Entre os termos que podem dividir a História num “antes” e num “depois” está a existência dos Velvet Underground. Antes, o rock’n’roll ameaçava, deixava avisos, era um potencial agente de caos e guerrilha. Depois, concretizou. Com os Velvet Underground, o rock’n’roll tornou-se um pesadelo vivo, fez-se tóxico, agressivo, desligou todas as luzes que as guitarras e as vozes em harmonia tinham acendido. Mas, nessa oposição, a banda gerou um outro tipo de revelação: a partir das caves mais bafientas tornava-se possível encontrar um abrigo para todos os que nunca tiveram lugar, família, pouso ou abraço.
Ao comando desta locomotiva imparável através das paragens infernais da insegurança, da indiferença e da dependência estava Lou Reed (1942-2013), Lewis de nome próprio, filho de uma família que duvidou dele até ao limite, que o entregou a tratamentos de choques elétricos para o livrar — do que seria mesmo? — da ansiedade, da depressão ou das tendências homossexuais, algum deus o ajudasse. Também ele encontrou no rock’n’roll primário a fuga que todos os jovens inevitavelmente descobriam entre as décadas de 50 e 60. Também ele viu na simplicidade do doo wop (quatro acordes, às vezes menos, e o mundo todo numa guitarra) a plataforma para começar algo novo. A isso juntou Nova Iorque, freakshow fascinante e sedutor que podia aliviar todas as dores, mesmo que apenas por pouco tempo, até doer outra vez, mais e mais.
Excessivo nos consumos e nas relações, intenso enquanto líder de uma banda, ambíguo no papel de animal sexual, deixou-se de grupos e fez-se punk rocker original em modo solitário. Foi amigo privado e privilegiado de artistas que mudaram o mundo, mas também se distanciou deles sempre que assim teve de ser. Navegou o corpo entre mulheres, homens e toda a fluidez possível da carne, até encontrar em Laurie Anderson a tranquilidade que sempre parecera perseguir. E morreu, aos 71 anos, entre amores, amigos e uma playlist de quem escrevia a pop contemporânea de então.
A história de Lou Reed, o homem que mudou a música sem nunca ter sido um fenómeno de vendas de discos, que inventou o rock alternativo para depois o tornar experimental e teatral, seria impossível de criar numa sala de ficcionistas, mas é uma das mais sedutoras, intrigantes e influentes vidas reais com banda sonora própria. Biografias já as havia, mas o crítico e autor Will Hermes escreve em O Rei de Nova Iorque os detalhes que precisávamos de ler, vai até ao fim de todos os finais e faz o melhor dos usos do arquivo que o mais maravilhoso dos sacanas guardou. Falámos com o autor, um fã eterno que assim cumpriu um sonho.
Porquê uma nova biografia de Lou Reed? Havia algo por dizer?
Quando o Lou morreu, muita gente disse-me “não há uma biografia realmente boa dele”. E há 10 anos havia menos do que há agora, a morte dele motivou várias pessoas a escrever. Já havia a de Victor Bockris [Transformer: The Complete Lou Reed Story], que terminava nos anos 90. Pensei muito sobre a possibilidade de escrever uma, até porque nunca tinha escrito uma biografia. Já fiz muitos perfis. Fiz um livro sobre Nova Iorque nos anos 70 [Love Goes to Buildings on Fire], ainda que seja um livro tão cultural como social. E também por isso, uma das razões mais fortes para avançar foi a forma como Lou Reed simbolizou todo um cruzamento entre diferentes faces de Nova Iorque no pós-Segunda Guerra Mundial. Ele trabalhou com Andy Warhol, ele estava ligado aos poetas da cidade, tinha ligações aos cineastas. O Lou era visto como o “padrinho do punk” e manteve-se ativo até ao fim, numa etapa já avançada lado a lado com a companheira, Laurie Anderson. Ou seja, encontrei aqui uma oportunidade não só de escrever sobre o Lou Reed, de uma forma biográfica mais normal, mas também de aplicar uma lente mais abrangente sobre a Nova Iorque da segunda metade do século XX e do início do século XXI.
