alto do que qualquer coisa que tenhas para dizer’. Mas tive miúdos a gritar coisas, professores que me disseram: ‘Nunca vais ser um piloto de carros’, ‘Nunca vais servir para nada'”.
Enquanto a história tratava de provar o contrário, Lewis ia fazendo o seu papel — e varria tudo o que eram títulos de kart em terras britânicas. Quando já não havia mais nada para ganhar em casa, fê-lo fora de portas e tornou-se campeão europeu, em 2000. Sempre com o pai pelo braço, o pai que era pai mas que também era manager, conselheiro, investidor, tudo. Por isso, aos 12 anos, quando a mãe se mudou para Londres, Hamilton optou por ficar em Stevenage e foi morar com o pai, a madrasta Linda e o meio-irmão Nicholas num apartamento de apenas um quarto — Lewis dormia na sala, num sofá-cama.
O jovem piloto passou a frequentar a escola católica John Henry Newman — daí lhe vem a cruz que usa ao pescoço em todas as corridas. Foi colega de turma de Ashley Young, jogador do Manchester United, que recorda ao The Telegraph que o amigo podia bem ter-se tornado futebolista. “Ele jogava como médio centro. Não estava muito longe de mim, mas eu era melhor jogador, por isso é que hoje é piloto”, diz. Numa coisa, os dois eram iguais. “Dissemos ambos que queríamos estar ao mais alto nível. Ele está a sair-se bem e eu também, estou feliz com isso”, concluiu.
Aos karts seguiu-se a passagem para os monolugares de Fórmula Renault Series, vencendo o campeonato em 2003. Dois anos depois, conquistaria a Fórmula 3 Euroseries, antes de novo título na GP2 Series, em 2006. No ano seguinte, conseguiu a tão ambicionada estreia na Fórmula 1.
Anthony acreditou sempre no talento do filho e acompanhou-o em todas as etapas do processo que o levou até onde está hoje. Mas também lhe exigiu, em troca, dedicação e disciplina. Foi por isso que, entre corridas, treinos, aulas e ginásio, Lewis ainda teve de encaixar uma série de pequenos trabalhos. Serviu às mesas num pub e lavou carros numa oficina da Mercedes — como forma de retribuir o carro de apoio e o transporte para as corridas que a marca lhe concedeu. O antigo patrão, James Costin, chegou a confessar ao The Telegraph que “Lewis tinha uma paixão verdadeira por limpar carros, fazendo-o tão meticulosamente que chegava a deixar o departamento de limpezas envergonhado”.
A rutura com o pai e com a McLaren
Hamilton tinha conseguido chegar à competição-rainha do desporto automóvel e até se tinha sentado no seu trono maior, com o campeonato mundial ganho em 2008. Mas depois as coisas começaram a dar para o torto. Nos anos seguintes, o carro não era tão competitivo e os resultados acompanharam essa quebra: o piloto foi quinto classificado em 2009 e 2011 e quarto em 2010 e 2012. Ao mesmo tempo, Vettel dava cartas — com os quatro campeonatos conquistados entre 2010 e 2013.
Tornava-se claro que a McLaren não tinha condições para lutar pelo título e a rutura tornou-se inevitável em 2013 — quando Hamulton passou para a asa da Mercedes. A escolha não podia ter sido mais acertada, com o britânico a conquistar os campeonatos de 2014, 2015 e 2017.
Foi precisamente em 2017 que se deu um momento-chave na carreira do britânico: o momento em que superou o ídolo da vida toda, Ayrton Senna. Não só ultrapassou o ‘mágico’ em número de campeonatos ganhos (três), como também ultrapassou as 65 ‘poles’ do brasileiro, no Grande Prémio do Canadá. Como reconhecimento, a família de Senna ofereceu um capacete do piloto ao britânico — que ficou sem palavras.
Por essa altura, também já tinha acontecido outra rutura importante na carreira do piloto. Em 2010, despediu o pai, que era seu gestor de carreira, após alguns desentendimentos. “Foi um momento importante e ainda é a coisa mais difícil por que alguma vez passei”, recordou à Time. “Crescer tão perto de alguém, vê-lo mover o céu a terra por mim todos os dias e, um dia, dizer-lhe: ‘Já não quero que faças parte disto”. Na mesma entrevista, referiu que a relação com o pai é um “work in progress” (trabalho em desenvolvimento, numa tradução livre).
