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A ópera nasceu no dealbar do século XVII como um espectáculo sumptuoso concebido para exclusiva fruição das elites, converteu-se num entretenimento popular e, ao longo do século XX, foi, pouco a pouco, regressando à sua condição elitista. A ópera – mesmo as obras mais consagradas e populares – está hoje tão afastada dos interesses e vivências do cidadão comum que pode parecer estranho que a estreia de uma nova ópera possa, em tempos, ter contribuído para exacerbar conflitos latentes numa sociedade e fazer estalar tumultos, revoltas e até uma guerra civil. Mas foi o que aconteceu na França de meados do século XVII.
O novo cisne de Itália
A fama de que goza Luigi Rossi (c.1597-1653) – uma fama muito modesta e restrita aos aficionados do Barroco seiscentista, que estão longe de serem legião – assenta essencialmente nas cantatas de câmara, para uma, duas e três vozes, que compôs em grande quantidade – chegaram aos nossos dias umas três centenas – e que contribuíram para definir os moldes do género. A sua produção para o palco resume-se a duas óperas, mas uma delas, L’Orfeo, deixou marca na história da música.
[Cantata de câmara “La bella più bella”, de Rossi, por Suzie LeBlanc (soprano) e Tragicomedia]
O hoje esquecido Rossi foi elogiado em 1688 pelo compositor Giacomo Antonio Perti como um dos “três maiores luzeiros do nosso mister” (ou outros dois eram Carissimi e Cesti) e Severo Bonini, nos seus Discorsi e regole sovra la musica et il contrapunto (1650), apontou-o como líder dos compositores romanos e colocou-o entre os “novelli cigni” (“novos cisnes”) da música italiana (ao lado de Cavalli).
Apesar do prestígio de que gozou no seu tempo, pouco se sabe dos seus primeiros anos, em parte por os arquivos paroquiais da sua terra natal, Torremagiore, onde terá nascido em 1597/98, se terem perdido num terramoto em 1627. Sabe-se que tinha pelo menos seis irmãos, um dos quais, Giovan Carlo, se tornou harpista.
A partir de 1608, Rossi terá estudado em Nápoles com Giovanni de Macque (Jean de Macque, 1548/50-1614), um franco-flamengo natural de Valenciennes que se tornou mestre de capela do vice-rei de Nápoles e na figura mais influente da escola napolitana. Rossi ficou ao serviço da corte napolitana até ao início da década de 1620, altura em que se mudou para Roma, tornando-se “sonatore” do príncipe Marc’ Antonio Borghese, sobrinho do papa Paulo V.
Rossi casou-se em 1627 com a harpista Costanza De Ponte, união que não gerou descendência. Em 1633 foi nomeado organista da igreja de San Luigi dei Francesi, à qual se manteria vinculado até à sua morte, apesar dos seus outros cargos e das suas estadias no estrangeiro.
Entretanto, a influência dos Borghese em Roma, que atingira o auge no papado de Paulo V (1605-21), entrara em declínio e a família Barberini tomara o seu lugar a partir da eleição, em 1623, do cardeal Maffeo Barberini como Urbano VIII, cujo papado se estendeu até 1644.
Rossi acompanhou a mudança de maré e, em 1641, ao fim de 20 anos ao serviço de Marc’ Antonio Borghese, “transferiu-se” para a corte do cardeal Antonio Barberini (1608-1671), sobrinho de Urbano VIII, que pretendia disputar a primazia do firmamento artístico romano com o irmão, o cardeal Francesco Barberini, que era patrono de músicos como Stefano Landi e Virgilio Mazzocchi. Foi no âmbito da rivalidade entre os dois cardeais Barberini que Rossi compôs alguma da sua música sacra mais relevante, nomeadamente a oratória Giuseppe, figlio di Giacobbe, estreada em 1641.
Música própria para cardeais
Ficou célebre a proclamação do Evaristo droguista (António Silva), em “O pátio das cantigas”, de que a ópera “é música própria para operários”. Nunca o foi e menos ainda nos seus primórdios: a ópera nascera nas cortes de Florença e Mântua (ver Música para amansar feras: A origem da ópera) como divertimento aristocrático e em Roma manter-se-ia, durante algumas décadas, confinada aos palácios dos príncipes da igreja, apesar de, em Veneza, ter inaugurado em 1637 o San Cassiano, primeira casa de ópera para público pagante.