E até que ponto existe também uma relação emocional com a obra de Lou Reed? Este é também o livro de um fã?
Sou um enorme fã dos Velvet Underground há muitos, muitos anos. Se olharmos para a história das melhores bandas de rock americanas, os Velvet podem muito bem estar no topo. Mais: se o critério a aplicar for o de pessoas que tenham deixado um legado e uma influência que permanece, é difícil conseguir concorrer com Lou Reed. Portanto, tenho de dizer que sim, tudo isto pesou muito na decisão de escrever o livro.
Os Velvet Underground, enquanto banda, têm também esse estatuto que Lou Reed de forma individual tem? Não com os artistas, com os músicos, mas com as pessoas no geral, com o público: a banda é uma referência incontornável, popular e assumida, em 2024?
Não estou certo que assim seja… A verdade é que, por um lado, os Velvet são como divindades do rock, reconhecidos e legitimados. Mas, por outro, é como se nunca tivessem deixado de ser “de facto” underground. Nunca passaram para o mainstream, nunca se tornaram populares no sentido “pop”. A música deles continua a ser procurada para filmes, aparece na televisão, mas parece sempre uma novidade. Parece sempre música de uma banda que apareceu agora para fazer algo diferente. Talvez porque nunca tenha sido consumida ou reproduzida de forma massificada, quando a ouvimos ainda soa a coisa nova. E quem a ouve agora pela primeira vez, continua a descobrir uma espécie de vanguarda. Quem ouve o Lou Reed hoje pela primeira vez ainda se surpreende, ele ainda assusta e ainda fascina, tudo ao mesmo tempo. Aliás, sempre estive certo de que este livro chegaria a pessoas que sabiam muito pouco sobre o Lou Reed porque o descobriram há muito pouco tempo, que não sabiam que ele era importante.
Para escrever este livro teve a oportunidade de fazer boa parte da pesquisa através daquilo que já apelidou de “grande arquivo de Lou Reed”, fruto de doações de Laurie Anderson. Que arquivo é esse?
É o arquivo da New York Public Library for the Performing Arts, que é uma das instituições integradas no sistema de bibliotecas da cidade. Fica no Lincoln Center, que é, se assim podemos dizer, o templo da alta cultura em Nova Iorque. É onde fica a Metropolitan Opera, é onde a Companhia de Bailado de Nova Iorque atua. Demorou algum tempo até o arquivo ficar disponível ao público. Comecei este trabalho em 2014, só consegui aceder ao arquivo em 2019. Antes disso, viajei pelos Estado Unidos, a fazer pesquisa noutros arquivos. Um na Universidade de Columbia, com muito material dos Velvet Underground, outro na Universidade do Texas. Mas o de Nova Iorque, o que foi doado pela Laurie Anderson, tem algo que o torna extraordinário.
O quê?
A possibilidade de qualquer pessoa o poder consultar. Qualquer um pode entrar na biblioteca, fazer um cartão de visitante temporário, subir as escadas e ouvir horas e horas de gravações de Lou Reed que nunca estiveram em circulação, muitas que eu nunca tinha ouvido. E há cerca de 200 caixas com papéis e outro material que também pode ser pesquisado. Passei quase todo o verão de 2019 naquela biblioteca. Vivo a norte da cidade, um pouco distante, portanto andei uns meses a viver em couch surfing, a dormir aqui e ali, em casas de amigos, enquanto vasculhava literalmente tudo o que estava naqueles arquivos.
Alguma vez chegou a um ponto em que lhe pareceu que estava no meio de demasiada informação? Como é que navegou através de todo esse material?
Um arquivo destes, com este tipo de recursos, funciona como uma bênção e uma maldição ao mesmo tempo. A grande questão é que é muito difícil fugir da possibilidade de ver tudo até ao último detalhe. Quem é que tem a possibilidade de trabalhar informação deste tipo e não o faz de forma obsessiva? E atenção, devo reconhecer que muita informação não era relevante, coisas de contabilidade, recibos de despesas feitas durante digressões, esse tipo de coisas. Tive que ter alguma paciência, porque até nesta documentação mais contabilística apareceram coisas importantes, como documentos sobre licenciamento de música para cinema, televisão, publicidade. Que coisas foram aprovadas, que coisas foram rejeitadas…
Até porque essa era uma fonte muito importante de rendimento para Lou Reed.
