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João Artur da Silva numa imagem de 2005

João Artur da Silva numa imagem de 2005

Lisboa, Londres, Vancouver: o reencontro extraordinário com o surrealista João Artur da Silva. "Deixo-me levar horas sem parar pela pintura"

Com a morte de Cruzeiro Seixas, o país achou que se despedia do último elemento do antigrupo d’Os Surrealistas. Mas um email de Vancouver trouxe a história de João Artur da Silva, ativo aos 95 anos.

Não é que os níveis de surrealismo se equiparem a performances míticas no jardim das Belas Artes, algumas delas envolvendo um gato preto atirado para cima de uma mesa. Mas quando se abre esta caixa de Pandora, as descobertas fluem sem grande freio. Parece que sobra sempre uma ponta solta da conversa quando saímos da Casa da Liberdade/Perve Galeria, que por si só parece uma improbabilidade – basta pensar num enclave de obras de Mário Cesariny (incluindo a sua outrora porta de casa) e Cruzeiro Seixas entre o boom turístico de Alfama – ou talvez tudo faça ainda mais sentido. Resta-nos imaginar como esse antigrupo que “explodiu para dentro” pintaria a cidade e o mundo, 75 anos depois da primeira exposição de trabalhos com vista para a Sé de Lisboa. O catálogo saído desse momento de 1949 enumera vários nomes. Apelidos para a posteridade, que vigoram na memória até hoje, outros desenterrados ainda vivos com o auxílio das — pasme-se — velhas páginas amarelas e outros que o tempo, com a sua aritmética implacável, julgou defuntos.

Em 2020, os obituários prestavam a justiça possível ao “Rei Artur” de Cruzeiro Seixas, cuja morte, aos 99 anos, dava por extinta sem descendência essa dinastia inquieta. Partia “o último dos surrealistas”, sentenciavam os títulos. Mas depois, como quem saca outro gato preto da cartola, a história trazia capítulos de eriçar o pelo de curiosidade. No ano seguinte, o curador Carlos Cabral Nunes recebe um email. A partir do Canadá, um casal de colecionadores é o portador da boa nova. João Artur da Silva. Ele mesmo. O último nome escrito nesse catálogo, agora exposto numa das paredes da Perve. Vivo, bem vivo. Lúcido aos 95, ativo até hoje na produção plástica, e empenhado no destino que a sua obra terá no futuro.

"Há duas semanas que as minhas costas me estão a matar. Nos últimos dois dias tive mesmo que deixar de pintar. Consigo desenhar, mas não pintar. Porque quando pinto faço-o horizontalmente e depois tenho que levantar a tela, pesada, e depois pinto de novo e volto a deita-la. Portanto levanto e deito a tela centenas de vezes por dia, sofro das costas desde os meus 30. Agora tenho 95".
João Artur da Silva

Esta é a surreal história de uma redescoberta. E de uma chamada em vídeo não menos lendária, entre Lisboa e o Canadá. O resultado só podia ser um cadáver esquisito.

Carlos, falávamos dessa primeira exposição dos surrealistas, há 75 anos, aqui a curta distância da Perve, onde nos encontramos.
Sim, ao lado da Sé, no outro passeio tem a Casa Regional de Arcos de Valdevez. E essa Casa Regional, que era um primeiro andar, nos anos 40 era uma sala de cinema.

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A famosa Pathé Baby.
Chamava-se assim porque as máquinas mais avançadas na altura, acho eu, eram as da Pathé Baby. E, portanto, os surrealistas fizeram nessa sala a exposição de 1949, que durou cerca de três semanas. E nós, quando passaram 60 anos sobre essa exposição, conseguimos fazer lá, um dos polos dessa exposição, porque o Cruzeiro Seixas ainda era vivo e esteve connosco. E naquela primeira sala, esta sala de passagem, de transição, tem ali alguns panfletos dessa exposição inaugural.

Um panfleto que é decisivo para a história que aqui nos traz.
Na altura fizeram uma espécie de desdobrável sobre essa exposição, com os nomes deles, e depois tinha uma página em branco, que dizia só “poema”. Que era para eles, durante a exposição, poderem fazer poemas, ou pinturas, ou desenhos, ou cadavre exquis, portanto, trabalhos colaborativos. E aqui nós temos alguns deles, um do António Maria Lisboa, uns do Pedro Oom, etc. E depois, tem do próprio João Artur da Silva, que foi uma descoberta.