Foi para uma sumptuosa festa no Palácio Barberini, a 22 de Fevereiro de 1642, que Rossi compôs a ópera “Il palazzo incantato”, sobre libreto de Giulio Rospogliosi, íntimo de Urbano VIII, membro dos serviços diplomáticos da Santa Sé, futuro papa Clemente X (1667-69) e, à data, o mais requisitado libretista de Roma.
[Excerto do I acto de ópera “Il palazzo incantato”, por Philippe Jaroussky (contratenor) e “L’Arpeggiata”, com direcção de Cristina Pluhar]
Requisitado não significa necessariamente talentoso e o enredo confuso e inconsequente, que pedia emprestadas personagens e situações ao Orlando furioso de Ariosto, foi uma das principais razões para o acolhimento moderadamente entusiástico dispensado às sete horas de duração de “Il palazzo incantato” (as falhas na maquinaria de cena também terão comprometido a estreia).
Il palazzo incantato teve, como todas as outras apresentadas em Roma neste período, um elenco estritamente masculino, já que o papa Sisto V interditara, em 1588, a presença de mulheres em palco dos domínios da Santa Sé, disposição que só seria revogada quase dois séculos depois e que contribuiu para favorecer a proliferação de cantores castrati (ver Divas e castrati: Estas estrelas pop têm 300 anos). A interdição não se restringia aos intérpretes: em Roma, as mulheres estavam também proibidas de assistir a espectáculos de ópera, excepto em ocasiões especiais e apenas se acompanhadas pelos esposos.
A França sob Mazarin
Pela altura em que estreava em Roma “Il palazzo incantato”, o cardeal Jules Mazarin, que era, na prática, o homem forte em França, decidiu introduzir a ópera italiana no país.
Mazarin tinha uma boa razão para este apreço especial pela música italiana: nascera em Pescina, no Reino de Nápoles, em 1602, como Giulio Mazzarini. O jovem Mazzarini ascendeu rapidamente na hierarquia da Igreja Católica e desempenhou altas funções diplomáticas ao serviço da Santa Sé. Em 1634 tornou-se vice-legado papal em Avignon e o cardeal Richelieu, primeiro-ministro (“principal ministre d’État”) de Luís XIII, viu nele as qualidades necessárias para lhe suceder no cargo, pois sentia que os múltiplos achaques de que padecia não tardariam a tolher-lhe a acção.
Mazzarini aceitou a proposta de Richelieu: em 1639 naturalizou-se francês, passou a chamar-se Jules Mazarin e começou a ser envolvido nos assuntos de Estado. Dois anos depois foi nomeado cardeal e um dia após a morte de Richelieu, a 5 de Dezembro de 1642, ascendeu ao posto de primeiro-ministro de França. Luís XIII viveria apenas mais seis meses, deixando como herdeiro Luís XIV, então com cinco anos de idade. Durante a menoridade de Luís XIV, a mãe, Ana de Áustria, assegurou a regência de França (1643-51), mas quem efectivamente detinha as rédeas do poder era o cardeal Mazarin.
Embora naturalizado francês, Mazarin não esquecera as suas raízes e entendeu que os franceses teriam a beneficiar com o conhecimento do novo género musical que fazia furor em Itália. Em Fevereiro de 1645 fez apresentar uma ópera italiana, cujo título e autor se perderam, no Palais-Royal e voltou à carga, em Dezembro do mesmo ano, agora no Théâtre au Petit-Bourbon, em Paris, com La finta pazza, de Francesco Sacrati (1605-1650), estreada em 1641, por ocasião da inauguração do Teatro Novissimo, em Veneza (por esta altura, os teatros de ópera multiplicavam-se em Veneza como cogumelos).
Para a fase seguinte da divulgação da ópera italiana, Mazarin pretendia uma ópera composta expressamente para Paris e, para o efeito, requisitou os serviços de Luigi Rossi.
Imbróglio no Vaticano
Entretanto, as relações de poder em Roma tinham sofrido uma reviravolta. A sua origem esteve na morte, em 1644, de Urbano VIII e na escolha de um sucessor.