O piloto pop-star que é uma máquina de fazer dinheiro
Quando se fala de Hamilton, há, claramente, um antes e um depois. Ou, se quisermos, duas posturas antagónicas: o Hamilton dos primeiros tempos, recatado, com a mesma namorada desde os tempos da escola, com o corpo despido de tatuagens, de brincos, de colares, de roupas caras; e o Hamilton que alterna entre desfiles de moda e eventos com celebridades, que não dispensa roupas de marca e jóias nas orelhas, que ora tem o cabelo esticado, ora entrançado, ora louro, que alterna entre namoradas e acumula ‘likes’ nas redes sociais — e não apenas por parte dos fãs da Fórmula 1, mas também dos que não se sentam 90 minutos à frente da televisão para ver uma corrida de carros.
Em suma, temos um Hamilton versão pop-star. Que leva uma vida de luxo e que faz questão de o mostrar, que se rende às semanas de moda, às festas exuberantes dos famosos, aos contratos milionários com as marcas que o querem patrocinar, que publica fotografias com mulheres que alimentam rios de tinta da imprensa dos mexericos (a última foi com Nicki Minaj, no Dubai). Um Hamilton que atrai dinheiro, muito dinheiro — como é facilmente comprovável pela renovação de contrato de dois anos com a Mercedes, que faz do piloto britânico o mais bem pago de sempre na história da modalidade.
Mas, mais do que isso, Hamilton atrai público (e um público diferente, mais jovem) para a modalidade. Como disse Christian Horner, responsável pela equipa rival da Red Bull, “ele é um embaixador da Fórmula 1 e leva-a para lugares onde, normalmente, ela não seria vista, particularmente nos Estados Unidos”.
O piloto vai surfando a onda que ele próprio fez nascer. Trocado por miúdos, vai aproveitando a fama e criando as bases para um futuro para além da Fórmula 1. Mas tudo com muito secretismo, entre portas fechadas e bocas caladas. Acabou de lançar a sua primeira coleção de roupa, está em negociação com a Tommy Hilfiger, uma das muitas marcas que têm o nome do britânico associado, e fala-se até de uma música criada em parceria com Christina Aguilera. Pois é, a música é uma das principais paixões do piloto, que até tem um estúdio numa das suas casas em Inglaterra, onde canta, toca piano e guitarra elétrica.
“Estou definitivamente a plantar sementes em outras áreas para ver como elas crescem”, reconheceu recentemente o piloto, à ESPN. “Às vezes começamos uma coisa e depois desistimos porque já não gostamos daquilo, mas vamos ver por quanto tempo essas diferentes sementes que eu plantei vão crescer. Estou definitivamente a tentar construir um império”.
Mas tudo sem tirar os pés do chão — e, sobretudo, as mãos do volante. “Primeiro que tudo, sou piloto de corridas, mas estou a tentar tornar-me um empreendedor e ser bem-sucedido nos negócios. Quero fazê-lo à minha maneira — não sinto que seja, propriamente, um homem de negócios feroz. A minha visão é que relações positivas vão corresponder a respeito, confiança e longevidade. Gosto de pensar que eu sou bom a escolher os negócios em que entro”, referiu ainda.
Apesar de todo o aparato mediático, Hamilton garante que a fama e a fortuna não lhe alteraram o essencial. “Eu conheço o meu coração. Eu sei o quanto eu trabalho. Eu sei os meus valores. Eu sei o meu amor pela minha família. Eu sei quem sou como pessoa”, disse à revista Complex.
Aos 33 anos, Hamilton ainda se sente o miúdo empertigado que, aos nove anos, procurou Ron Dennis para tentar desbravar um futuro nas pistas. O miúdo que queria ser uma de duas coisas: ou Ayrton Senna ou o Super-Homem. Hoje, é rápido como um e poderoso como o outro. E promete não ficar por aqui.