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Octavio Passos/Observador

Octavio Passos/Observador

Luca Argel: "Já não é uma moda, existe um circuito de samba a acontecer no Porto"

Prestes a lançar o seu terceiro álbum a solo, “Conversa de Fila”, Luca Argel fala de poesia, do samba enraizado no Porto e do atual cenário brasileiro, numa viagem pela sua criação e amadurecimento.

Depois de mais um ensaio para o concerto na Casa da Música, onde a 6 de março lança oficialmente o seu novo trabalho, Luca Argel liga e diz que está a chegar. Vem a pé porque não conduz, mas não se importa, caminhar pelas ruas do Porto dá-lhe “qualidade de vida”. Chega de viola às costas e conversa sem pressa.

Poeta, compositor e cantor natural do Rio de Janeiro, chegou ao Porto há sete anos para estudar literatura e rapidamente se apaixonou pela “disponibilidade e generosidade” da cidade. Na bagagem trazia dois livros de poesia editados e o gosto pela música, do rock ao samba. Fundou o grupo Samba Sem Fronteiras, numa altura em que este estilo musical era ainda muito tímido no Porto, e aventurou-se em nome próprio, fazendo parte do panorama cultural da cidade. Luca conta histórias do dia a dia de uma forma simples, direta e sem truques. É também com simplicidade que se apresenta ao público num registo de voz e violão, que agora inclui pela primeira vez percussão feita a partir de objetos de cozinha. A meio da entrevista somos obrigados a mudar de sala e é precisamente numa cozinha que terminámos a conversa, afinal é lá “que o samba acontece”.

[“Anos Doze”, mais recente single do novo álbum a editar por Luca Argel:]

Como é que a música apareceu na sua vida?
Eu não venho de uma família de músicos, não tenho ninguém da família a tocar nenhum instrumento, em minha casa ouvia-se música brasileira, mas não com um ouvido profissional. Tinha era um professor de música no infantário, o Hamilton Catette, até hoje é meu amigo, que fazia composições para crianças e eu amava as músicas dele. Foi com ele que tive o meu primeiro contacto com esta arte e isso mexeu muito comigo. Não tive logo interesse em tocar nenhum instrumento, isso foi algo que surgiu mais tarde na adolescência, quando comecei a estudar guitarra e a descobrir bandas de rock. A minha primeira banda preferida foram os Red Hot Chili Peppers. Lembro-me de os ver tocar ao vivo em 2001 no Rock in Rio, no Brasil.

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Não é estranho um sambista começar no rock?
Talvez, mas passei anos a ouvir rock, aquelas bandas clássicas como os The Beatles, Led Zeppelin, Pink Floyd. Tinha até uma banda estilo grunge no colégio, foi uma fase. Depois fui estudar música para a faculdade, foi uma coisa natural, nem passei pela crise de não saber que curso tirar. O meu objetivo inicial era viver como arranjador ou compositor, nem tanto como intérprete.

Foi nessa altura que também descobriu a poesia?
Eu já adorava escrever, lembro-me que o meu primeiro poema foi um soneto sobre a perfeição e foi publicado no jornal da escola. Vinícius de Moraes também escrevia muitos sonetos, aliás foi um dos primeiros poetas que li. Apesar de hoje ter algumas ressalvas relativamente à sua obra, continua a ser uma grande inspiração para mim. Quando terminei a faculdade, inscrevi-me numa oficina de poesia, depois publiquei alguns poemas num suplemento literário do jornal O Globo e foi aí que uma editora me convidou para publicar o meu primeiro livro, Esqueci de Fixar o Grafite, em 2012. Nesse mesmo ano viajei para Portugal para tirar o mestrado em literatura, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Porque escolheu o Porto?
Tinha cá um amigo há dois anos, o Pedrinho Mendonça, que dava aulas de música. No primeiro fim-de-semana em que cheguei fizemos juntos uma roda de samba na Praça dos Poveiros e assim surgiu o grupo Samba Sem Fronteiras. Não foi uma roda minimamente organizada, não houve muita comunicação, foi tudo muito espontâneo, mas ainda foi bastante gente.

[Samba Sem Fronteiras:]

Lembra-se das primeiras músicas que tocaram?
Mais samba de raiz, o que não é muito diferente do que fazemos até hoje. Geraldo Pereira, Adoniran Barbosa, Nelson Cavaquinho, os mesmos compositores antigos que sempre gostamos. No início eu não cantava, tocava baixo, mais tarde num ensaio pedi para ser a voz principal e assim ficou. Atualmente o grupo mantém três pessoas da formação original, somos cinco no total.

Quando sentiram o boom do samba no Porto?
A roda começou a gerar um interesse geral, havia muita curiosidade e vontade de ter grupos de samba em bares da cidade. Começámos a tocar no Baixaria, que, entretanto, já fechou, no Rua, onde tocamos até hoje, e depois surgiram convites para eventos particulares, carnavais e festivais fora do Porto. Em 2014 produzimos um evento de carnaval de quatro dias no Salão Olímpico, em Miguel Bombarda, que foi um enorme sucesso, fizeram até uma reportagem para a Globo Internacional. Aí sentimos que havia pessoas que nos seguiam para todo o lado, não só brasileiros, mas também portugueses. Percebemos que existia um potencial para o samba se tornar uma coisa mais aberta e universal, e não apenas direcionado para o público brasileiro. Nesse mês consegui pagar as minhas contas com o dinheiro que recebi do cachet e isso foi um marco. A partir desse momento pensei que se calhar poderia viver disto.