Antonio Barberini, o “patrão” de Rossi, desenvolvera uma forte relação de cumplicidade com França – país de que se tornara “cardeal da coroa”, ou seja, representante oficial no Colégio de Cardeais – e, em particular, com Mazarin, pelo que ficou responsável por manipular o Colégio de Cardeais de forma a fazer eleger o candidato que mais convinha aos franceses. Porém, o irmão de Antonio Barberini, Francesco, tomou partido pela causa espanhola e mexeu os cordelinhos para que fosse eleito o candidato favorito dos espanhóis, o cardeal Giovanni Battista Pamphili. Pamphili acordara com Francesco que os Barberini manteriam intactos os privilégios e a imensa fortuna que tinham amealhado durante o papado de Urbano VIII, mas quando foi eleito e subiu ao trono como Inocêncio X, voltou atrás com a promessa e tratou de acusar Antonio Barberini e outro irmão, Taddeo, também cardeal, de desvio de fundos. Em 1645, os dois Barberini tiveram de exilar-se em França, junto do amigo Mazarin, e o irmão Francesco ver-se-ia forçado a juntar-se-lhes um ano depois.
Compreende-se assim que a escolha de Mazarin tenha recaído sobre Rossi, cuja fama como compositor de cantatas também já extravasara as fronteiras de Itália. Mazarin depositava fortes esperanças em Rossi, até porque a terceira ópera italiana apresentada em França, “L’Egisto”, de Cavalli, estreada originalmente em Veneza em 1643 e reposta em Fevereiro de 1646 no Théâtre au Petit-Bourbon, fora um fiasco, talvez por a sua encenação ter (segundo algumas fontes) prescindido da maquinaria de cena.
[“Lasso io vivo”, de L’Egisto, de Cavalli, por Rolando Villazón (tenor) e Le Concert d’Astrée, dirigido por Emmanuelle Haïm]
L’Orfeo de Rossi
Rossi terá chegado a Paris no final de 1645 e “L’Orfeo” estreou no Palais-Royal a 2 de Março de 1647. Compreende-se o tempo de gestação se se atender a que, na sua versão original, a ópera durava seis horas – um total que inclui os bailados apresentados entre os actos, possivelmente da autoria do violinista Louis Constantin (c.1585-1657), membro dos Vingt-Quatre Violons du Roi.
Mazarin pretendia um espectáculo magnificente e abriu os cordões à bolsa: confiou a coreografia a Giovanni Battista Balbi, os cenários a Charles Errard e a maquinaria de cena a Giacomo Torelli, famoso pela espectacularidade dos seus “efeitos especiais” e que viera de Itália para assegurar a componente cénica da versão parisiense de La finta pazza – os cenários e a maquinaria de “L’Orfeo” envolveram 200 trabalhadores, o que dá ideia da sua grandiosidade e complexidade.
Para o papel de Orfeu foi recrutado o castrato Atto Melani, um protegido dos Medici (e que mais tarde se tornaria num espião ao serviço de Mazarin), bem como vários outros cantores e cantoras italianos, entre os quais o castrato Marc’Antonio Pasqualini, o tenor Jacopo Melani (irmão de Atto) e a soprano Margherita Costa.
[“Lasciate Averno”, ária de Orfeu, de L’Orfeo de Rossi, por Véronique Gens (soprano) e L’Arpeggiata, dirigida por Cristina Pluhar, no Palácio de Versailles, 2004]
Quem conheça a história de Orfeu e Eurídice e, mais concretamente, a ópera que Claudio Monteverdi sobre ela erguera 40 anos antes, em Mântua, poderá interrogar-se como pode uma intriga tão simples alimentar seis horas de espectáculo, mesmo admitindo que os bailados tomam uma hora ou duas. Acontece que o libreto, da autoria de Francesco Buti, secretário de Antonio Barberini, segue a voga de meados do século XVII, de complexificação do enredo com várias personagens adicionais, em torno das quais se elaboram sub-enredos. Estes acrescentos, por vezes de natureza cómica, alteraram a natureza do género operático e foram amiúde negativos para a coerência dramática – mas o público aderiu a estas inovações.