Pelos anos 60 © Acervo Perve Galeria

Como é que se dá essa descoberta?
Quando o Cruzeiro Seixas morreu, em novembro de 2020, nós próprios pensávamos que com ele morriam todos os membros do grupo. Mas, de facto, há esse nome, o João Artur da Silva, que fez parte da exposição, está no programa, etc. Aliás, aqui, naqueles papéis, dá para ver. E, de repente, nós fomos contactados, penso que em 2021 ou 2022, por uns colecionadores canadianos, que são amigos do João, e que estavam preocupados com ele. Somos contactados pelo Merlin e a Leslie Ross, que nos dizem que talvez nós não soubéssemos, mas que esta artista estava vivo, e vivia em Vancouver, no Canadá, e que, de facto, tinham muito interesse em ver connosco se tínhamos vontade de fazer algum trabalho com ele.

João Artur Cordeiro Da Silva nasceu a 5 de outubro de 1928, em Cascais, filho do empresário Alfredo Lopes Da Silva, e de Georgina Cordeiro, a primeira mulher escultora da Academia Artística de Lisboa. Aos 18 anos, em vez de ingressar no negócio do pai, começou a desenhar e pintar. "Nunca frequentei a escola de artes. Tinha feito uns esboços mas nunca fui muito bom, a minha irmã é que desenhava muito bem. Aos olhos do meu pai eu era bom para nada."

Mas não fazia de todo ideia que ele existia? Ou que estava vivo?
Eu sabia que ele existia, mas a história dele é muito curiosa. No fundo, a vida dele é repartida em três partes. Ele tem quase 96 anos, viveu 30 anos e pouco em Portugal, foi para Londres em meados dos anos 50, depois ainda esteve episodicamente em Portugal. Em Londres fez um trabalho muito relevante, porque nós temos até um livro de autógrafos da primeira exposição dele, onde aparecem [os escultores] Henry Moore, Lynn  Chadwick. Todas as grandes figuras da época, de alguma forma, em Londres, relacionaram-se com ele.

Em entrevista, o curador Carlos Cabral Nunes recorda o dia em que um email resgatou a vida e obra de um sobrevivente da exposição de há 75 anos, junto à Sé

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Chegou mesmo a criar uma marca em Londres, certo?
Sim, criou uma marca própria, a Da Silva, para a Harrods e para Liberties. Fazia uns lenços em seda, que ele mandava vir as sedas do Japão e depois imprimia artesanalmente. Eram edições exclusivas para essas duas casas. E depois fez fotografia, aliás, nós imprimimos, pela primeira vez, algumas das fotografias que ele fez, experimentais, nos anos 70, que só existiam em slide e que agora foram pós-produzidas e impressas. Chegou a vender para a Getty uma das fotos mais republicada, que rendeu centenas de milhar de libras. Teve muitas relações com o mercado que lhe permitiu ter uma qualidade de vida, e ainda a herança do pai.

Como é que se dá a transição para o Canadá?
No final dos anos 80, princípio dos anos 90, ele casou, pela quarta vez, com a Raymonde, que tinha nacionalidade inglesa, mas tinha origem também em França, e uma irmã a viver no Canadá. Eles vão visitar a irmã e é nessa altura que ela, farta de Inglaterra, decide que quer ficar ao pé da irmã e mudar-se para o Canadá. E o João, que já tinha 60 e tal anos, decide ir também, mas ia um pouco para se reformar.

"Eu deixo-me levar pela pintura. Quando estou bem, sem dores, eu deixo-me levar. Normalmente, começo às cinco, mais ou menos, e depois posso continuar e continuar, por 12 horas sem parar. Depois, as minhas costas habituam-se. Não é uma vontade consciente, creio, eu limito-me a fazer aquilo. É a minha forma natural de trabalhar. E quando estou a pintar não consigo fazer mais nada. É o mesmo de quando era novo. Não é a minha vontade, é a minha forma de ser."
João Artur da Silva

A ideia era deixar de produzir?
Percebeu que o Canadá, e sobretudo Vancouver, não tinha, provavelmente, um mercado de arte muito desenvolvido, e então foi um pouco para continuar a fazer o seu trabalho plástico, mas numa lógica de se retirar do mercado de arte. Só que a coisa correu muito bem, ele produziu um conjunto de obras, etc., muito interessantes, até que a mulher morre. Ele entra numa certa depressão, porque fica sozinho, entretanto também começou a ter problemas de saúde, ou seja, já não conseguia viver sozinho. Foi para uma residência sénior.