Claro. Ele nunca vendeu muitos discos, não era um sucesso de vendas, nunca foi um artista de números desses. Mas fez muito dinheiro a licenciar música. As pessoas queriam muito a música dele. O Lou Reed era tão cool, tão interessante, que muita gente queria ter um pouco disso, queria ter a parte possível dessa coolness, que era a música. E esta papelada comprova isso. Tal como comprova outras coisas fascinantes, como mensagens trocadas por fax entre Lou Reed, a mulher dele na altura, que era também manager, e John Cale ou outros músicos da banda, a propósito da reunião dos Velvet Underground no início dos anos 90. Eles discordavam muito e em muitos aspetos e isso está bem evidente nesses papéis. E correspondência enviada por fãs, muita correspondência vinda de todo o mundo. Pessoas que enviavam desenhos e pinturas, que enviavam poesia, que tinham em Lou Reed uma espécie de confidente, contavam-lhe tudo. Mas também havia cartas de stalkers, coisas assustadoras.
E ele guardou tudo isso.
Guardou tudo. O que também me deixou a pensar… Lou Reed sempre teve fama de ser um tipo pouco simpático, ele conseguia ser muito desagradável com jornalistas, por exemplo, ou para empregados de restaurantes, para os técnicos de som nos concertos. Mas depois tinha este lado, de ser o confidente escolhido por pessoas que não o conheciam de lado nenhum, ou de ser alvo de ameaças de outros anónimos.
Uma das partes fundamentais do livro — e da história de Lou Reed — está na infância, naquele retrato inicial. A forma como ele cresceu, a relação com os pais, os tratamentos de choque por causa da ansiedade e depressão. Quando percebeu melhor essa parte, percebeu melhor também a música dele?
Absolutamente. Os psicólogos costumam dizer que as marcas que guardamos da infância, guardamo-las para sempre. E não é que queira fazer dessas afirmações uma espécie de lei absoluta, mas ainda hoje conseguimos perceber que isso aconteceu com Lou Reed, basta ouvir as letras das canções. Ele escreveu sobre todas as dificuldades que foi enfrentando, as relações familiares, as drogas, as questões de orientação sexual e de género…
Que são, aliás, um dos pontos fundamentais do livro.
Precisamente, porque foram um ponto fundamental na vida de Lou Reed. Crescer como homem queer na Nova Iorque dos anos 50 fez com que ele muitas vezes se sentisse ameaçado e como um forasteiro, numa sociedade onde não tinha lugar. Ele é muitas vezes visto como uma espécie de macho rock’n’roll, com todos os clichés associados a esse tipo de imagem, mas a verdade é bem distinta. A canção mais popular dele nos EUA é, de longe, Walk on the Wild Side. E essa canção é sobre pessoas trans, é sobre pessoas queer. Entrevistei muitas pessoas para fazer este livro e consultei muitas entrevistas que já tinham sido feitas. E a conclusão é sempre a mesma, com toda a gente: Lou era um tipo que vivia uma sexualidade fluída. Na altura talvez não se usassem certas expressões, mas era isso que ele era. Foram várias as pessoas que me falaram de relações muito sentidas e emocionais que ele teve com mulheres trans ou mulheres cisgénero. Relações muito genuínas, muito românticas. Ele era simplesmente uma pessoa muito terna. E pareceu-me que essa era uma parte fundamental da história. Porque o mundo dele era feito de outsiders, de pessoas que não pertenciam, que tinham fraquezas, que tinha errado ou que tinham sido vítimas. E isso também está nas canções que ele escreveu.
Os Velvet Underground existiram durante poucos anos, mas ocupam metade do livro. Porque esta foi a parte mais relevante da vida de Lou Reed, artisticamente falando, pelo menos? Ou é uma escolha feita por um fã?