Buti faz intervir um rival de Orfeu, o pastor Aristeu, que também está apaixonado pela ninfa Eurídice. Aristeu tem pelo seu lado o Sátiro, que lhe propõe raptar Eurídice antes do casamento, e Vénus, que pretende vingar-se de Apolo (Orfeu era filho de Apolo) e, sob a aparência de uma velha alcoviteira, se insinua junto de Eurídice e tenta persuadi-la a trocar Orfeu por Aristeu. Juno, rival de Vénus, intervém em favor de Orfeu e Eurídice.
[“Mio ben, teco il tormento più”, ária de Eurídice, de L’Orfeo de Rossi, por Roberta Invernizzi (soprano) e Margret Köll (harpa), Schloss Ambras, Innsbruck]
Como em muitas óperas seiscentistas italianas, há uma velha Ama (“Nutrice”) que funciona como confidente de Eurídice e que tenta moderar o entusiasmo desta perante a perspectiva das núpcias com Orfeu com uma observação que não perdeu actualidade: “Quantos noivos de trato cortês não se transformaram em maridos execráveis em apenas algumas horas!”.
Também na tradição seiscentista italiana, foram introduzidas personagens encarregadas do comic relief: é o caso do Sátiro, da Velha e de Momus. Este trio expressa um entendimento do amor que vai ao arrepio do amor romântico, de devoção total e fidelidade inquestionável, professado por Orfeu e Eurídice: alegam que o mundo regurgita de homens e mulheres atraentes, que é tolice sofrer por amor, que a melhor forma de fruir a vida é ter uma paixão nova todos os dias e que “o rei dos tormentos é o ciúme”.
O mito original fica, em certos momentos, obscurecido pelas maquinações e contra-maquinações urdidas pelos deuses e pelas querelas entre Vénus e o seu filho, Cupido/Amor. O libreto de Buti introduz novidades na morte de Eurídice: a mordedura da serpente deixa de ser um infortúnio para resultar de um plano do Sátiro e de Aristeu, que pensava ganhar os favores de Eurídice ao acudir à ninfa mordida pela serpente munido de um providencial antídoto. O que Aristeu não previu foi que Eurídice veria na aceitação dessa oferta vinda de um rival de Orfeu uma traição à sua concepção de paixão pura e incondicional, pelo que recusa o antídoto e perece. Outra inovação passa-se no Inferno onde Orfeu desce para resgatar Eurídice: no Orfeo de Monteverdi, são a arte do canto de Orfeu e a intercessão de Proserpina, esposa de Plutão, que levam o Senhor do Sub-Mundo, a devolver-lhe a amada. No libreto de Buti, Proserpina convence Plutão a aceder às súplicas de Orfeu, não por compaixão pelos dois amantes, mas porque, dando ouvidos ao Ciúme e à Suspeita (enviados por Juno), crê que Plutão está embeiçado por Eurídice e quer afastar a suposta rival.
No caminho para a superfície, Orfeu infringe a condição imposta por Plutão e olha para trás, para Eurídice. Esta é levada para as profundezas, desta feita irrevogavelmente, e Vénus condena então Orfeu a ser despedaçado pelas bacantes (como no mito original, que foi suavizado na versão de Monteverdi). No final, Júpiter acaba, misericordiosamente, por conceder a Orfeu a graça de juntar-se a Eurídice como uma estrela no firmamento, para toda a eternidade.
Mazarin em apuros
L’Orfeo foi um sucesso, quer pela excelência da música e dos cantores quer pelos efeitos especiais e teve seis récitas sucessivas. A ópera italiana poderia ter-se implantado em França e Rossi poderia ter sido a sua ponta de lança. Porém, a história seguiu outro rumo: as despesas exorbitantes com a produção da ópera juntaram-se a outras razões de agravo que os franceses tinham contra Mazarin, como a política de repressão da expansão urbana de Paris e a voracidade tributária.
As despesas do Estado francês tinham quintuplicado desde o início do século, em boa parte devido aos conflitos contra o Sacro Império Germânico (Guerra dos Trinta Anos, iniciada em 1618, mas na qual a França só entrou em 1635) e contra Espanha (Guerra Franco-Espanhola, de 1635 a 1659). O custo da série de luxuosas produções de ópera iniciada por Mazarin em 1645 dificilmente se compararia com os gastos militares, mas pesou na opinião pública.