"O samba tem a particularidade de ser uma música que se ouve ao vivo porque tem uma energia específica. Muito do valor do samba depende desse calor, dessa interação entre os músicos, por isso é que se faz em roda com o público à volta, para que todos se possam comunicar através do contacto visual."

Em 2018 lançaram o vosso primeiro álbum de originais. Como foi esse caminho?
Foi um caminho longo, não pela criação em si, porque o grupo é formado por compositores, mas pela dificuldade na realização de pagar um estúdio, a produção de um disco, que não é barata, ainda mais uma edição em vinil, que queríamos muito fazer. Foram anos de amadurecimento das nossas composições. O samba tem a particularidade de ser uma música que se ouve ao vivo porque tem uma energia específica. Muito do valor do samba depende desse calor, dessa interação entre os músicos, por isso é que se faz em roda com o público à volta, para que todos se possam comunicar através do contacto visual. Esta formação tem uma história e um sentido, transportar isso para uma gravação em estúdio foi um grande desafio.

Que mensagem quiseram passar?
A mensagem principal está no nosso próprio nome: samba sem fronteiras. Somos um grupo de samba que não surgiu no Brasil e tem essa particularidade de estar inserido num outro país que, apesar de falar a mesma língua, não tem as mesma raízes musicais. Isto pode não estar muito explícito no disco, mas quase todas as músicas têm uma componente política que esbarra na ideia de emigração, de viagem, de aventura, nas dificuldades que encontrámos nesse percurso, no preconceito que enfrentámos também. Tudo isto transparece de uma forma muito natural.

Quando sentiu a necessidade de desenvolver um projeto a solo?
Eu tenho interesses muito dispersos e senti necessidade de criar um trabalho paralelo, onde eu pudesse ter mais autonomia e mais controlo. Não comecei pelo samba, o meu primeiro disco foi de música eletrónica. Aí senti falta de experiência em produção e em trabalhar sozinho, os instrumentos eram muito pesados, tinha dificuldade em transportá-los por isso acabei por não dar muitos concertos. No disco seguinte, Bandeira, apostei na guitarra e na voz, assim só dependia de mim. Foi um trabalho bem mais popular, teve repercussões muito maiores e pela primeira vez assumi a identidade do samba no meu trabalho a solo. A identidade do samba é algo que eu respeito, não me acho um representante dele, sou um entusiasta. O samba é uma linguagem que comunica muito bem com as pessoas, musicalmente e poeticamente, tem um carisma natural e para mim, que sou compositor, isso é uma ferramenta brutal. Eu uso o samba como uma forma de comunicação mais forte.

Luca divide-se entre o projeto a solo, o coletivo "Samba Sem Fronteiras", a dupla "Ruído Vário" e um programa de rádio. Foto: Otávio Passos/Observador

Octavio Passos/Observador

Conversa de Fila é o seu terceiro disco. O que traz de novo?
Ele é uma continuação do Bandeira, há uma coerência entre eles. A base continua a ser o samba, a diferença maior é a introdução da percussão, feita pelos Carlos César Mota. Senti essa necessidade, primeiro para ter alguma novidade, mas também achava interessante incluir elementos mais dançantes nos concertos. Os instrumentos de percussão que usamos são muito incomuns, uma caixinha de fósforos, uma faca no prato, latas, garrafas ou até uma frigideira. São objetos usados como instrumentos. Como o samba é um estilo que nasceu num ambiente doméstico, em fundos de quintais, dentro de cozinhas, é normal utilizar estes objetos do quotidiano incorporados na própria banda, por isso eu quis trazê-los para este disco e recuperar esta tradição. Tudo isto também combina com a ideia de mobilidade que gosto de assumir desde o Bandeira, são instrumentos que eu coloco facilmente numa mochila.

Como é o seu processo criativo?
Tento fazer a letra e a melodia ao mesmo tempo, há uma cola entre elas que torna o cantar mais natural, torna as letras mais fáceis de memorizar. Quando ambas nascem juntas, o resultado final soa mais harmonioso. Pode surgir de uma frase que oiço, de um filme, de um livro ou de um poema que eu leio, de uma outra música. No Conversa de Fila, as músicas surgiram de situações que eu presenciei, o próprio tema que dá nome ao disco foi um caso claro. Eu estava numa fila de embarque para um voo para os Açores, uma senhora deixou cair um documento que ia usar para embarcar e não percebeu. A pessoa que estava à minha frente encontrou o documento no chão, saiu do lugar e foi olhando para a cara das pessoas e para a fotografia do documento até encontrar a dona. A senhora ficou super agradecida e eu quando me sentei no avião já tinha metade da música feita na minha cabeça. “Natal, Natal”, por exemplo, foi o primeiro single deste disco e escrevi a letra na noite de Natal de 2017 que passei no Rio. Estava, claro, muito calor, então comecei a pensar como é curioso que a mesma festa na mesma época do ano tenha temperaturas completamente diferentes. A comida, as roupas, tudo muda só pela questão do clima. No Brasil acabam por imitar esse imaginário do pai Natal, do pinheiro, da neve, das renas, da meia e fica tudo um pouco ridículo. Essa caricatura e contradição originou o vídeo clip da música, que foi gravado lá.