Posso dizer enquanto fã e enquanto crítico: o que os Velvet Underground fizeram vai sobrepor-se ao teste do tempo como pouca música vai conseguir. E é de longe o melhor material que Lou Reed compôs. E isso não é mau nem é bom, é o que é e não é vergonha nenhuma face ao que ele fez depois. E ele próprio sabia disso e reconhecia-o. Ele regravou canções que escreveu para os Velvet Underground em várias ocasiões. Os seus primeiros álbuns a solo eram feitos de muitas canções dos Velvet. E tocou-as ao vivo a solo inúmeras vezes, ao longo de toda a vida. Muitas vezes, é no início da carreira, é durante os primeiros anos de atividade criativa que os artistas fazem a sua melhor obra. Não é que Lou Reed não tenha feito mais nada de interessante, nada disso. Por exemplo, a música experimental para teatro que ele trabalhou ao longo dos anos continua a deixar muita gente sem saber como reagir. Mas nunca mais se repetiu a ação que aconteceu entre as décadas de 60 e 70, isso não. Depois disso, surgiu uma espécie de paz, de tranquilidade.
Aliás, a parte final do livro mostra um Lou Reed que parece estar a querer distanciar-se de uma personalidade que mais parece uma personagem, que não é a pessoa real que ali está. Houve uma altura em que ele só queria ser um tipo banal a passear o cão em Nova Iorque?
Em parte, sim. Mas, por outro lado, havia uma eterna insatisfação juvenil nele. O Hal Willner, que era grande amigo de Lou Reed, chegou a dizer-me que nunca conheceu ninguém tão convicto em desejar não morrer. A arte dele, o rock’n’roll, apareceu-lhe na adolescência e esse sentimento de sermos eternos, que só temos na juventude, nunca o abandonou. Também foi isso que o fascinou tanto na Laurie Anderson: de repente, ele percebeu que era possível ser artista sem limitações em qualquer idade. Ela fazia o que tinha a fazer. Estava onde tinha de estar. E ele adorava isso. Ele também, queria um pouco disso e não de festivais e grandes palcos. Até porque ele tinha questões de saúde que tornavam esse tipo de vida complicada. Nos últimos tempos, ele nem tocava nos EUA, só na Europa. Porque os europeus o tratavam melhor. Lou dormiu com muita gente, bebeu muito, tomou muitas drogas, fez tudo em excesso. E a certa altura isso torna-se muito difícil de manter.
Laurie Anderson marcou uma mudança e uma etapa na vida e Lou Reed, tanto como a formação dos Velvet Underground ou a edição de Transformer?
Totalmente. Não há qualquer dúvida em relação a isso. E ela apareceu na vida de Lou quando ele fez uma pausa em tudo, quando deixou a segunda mulher, quando deixou o management, quando deixou os Velvet Underground, que tinham acabado de reunir-se. Pela primeira vez, estava numa relação com alguém que era artista por nome próprio, com valor, com importância e influência. E esse equilíbrio de poderes deu-lhe liberdade. Deu aos dois, aliás. O trabalho dele tornou-se muito interessante e desafiante.
Como chegou aos detalhes do fim da vida de Lou Reed e como foi escrever essa parte mais dolorosa?
Foi muito emocional. Nunca fui próximo dele, mas ao passar tanto tempo dedicado a uma pessoa, ao chegar a essa parte e a ouvir histórias de pessoas íntimas, foi emocional. Mas o crédito é de todas essas pessoas que quiseram partilhar histórias, especialmente Kevin Hearn, que foi o líder da banda de Lou Reed nos últimos tempos, passou muito tempo com ele no hospital e contou-me muitos detalhes sobre o que aconteceu nos últimos meses. Também Jenni Muldaur, uma amiga que me mostrou uma playlist que ele ouvia nessa altura, com Frank Ocean, Radiohead… e a Laurie Anderson, que escreveu coisas muito pessoais sobre os últimos dias deles juntos em vários locais. Portanto, fui muito pela informação recolhida com todas estas pessoas. O mérito é todo delas.