A aristocracia conseguiu furtar-se ao “brutal aumento de impostos” decretado por Mazarin, pelo que aquele se abateu sobre a burguesia urbana. Quando, em Maio de 1648, após uma sucessão de inovações tributárias, Mazarin tentou aplicar um novo imposto aos funcionários judiciais do Parlamento de Paris, estes recusaram-se a pagá-lo. O descontentamento inflamou-se e o Parlamento pôs em causa também os impostos anteriores e exigiu reformas, nomeadamente a interdição de lançar novos impostos sem autorização do Parlamento.
Foi a chamada Primeira Fronda ou Fronda Parlamentar, que Mazarin tentou sufocar fazendo prender os líderes do Parlamento. Porém, a revolta alastrou às ruas e o povo ergueu barricadas e exigiu a libertação dos revoltosos detidos – foram as fundas (“frondes”) usadas pelos populares para estilhaçar as janelas dos apoiantes do cardeal que deram o nome à revolta.
Em Março de 1649, as partes em confronto acabaram por assinar um acordo para cessação das hostilidades, mas esta paz foi periclitante e dizia respeito apenas a Paris. Em Janeiro de 1650, Mazarin ordenou a prisão de alguns nobres que tinham apoiado a Fronda Parlamentar, nomeadamente Luís II, príncipe de Condé – foi a faísca que desencadeou a Segunda Fronda, ou Fronda dos Nobres. Mazarin viu-se obrigado a exilar-se em Colónia e a regente Ana não teve outro remédio senão libertar o príncipe de Condé.
Os golpes de teatro e as intrigas foram sucedendo-se, numa guerra civil de baixa intensidade, mas a chegada de Luís XIV à maioridade em 1651, aos 13 anos de idade, levou a maior parte dos nobres a cessar a contestação e a render-lhe homenagem. A excepção foi Condé, que prosseguiu o combate e tomou Paris, aproveitando a revolta da população em reacção ao regresso do exílio do detestado Mazarin. O comportamento brutal das tropas de Condé acabou por fazer os parisienses voltar-se contra ele e a Fronda acabou por perder gás, pois os franceses estavam saturados de conflitos (a Guerra dos Trinta Anos chegara ao fim em Outubro de 1648, com a paz de Vestefália, mas a Guerra Franco-Espanhola prosseguia). Paris aceitou a entrada de Luís XIV na cidade e Mazarin regressou em Fevereiro de 1653.
No rescaldo da Fronda
A Fronda terminou em 1653 – apenas Condé continuava activo, agora ao serviço dos espanhóis – e Luís XIV foi coroado em Junho de 1654. O balanço da Fronda acabou por ser negativo para os revoltosos – nobreza, burguesia urbana e parlamentos – pois as suas pretensões e reivindicações não foram atendidas e o rei passou a concentrar ainda mais o poder nas suas mãos. Mazarin, cuja desmedida pressão fiscal e falta de tacto tiveram responsabilidade na eclosão da Fronda, regressou às funções de primeiro-ministro, que desempenhou até à morte, em 1661. Luís XIV aproveitou o falecimento de Mazarin para extinguir o cargo de primeiro-ministro, passando a assumir pessoalmente o controlo de toda a governação: o absolutismo subia para um novo patamar.
Também Luigi Rossi saiu prejudicado da Fronda: o falecimento da esposa, a 27 de Novembro de 1647, em Itália, fizera-o regressar a Roma, mas em 1648 estava de novo em França, por solicitação de Ana de Áustria, para compor uma nova ópera. Os tumultos da Fronda impediram a concretização do projecto e, embora Rossi se tenha mantido por França até 1651, não há registo de composições suas deste período. Acabou por reassumir as funções de organista em San Luigi dei Francesi, em Roma, e faleceu em 1653. “L’Orfeo” não voltou a ser ouvido depois das seis récitas de 1647 e só foi resgatado em 1984, numa produção em Perugia. Seria preciso esperar mais seis anos até que surgisse a primeira gravação da obra, por Les Arts Florissants, com direcção de William Christie (Harmonia Mundi).