Onde se encontra agora?
Sim, é uma espécie de um apart-hotel mas assistido, com todos os serviços integrados. Ele mudou-se para lá, mas a verdade é que começou a ficar muito desanimado. E é nesse momento que os amigos falam com ele e lhe perguntam “então e se nós tentássemos organizar uma exposição?”, uma coisa do género, tem tantas obras aqui e tal. E ele diz “ah, isso poderia ser interessante”. E pronto. E é nesse seguimento que eles fazem uma pesquisa.

Depois da pandemia?
Sim, mais ou menos por essa altura. Fazem uma pesquisa e chegam à Casa da Liberdade, chegam até mim, chegam à galeria e enviam-me o tal e-mail.

Como é que recebe essa notícia?
Achei interessante. Achei interessante porque eu conhecia o nome, mas, de facto, o Cruzeiro de Seixas, o Cesariny e o próprio Fernando José Francisco, e o Carlos Calvet, nunca me deram alguma noção de que este artista estaria vivo.

Porque não se davam ou haviam perdido ligação?
Porque quando ele se muda, perde-se o contacto. E repare, o mundo mudou. Ou seja, os anos 90 ainda são uma década analógica, onde tudo era feito por carta, por telefone, etc. Quando ele se muda para o Canadá, ele perde o contacto com os surrealistas aqui.

Mas ainda regressa a Portugal nos anos 90.
Em 1991, acho que fez uma exposição cá, no Estoril. Nós temos um recorte de imprensa onde ele aparece com o Cesariny e com o Cruzeiro de Seixas nessa exposição. A mudança para o digital não foi acompanhada por muita gente. Por acaso, o João tem e-mail e comunica-se. Mas o Cruzeiro Seixas não tinha. O Cesariny também não, e ele morre em 2006, uma altura mais ou menos prematura onde isto não se colocava. E o Cruzeiro Seixas nos últimos anos de vida já tinha muita dificuldade de correspondência, etc. Aliás, até mudou de endereço, deixou a Rua da Rosa em 2002/2003, e possivelmente, quando muda, o próprio João se calhar escreveu, mas as cartas foram devolvidas. Há uma perda de contacto.

Com Cruzeiro Seixas e Isabel Meyrelles, antes de rumar ao Canadá © Acervo Perde Galeria

Mas tem noção, agora posteriormente, se o João tentou fazer algum tipo de contacto?
Não sei, por acaso não perguntei ao João, mas é de perguntar. É uma boa questão. Eu perguntei imensas coisas. Tenho imensa coisa de material gravado com ele. Fizemos três viagens já ao Canadá. Tenho muito material feito com ele.

Mas retrocedendo um pouco até esse email, que passos se seguiram?
Eu recebo o tal e-mail e perguntei se havia um inventário. E havia, de facto, um inventário. Esse casal, também já reformados, desenvolveram um trabalho muito interessante.

Foi fácil esse processo de organização?
O João é bastante organizado. Tem as coisas catalogadas, etc. E eles atualizaram o inventário. Mandaram-me as imagens e eu fiquei muito interessado. E depois houve ali um ano, um ano e tal, onde nós andámos, no fundo, a negociar.

"Conheci a Leslie e o Merlin numa loja de legumes, em White Rock, onde vivo. Tinham uma carrinha aberta com os dois miúdos. Começámos a falar. Eu tinha um gato e esse gato precisava de ir ao veterinário, que era o marido da Leslie. E depois a minha mulher mostrou um álbum com trabalhos meus. Convidei-os para um chá. Ultimamente foram eles que começaram a fazer contactos. Dei-lhes nomes dos outros surrealistas e fizeram buscas no computador. Perceberam que a ligação entre todos os surrealistas era o Carlos [Cabral Nunes]. Enviaram-lhe algumas imagens dos meus trabalhos, mostrou interesse, e veio ver-me. Foi assim ." 
João Artur da Silva

Como é que se operacionaliza a representação, por exemplo?
Nós representámos e representamos vários artistas e espólios. Para avançarmos com uma representação há uma série de procedimentos, a contratualização, etc. Tudo isto é objeto de uma negociação. O próprio João tem um advogado. É apoiado por uma série de pessoas, etc.