[Excerto do Prólogo de L’Orfeo de Rossi, por Les Arts Florissants, com direcção de William Christie]
https://youtu.be/mCGFoylqUCo
O facto de a ópera italiana não ter ganho raízes em França não significa que L’Orfeo de Rossi não tenha tido descendência, através de outro italiano, o florentino Giovanni Battista Lulli (1632-1687), que fora levado, ainda adolescente, para Paris em 1647, para ser “garçon de chambre” de Mademoiselle de Montpensier. Os seus talentos de violinista, compositor e bailarino despertaram em 1653 a atenção de Luís XIV (que tinha uma paixão pelo bailado) e, graças à protecção deste, ascendeu rapidamente na hierarquia da corte. Naturalizou-se francês em 1661, adoptando o nome de Jean-Baptiste Lully, e, tendo obtido de Luís XIV uma série de privilégios e direitos exclusivos, reinou sobre a música francesa de então com o mesmo poder absoluto com que o Rei-Sol reinava sobre França.
Lully estabeleceu os moldes da música francesa para os cem anos seguintes, antes de mais no domínio da tragédie-lyrique, o análogo francês da ópera italiana. O lugar central ocupado pela tragédie-lyrique nos palcos franceses fez com que o país fosse dos poucos a não sucumbir à hegemonia da ópera italiana. Porém, é bem provável que o jovem Lulli tivesse assistido às representações de “L’Orfeo” em 1648, pois nas suas óperas há ecos da música de Rossi – nomeadamente nas cenas de sono (“sommeil”) das tragédies-lyriques, que podem ser rastreadas até ao “Dormite, begl’occhi”, de “L’Orfeo”.
[“Le sommeil” de Atys (1676),de Lully, por Les Arts Florissants, com direcção de William Christie]
L’Orfeo segundo Pichon e Mijnssen
A gravação de “L’Orfeo” por Christie está esgotada há muito (vende-se em segunda mão na Amazon por 180 euros) pelo que a edição em DVD + Blu-ray, pela Harmonia Mundi, de um espectáculo na Opéra National de Lorraine, em Nancy, em Fevereiro de 2016, com direcção musical de Raphaël Pichon e encenação de Jetske Mijnssen, é muito bem-vinda.
“L’Orfeo” chegou aos nossos dias sob a forma de uma cópia muito incompleta realizada 30 anos após a estreia e que apenas indica a linha vocal e o rudimento de baixo contínuo; como se isto não bastasse, o libreto e a sua sinopse que estão disponíveis apresentam contradições. Dado o estado da obra, a sua realização obriga necessariamente a aturado trabalho de reconstrução, orquestração e montagem, realizado por Pichon e Miguel Henry, operação sobre a qual nos é dito pouco no demasiado sumário livrete.
A duração original de seis horas foi reduzida a metade, o que resulta da ausência (justificada) de intermezzi com bailados, da supressão (também justificada) do prólogo (um pomposo louvor formal às virtudes da casa real francesa, sem conexão com o enredo e que passaria ser obrigatório em todas as tragédies-lyriques) e do que Pichon designa de “simplificação da intriga”, eliminando sub-enredos e personagens secundárias, concentrando a acção no triângulo Orfeu-Eurídice-Aristeu e – isso o livrete não diz – suprimindo a cena final, que ameniza a desolação de Orfeu.
A opção poderá ser legítima, mas seria desejável saber o que ficou de fora e qual o critério para cortar material de Rossi para colocar no seu lugar “duas canzoni de Cavalli e Ferrari” (quais são essas canzoni não nos é dito). O livrete não inclui sinopse – falha grave, dado que o libreto de Buti se desvia significativamente do mito de Orfeu e Eurídice e a versão de Pichon se desvia significativamente do libreto de Buti – nem lista de faixas – o DVD/Blu-ray está dividido apenas em três actos, cada um com cinco/seis cenas, o que é insuficiente para três horas de música. Sem sinopse e sem indicação de quem canta a cada momento e com uma galeria de 14 personagens, cabe ao espectador ir fazendo por adivinhar quem é quem, à medida que a ópera progride.
Pichon envolveu “L’Orfeo” numa orquestração luxuriante, inspirada na de Il palazzo incantato, opção plenamente justificada, dado que, enquanto as óperas destinadas aos teatros públicos tinham a instrumentação reduzida ao mínimo, de forma a serem rentáveis, “L’Orfeo” era um divertimento de corte, destinado a impressionar pela magnificência. O ensemble de instrumentos de época Pygmalion, fundado em 2006 por Pichon e cuja (ainda) breve discografia é de qualidade notável, soma aqui uma trintena de músicos, repartidos por violinos, violas, basse de violon (afim do violoncelo), contrabaixo, violas da gamba, lira da braccio, lirone, tiorbas, alaúdes e similares, harpa, flauta, dulçaina (um antepassado do fagote), cornetto, sacabuxa (um antepassado do trombone), cravos, órgão e percussão.