É todo o lado burocrático do processo.
Sim, houve ali um ano e tal de processo até que, em setembro do ano passado, eu fui, de facto, ao Canadá. Porque depois também havia isso, que era ver no local as obras. Porque uma coisa é estar a ver imagens. E outra coisa é ver as obras. O estado delas, onde estão, toda a logística, etc. Quando fechámos os contratos em setembro, começámos a desenvolver um programa. Programa esse que teve uma primeira exposição dele aqui na Galeria, na Casa da Liberdade. Uma exposição antológica, uma primeira exposição.

"Estou muito contente [com esta redescoberta]. Tinha algum receio no começo, fiquei um pouco ansioso mas agora aceitei isso bem. Perdi a minha privacidade [ri-se]. Estava longe de todos e agora estou sob os holofotes de certa forma. Digamos que não quero fazer parte do espectáculo, fisicamente, quero apenas ser o motor, a origem desse espectáculo."
João Artur da Silva

Calculo que já não viaje. Pensaram em realizar algo próximo do João?
Sim, fizemos feiras no Canadá, incluindo Vancouver. Quisemos fazer precisamente para ele poder ter o eco… Nós negociámos com a feira, eles deram-nos o destaque todo e tivemos um stand enorme, fizeram mupis nas pragens do autocarro, etc. Houve uma série de amigos, pessoas que conheciam, que no fundo deram o eco dessa relevância que a obra dele estava a ter. E foi interessante, depois o Cônsul Português também esteve lá.

E que falta agora reconhecer? Falamos de alguém com dupla nacionalidade e obra desenvolvida em três países.
Sim, estamos a preparar com o Museu de Arte de Vancouver também algo em torno dele. Estamos a tentar que o próprio Governo do Canadá dê uma distinção. Vejamos, ele é um dos poucos artistas, não é só português, mas internacionalmente, da geração nascida nos anos 20, que ainda está vivo e ativo. Porque há outros artistas que estão vivos, mas já não produzem. O João produz obras todos os dias, continua a ter uma disciplina de trabalho. Tem ali obras que são feitas o ano passado e este ano, etc.

"Não sei onde está a minha cidadania. Sou de todas e não sou de nenhuma. Tenho a minha própria cidadania. Não estou em lado nenhum, eu estou nas nuvens."
João Artur da Silva

Deduzo que haja material suficiente para reconstituir a biografia.
Ele tem uma autobiografia que nós estamos a preparar para editar, num modelo também muito curioso. A Leslie e o Merlin digitalizaram a autobiografia toda, porque é tudo manuscrito. A edição que queremos lançar terá à volta de 200 exemplares. A ideia é ser um livro-objeto artístico, portanto, além de ter serigrafias, terá uma obra original, feita por ele nos últimos anos, religando elementos da autobiografia. Há coisas sobre Oeiras, há coisas sobre Carcavelos, Londres, Vancouver, etc. E depois que as câmaras municipais, as juntas de freguesia, possam ter um exemplar.

Da esquerda para a direita, Mário Cesariny, Carlos Eurico da Costa, Cruzeiro Seixas, Mário Henrique Leiria e João Artur da Silva, em 1949 © Imagem retirada de O Jornal

Faz ideia quando é que ele começou a preparar essa autobiografia?
Há mais de 20 e tal anos. É um processo muito longo. Ele, como artista, tem essa questão de ser um artista ativo, que é um caso raro, e na América do Norte ainda mais raro. Com uma outra questão, que é um artista que desenvolveu trabalho em três países. E depois, a história dele, há coisas que nem os surrealistas sabiam, e que eu só soube depois de le me contar e de ler a autobiografia. Portanto, ele faz esta exposição de 1949 com 20, 21 anos.

"Tenho várias memórias desse tempo. De Cesariny e Seixas, Carlos Eurico da Costa. Todos aqueles miúdos, como eu. Éramos miúdos! Mário Henrique era um pouco mais velho e era reitor na minha escola primária. Queria que marchássemos todos os sábados, com as botas dele, como os nazis, fazendo saudações. Recusei-me a fazê-lo e disseram-me que se não fizesse aquilo não passaria nos exames. Mas lá passei. Mais tarde, tornámo-nos grandes amigos e foi ele que me trouxe até aos outros surrealistas. Tinha visto umas pequenas esculturas que eu estava a fazer no meio quintal e achou interessantes."
João Artur da Silva

Como é que se o João se aproxima daquele grupo de surrealistas?
Ele chega aos surrealistas pela mão do Mário Henrique Leiria. O Mário Henrique Leiria vivia na Linha de Cascais. E ele também. Porque o João é um dos alunos do Colégio Saint Julians. Onde mais tarde esteve a Paula Rego.

Nessa altura o João já resolveu a má formação que tinha na mão?
Tem-na até aos 18 anos. Ele nasce com uma deformação, de facto, com os dedos colados. Então, ele vai ao Reino Unido. O pai tinha uma empresa de import e export. Portanto, tinha algumas condições, e manda-o para Londres. Ele é tratado num hospital militar, que era pioneiro na cirurgia plástica. Quando o João se dá com o Mário Henrique Leiria e depois entra no surrealismo, os surrealistas não o viram com esse problema, com essa incapacidade, portanto certamente já não a teria. Porque seria uma coisa que o Cesariny ou algum deles me haveria de dizer. Um de nós tinha as mãos coladas! Seria muito evidente.

Que memórias é que o Carlos tem desse grupo?
É preciso notar uma coisa. A Galeria tem 25 anos, eu tenho 53. Quando comecei, eu tinha 28 anos. Dei-me com o Cesariny e ainda me dei com o Cruzeiro Seixas, com o Fernando José Francisco, etc. Ainda há um que não aparece aqui mas que esteve na exposição, que é o Carlos Calvet. Que também entra nisto por via do Mário Henrique Leiria. Ou seja, o Mário Henrique Leiria foi um grande arregimentador de pessoas para a exposição. Ele fazia imensos cadáveres exquis com o Carlos Calvet. E depois convidou-o para a exposição. E por sua vez o Cruzeiro Seixas introduz na exposição o António Paulo Tomás.

Chegou a conhecer o António Paulo?
Eu não conhecia o António Paulo Tomás, vi fotografias. Mas quem me falou dele foi o Cruzeiro Seixas e o Cesariny. Porquê? Porque o António Paulo Tomás, que tem aqui uma obra dele, e há outras depois na Galeria, era estofador.

João Artur da Silva algures na decada de 50/60 © Acervo Perve Galeria

Para muitos a pintura não era a ocupação principal.
O Cesariny dizia ao Cruzeiro Seixas: “não sei o que é que tu lhes fazes, mas tu tocas-lhes e eles tornam-se artistas!”. Ao longo da vida, o Cruzeiro Seixas transformou muita gente em artistas plásticos. O Mário Botas, que era de medicina, etc. No fundo é pela ligação ao Cruzeiro Seixas que depois entra na questão das artes plásticas. Mas há muitos, o Raul Pérez, a própria Paula Rego, é exposta pela primeira vez numa galeria pela mão do Cruzeiro Seixas. O Cruzeiro Seixas foi um dos grandes impulsionadores das artes visuais em Portugal. Porque sempre foi muito admirador da obra dos outros.

As ligações são infindáveis. Foi reencontrado mais nomes e afinidades ao longo dos anos?
O António Paulo Tomás vem pela mão do Cruzeiro Seixas. O Carlos Eurico da Costa vem pela mão do Cesariny. O Fernando Alves dos Santos, por exemplo, eu raramente ouvi falar dele. O Mário Henrique Leiria, claro que ouvi falar. O António Maria do Lisboa morreu muito cedo, em 1952. E o Pedro Oom também era importante. O que é interessante no caso do Henrique Risques Pereira é que ele participa nesta exposição, toda a obra dele é feita em 1949 e 1950, e depois põe tudo num baú. E torna-se piloto aviador e nunca mais toca na pintura nem nada.

Também é redescoberto mais tarde?
Só muito mais tarde, já no princípio dos anos 2000, é que ele, já muito idoso, conta às filhas e netas que há ali uma arca onde tem obras.

Isto para dizer que o grupo está cheio de caminhos enigmáticos, e surrealistas qb.
É. Eu fiz um filme curto sobre o Cesariny onde lhe perguntei muitas coisas. O Cesariny dizia “o que aconteceu connosco não foi uma explosão, foi uma implosão”. Uma coisa interior. Portanto, nós, no fundo, explodimos para dentro. Cada um à sua maneira.