[Excertos de “L’Orfeo” por Pichon/Mijnssen]
O elenco vocal, embora não tenha nomes sonantes, é de alto nível, sobretudo no que respeita aos três papéis principais, as sopranos Judith van Wanroij (Orfeu) e Francesca Aspromonte (Eurídice) e a mezzo-soprano Giuseppina Bridelli (Aristeu) – não se estranhe que os papéis principais masculinos estejam confiados a mulheres, pois era o uso do Barroco que essas vozes fossem agudas (fossem elas femininas ou de castrati). Eurídice, que no L’Orfeo de Monteverdi tem papel secundário, é, na versão de Rossi, a personagem com mais “tempo de antena” (mesmo depois de morta!) e Orfeu, que é indiscutivelmente o fulcro da ópera de Monteverdi, é n.º 3 da ópera de Rossi, só ganhando protagonismo no III acto.
[Dueto de Vénus (Giulia Semenzato) e Aristeu (Giueseppina Bridelli), na versão de Pichon/Mijnssen]
https://youtu.be/1pbuClJlnrQ
O veterano contratenor Dominique Visse tem a voz fanada há muito, mas especializou-se em papéis cómicos de travesti, onde o seu timbre metálico e azedo e a sua afinação periclitante não assentam mal – aqui faz de Velha, a encarnação de Vénus como alcoviteira. De resto, até as Três Graças e as Três Parcas, papéis de terceiro plano, têm desempenhos escorreitos.
[Excerto do II acto de L’Orfeo, na versão de Pichon/Mijnssen]
A encenação de Jetske Mijnssen transfere a acção para um ambiente burguês das décadas de 1920-30, com um palco despojado, decorado apenas com cadeiras e mesas. Funciona, mas torna incongruente uma mordedura de serpente, que faz todo o sentido no contexto de prados, bosques, pastores e ninfas do libreto.
Mais inexplicável é que os figurinos de Aristeu, Momus e Amor destoem dos restantes: Aristeu parece um adolescente urbano de hoje, enfiado numa sweatshirt com capuz, uns números acima do seu (isto antes de Vénus, num curso intensivo sobre como seduzir Eurídice, o fazer envergar roupa “de época”); Momus (o tenor Marc Mauillon), um party animal de calças de ganga com suspensórios e peúgas verde-fluorescente, dir-se-ia estar a caminho de uma festa afterhours; e Amor (o contratenor Ray Chenez), com uns enormes headphones coloridos e um gorro rasta parece ter entrado no teatro de Nancy no intervalo entre uma manifestação de estudantes contra as reformas de Emmanuel Macron e uma rave alimentada a dubstep e substâncias psicotrópicas.
[Coro de lamentação pela morte de Eurídice, na versão de Pichon/Mijnssen]
A acumulação de papéis de Endímion e Caronte no mesmo cantor – o excelente barítono Victor Torres – resulta incongruente, pois Endímion continua bem visível sob as vestes de Caronte, de forma que, por instantes, o espectador pode perguntar-se o que faz o pai de Eurídice no Inferno. As tropelias de Momus na boda de Orfeu e Eurídice são encenadas com excesso de brejeirice, e as intervenções do Sátiro sofrem, por vezes, do mesmo mal.
Enfim, são as arbitrariedades usuais nos encenadores que precisam desesperadamente de se colocar à frente das obras, em vez de as servir, e que “fazem diferente” só por fazer diferente, não para proporcionar um entendimento mais profundo da obra ou aproximá-la do público de hoje. Neste caso, as bizarrias não são suficientes para comprometer a fruição de tão sublime música e tão esmerada interpretação vocal e instrumental. A iluminação é judiciosa, a realização é escorreita, a qualidade de som irrepreensível e o público é tão pacato e tem as vias respiratórias em tão bom estado que é preciso irromperem os aplausos para que sejamos recordados de que se trata de uma gravação ao vivo.