Em 1978, depois de vários anos a viver e expor no estrangeiro, João Artur regressou a Portugal. Em 1981 realizou o seu primeiro 'Atelier Aberto' em Lisboa com uma retrospetiva do seu trabalho dos últimos 23 anos. Em 2009, a sua escultura "O Prisioneiro", uma das duas obras que integram a coleção permanente da Gulbenkian, foi exibida no Reino Unido e em Portugal, fruto da colaboração entre a Tate Gallery, St. Ives e o Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian.

O que se segue a esse momento estelar da exposição de 49?
Este grupo, no fundo, existe em duas exposições, a de 49 e a de 50. E depois, a seguir disso, há a tal implosão. Porque o Cruzeiro Seixas vai para a África, entra na Marinha mercante, faz as colónias todas portuguesas e fixa-se em Angola. O António Maria Lisboa, que era o grande intelectual do grupo, vai para Paris, apanha uma pneumonia e morre. Eles foram sempre pegando no estandarte que o outro representava. Quando António Maria Lisboa morre, o Cesariny assume o papel de intelectual do grupo.

E depois viria o Gelo.
E forma depois o grupo do Café Gelo, que já é outra coisa, com António José Forte, Herberto Helder, Luís Pacheco, etc. Este grupo inicial é feito com uma série de miúdos de 20 e tal anos. O Cesariny dizia que eles tinham dois inimigos. Mas eu acho que tinham três. Tinham a ditadura por um lado, ou seja, a situação política, porque havia uma série de artistas do regime, etc. Tinham depois os neorrealistas, que estavam ligados à oposição, ao Partido Comunista, etc. O que eles quiseram foi criar algo distinto disso.

Algumas das telas produzidas durante o longo trajeto artístico © Acervo Perve Galeria

Falta o terceiro inimigo.
Esse durou até o fim da vida de praticamente todos eles, exceto do João, porque ainda estava vivo. E se calhar continuará a ser vítima disso. Eu diria que é o grupo surrealista ortodoxo, o grupo do António Pedro, do José Augusto de França, do Azevedo, do Vespeira, do O’Neil. O único que pertenceu aos dois grupos foi o Cesariny. E que sai desse grupo, em 1948, para fundar este outro grupo.

Mais antigrupo?
Pois, ele não lhe chama grupo mas antigrupo. Porque sai do Grupo Surrealista de Lisboa dizendo que não era nem grupo nem surrealista (risos). Eles depois fundam este grupo e os dois grupos enfrentam-se num país tão pequenino com artes visuais tão minúsculas…

E no entanto sempre tão fragmentado.
Sim, sempre houve! Se for ver, mesmo a geração Orfeu…Portugal teve sempre esta confrontação entre duas visões do mundo. Eles no fundo eram os mais novos, mais marginais, com menos recursos financeiros e sociais, mas do ponto de vista do gesto artístico e criativo, e do exemplo que dão, é muito mais relevante que qualquer coisa que tenha sido produzida pelo grupo Surrealista de Lisboa, que pretendia no fundo fazer cá o que se fazia em Paris, uma importação de uma estética, de uma formulação plástica. Se vir as obras desse período percebe-se os referenciais todos, de Man Ray a Dali.

Enquanto no antigrupo…
Há ali outra coisa. Isto feito nos anos 40, no país que tínhamos, é quase um meteoro, é uma outra galáxia. O Cesariny dizia que o surrealismo mais do que uma estética é uma ética.

Estava para lá da proposta visual.
Sim, era uma proposta de transformação da sociedade, muito mais do que plástica. Pegando em três pilares do surrealismo, era o amor, a poesia e a liberdade. Adaptavam o slogan da revolução francesa. Nos anos 50, no DN há um jornalista que vai cobrir uma sessão no jardim das Belas Artes, no Chiado, onde o Grupo Surrealista ia explicar o que era o surrealismo. E nesse momento, irrompe na sala o antigrupo, com o António Maria Lisboa a levar um gato preto, que atira para a mesa.

Uma flash mob antisurrealista.
É que uns estavam a falar do que era o surrealismo e eles estavam a demonstrar o que era o surrealismo! Essas duas visões confrontam-se e aquilo dura dias. Remarcam a discussão para o dia seguinte, há cadeiras que voam, aquilo repete-se.

O João Artur participa?
Outra questão que não sei. [João dir-nos-á que não se recorda sequer do episódio] O meu conhecimento do surrealismo em Portugal é muito por via de duas figuras, o Cruzeiro Seixas e o Cesariny. Conhecia também o Carlos Calvet mas ele de certa forma nunca se assumiu como surrealista. A Isabel Meyrelles foi muito amiga deles mas no fundo também nunca fez parte do grupo. Depois conheci o Fernando José Francisco. Estava a fazer os filmes sobre o Cruzeiro e o Cesariny e eles discordavam em quase tudo. Mas havia uma coisa que coincidiam: diziam que o melhor deles todos na altura era o Fernando, um caso incrível porque tinha desaparecido.

Uma imagem do desdobrável da exposição de 1949 © Acervo Perve Galeria

Mais um enredo surrealista?
Para já, o nome dele, três nomes próprios, incrível (risos). Ele já pintava telas a óleo na altura, mas depois quis casar. Nos anos 50 isso era uma responsabilidade, o homem tinha que provir, e um artista era um marginal, portanto ele deixou a pintura.

Que foi fazer?
É isso, aí sim fiz as perguntas (risos). Disseram-me que ele ainda era capaz de estar vivo. Perguntei por contactos e o Mário [Cesariny] mandou-me ir procurar nas Páginas Amarelas. Eu já nem tinha lista telefónica. Fui desencantar uma lista e de facto lá estava o Fernando José Francisco. Liguei, e era uma casa surrealista realmente.

O que encontrou?
Estava casado com uma prima, a Maria Emília. Compreendi pelos olhos azuis dela o fascínio dele. Já estava no fim de vida quando o conheci, morreu um ano depois do Cesariny, em 2007. Vivia perto do Areeiro. Quando lá fui ele tinha grandes problemas de audição, e ela também. Era uma conversa surreal. Na altura estavam em situação de fragilidade. O Fernando tinha asma e nunca pensou que vivesse tanto tempo, nunca se preparou.

Em que trabalhava?
Foi desenhador gráfico. Temos vários panfletos que ele fez para o ministério da propaganda do regime. Ele sofria muito porque quando começava a pintar a mulher não levava aquilo a sério, pintava quase às escondidas. Quando apareço e proponho fazer a exposição com o Cruzeiro e o Cesariny, que é a última dele, aliás, ele morre duas semanas depois, lá se reuniram ao fim de 50 anos sem fazerem nada juntos.

Foram muito os desenhos produzidos para esculturas enquanto esperava no carro que a mulher fizesse compras. E muitas delas ganharam por fim dimensão © Acervo Perve Galeria

O Cesariny e o Cruzeiro Seixas aceitaram bem isso?
O Cesariny aceitou na condição de ser com o Fernando. E o Cruzeiro disse-me o mesmo. Nesse momento passei a representar o Fernando. Depois disso já era a mulher a dizer para ele pintar e ele não queria [risos]. Isto para dizer que as minhas memórias também são em torno destas pessoas.

E agora do João que surge aqui no final da famosa lista. Para além da surpresa da descoberta do próprio artista, o que mais o espantou?
Foi com grande surpresa que recebo isto, e sobretudo descobrir que tinha continuado a pintar e que tinha conservado na sua coleção obras de todos os períodos da vida e de outros artistas, de Cesariny, do Jorge Vieira, etc

Estamos a falar de quantas peças no total?
Milhares de obras. Há uma parte que já está connosco. Todo este processo levou tempo precisamente porque prevê a gestão em vida mas também após a morte, ele já definiu tudo, quem são os herdeiros. Nós ficamos encarregues da certificação da obra, etc. Isso é importante, sobretudo por temos um problema trágico em Portugal que é a falsificação. No caso do João estabelecemos que a Perve é responsável pela certificação da obra.

No seu estúdio no Canadá, em White Rock, em 2003 © Acervo Perve Galeria

É possível comprar?
É, é. Como está vivo é possível estabelecer várias coisas. Fizemos a feira de Vancouver, a de Seattle, estamos a preparar Toronto, depois São Francisco, sempre em torno da obra dele. Há uma parte da obra que ficou lá, que deixámos justamente em Vancouver, e depois há uma parte que veio para cá, para o projeto em Portugal e arredores, porque estamos a preparar também uma coisa em Espanha. E depois queremos uma coisa em Inglaterra. Gostávamos que a presidência da República desse um reconhecimento ainda em vida ao João Artur da Silva. E que em Inglaterra também possa acontecer esse reconhecimento, bem como no Canadá. É um exemplo de perseverança, de começar algo quando se tem vinte e tal anos, e nunca desistir.

A família tinha alguma relação com as artes?
A mãe, sim, e penso que temos uma pinturinha da tia avó. Há uma relação com as artes visuais. As fotos que ele tirou serviam para ilustrar artigos mas ele depois desenvolve relações plásticas. Nos anos 70 ele cria coisas a partir dos slides grandes. São mecanismos muito simples, analógicos, com transparências, que criam aquele movimento todo. Olhamos hoje e parece feito em digital mas era impossível na época.

Dizia-me que na escultura, por exemplo, ele espantou-se pelo facto de ter vivido tempo suficiente para as ver ganharem vida em 3D, um advento impensável quando começou.
Sim, isso é outro processo, que já trouxemos nós. No espólio ele tem centenas de projetos de escultura. Contou-me que ia às compras com a mulher e ficava no carro à espera, e enquanto esperava ia desenhando projetos de escultura. Tem centenas, a maioria nunca executados. Começámos a fazer modelação 3D e fomos enviando o resultado para ele ver. Usamos um fab lab ligado à CML, que está aberto à cidade. Na minha segunda viagem ao Canadá, em abril, para a feira de Vancouver, levei-lhe alguns projetos e ele quis trabalhar sobre a escultura 3D, patinando como se fosse as peças que fazia antes em bronze. Cria um esqueleto em ferro, uma espécie de corpo em bronze sobre o ferro, e são tudo peças únicas.

“Divirto-me muito quando pinto, porque estou sempre a descobrir coisas. É o mesmo sentimento de 1949. Para mim aquele grupo foi um acontecimento. Era um meio de descoberta para mim. Mais tarde, depois de 52 afastei-me do surrealismo e comecei a fazer outras coisas."
João Artur da Silva

O que distingue o João quando olhamos para isto tudo e comparamos referências?
Do grupo, sempre achei que as grandes figuras plásticas eram o Cruzeiro Seixas e o Cesariny. O Mário Henrique Leiria é multifacetado.

Muito também na escrita.
Sim, e na intervenção. O Cruzeiro Seixas é o grande artista de sempre que mais obra produziu. Pelo que conheço é o mais prolífico e também na qualidade, sempre surpreendente, com um alfabeto extensíssimo. Como artista global, pelo pensamento, pela poesia, pelas reflexões e pintura, o Mário Cesariny é o mais importante do grupo, apesar de a obra não ser extensa, mas é muito inovadora e consequente. Transcende gerações. O próprio ativismo dele perante os direitos das minorias. Tudo isso é de alguém que está muito à frente.

E João também sai do país. Não sabemos ao certo como seria a vida e repercussão da obra se tivesse ficado.
O João tendo mais uma certa ortodoxia de artista plástico acaba por romper com as fronteiras quando trabalha a pintura, desenho e escultura. Essa polivalência discursiva traz-lhe um apport tremendo. E depois é a continuidade da obra. E a quantidade disponível. Tem um alfabeto que se vai desmultiplicando. Diria que tem uma relevância no grupo ao nível de Cesariny e Cruzeiro Seixas. O João tem o notável trabalho da autobiografia e a componente plástica. E teve a visão de deixar isto, quis fazer um testamento, preocupou-se com o que acontecerá à sua obra depois de morrer. Queremos executar as tais centenas de esculturas em 3D, e temos o conceito de fazermos instalações ao ar livre. Esperemos que ainda possa assistir. E, claro, em outubro inauguramos a exposição em diálogo com a obra da Isabel Meyrelles.

"Ah, o Carlos contou-lhe a história da Meyrelles? Que tivemos um affair por uma noite.[ri-se] Oh, meu Deus. Fico tão contente que ela também ainda ande por cá. Mas ela não admite que foi ela que espalhou pelos surrealistas que eu era impotente! Nunca tive filhos mas não por causa disso. A minha última mulher não podia ter filhos, quando nos casámos já tinha 51 anos. O irmão disse-me que ela tinha 35 anos e de facto não parecia ter mais de 30, estava ótima, não tinha uma ruga na cara. Incrível." 
João Artur da Silva

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