O que tem preparado para o concerto na Casa da Música?
Dia 6 de março será o lançamento oficial, vou tocar o disco inteiro, não necessariamente pela mesma ordem do álbum, vou recuperar algumas músicas do Bandeira, que dialogam entre si, e versões acho que só vou tocar uma, “Os Doze Anos” do Chico Buarque, pois é o tema que inspirou o meu último single “Anos Doze”. Tenho já programadas também algumas datas em Alijó, Coimbra, Ponte de Lima, Lisboa, Viseu e Felgueiras.

"O samba é uma linguagem que comunica muito bem com as pessoas, musicalmente e poeticamente, tem um carisma natural e para mim, que sou compositor, isso é uma ferramenta brutal."

Para quando um próximo livro de poesia?
No segundo semestre do ano talvez saia um novo, está pronto e com a editora fechada, estou à espera para ver a capa, que será ilustração. Vai chamar-se Fui ao Inferno e Lembrei-me de Ti, tem 33 poemas, que é a idade de Cristo.

É responsável por um programa na Rádio Universitária do Minho. Como surgiu essa oportunidade?
Eu tinha um podcast de música portuguesa, chamado “Chateando Camões”, era uma coisa pequena que colocava na internet mais a pensar nos meus amigos do Brasil que não conhecem nada de música portuguesa, uma espécie de playlist comentada. Depois aconteceu um convite por parte da RUM para fazer um programa de samba aos domingos de manhã. O “Samba de Guerrilha” é informativo, tem sempre um tema diferente, que pode ser um compositor, uma comida, um assunto atual, enfim, e eu vou passando várias faixas que dialogam com esse tema.

“Ruído Vário” é o projeto que tem com a Ana Deus e que continua na estrada. Fale-me dele.  
Eu já conhecia o trabalho da Ana, tínhamos inclusive tocado juntos, ela recebeu um convite da Fundação Fernando Pessoa para desenvolver um projeto musical usando os poemas de Pessoa e lembrou-se de me incluir. Foram meses de criação, ensaios e preparação, onde escolhemos vários poemas e escrevemos juntos músicas para esses mesmos textos. A apresentação foi em novembro de 2017 e logo depois surgiu a possibilidade de editar as músicas. Ainda hoje continuamos na estrada, porque Pessoa é infinito. No futuro podemos pegar noutros poemas dele, noutras facetas, ou até num outro poeta, tudo depende se surgir algum convite nesse sentido.

[Ruído Vário:]

Como é a sua relação com o Porto?
Tenho uma relação de gratidão, foi uma cidade que me recebeu a mim, ao meu trabalho e às minhas ambições com interesse e sempre me estimulou. Sempre me deram um feedback muito bom e generoso, é uma cidade fácil de viver pelas suas dimensões. Como gosto muito de caminhar, é uma cidade que me deixa fazer uma rotina só a andar a pé e isso dá-me muita qualidade de vida. Em termos artísticos, o Porto tem um interesse especial pelo novo que não é óbvio, que gera alguma estranheza ou que é diferente. As pessoas dão valor ao que não conhecem muito bem, ao que é, de certa forma, inesperado. Há locais onde a reação é exatamente inversa. Essa disponibilidade para se surpreender, para descobrir coisas novas, existe e ensinou-me muito como artista e como público.

No tema “Gentrificasamba”, que traz do disco Samba Sem Fronteiras para este Conversa de Fila, há uma crítica à explosão turística na cidade. Sente essa mudança?
Sim, a transformação do Porto em função do turismo é uma coisa que me incomoda. O turismo em si não me incomoda, mas chateia-me que a cidade lhe esteja a dar prioridade em vez de olhar para os seus próprios moradores. Felizmente ainda não tive nenhum problema no meu prédio com pessoas despejadas para o vender, mas conheço muita gente que já passou por isso. Sinto isso também no meu dia a dia porque há lugares que eu frequentava e que deixaram de existir, principalmente associações que não tinham fins lucrativos, conseguiam manter-se pelas rendas baixas e foram encerradas para rentabilizar prédios e fazer coisas que a cidade já está cheia, como restaurantes gourmet ou hotéis. Em algum momento isto vai estagnar, mas acho que essa lógica desenfreada de especulação ainda tem muito pavio para queimar. Tenho pena porque já muita coisa se perdeu e não se recupera mais, mas acho que a longo prazo o Porto terá a força suficiente para se reinventar.

[“Ninguém faz a festa”:]

O samba é uma moda no Porto ou veio mesmo para ficar?
Penso que já deixou de ser uma moda, não sei se esta intensidade toda se mantém a longo prazo, mas acho que já está mais ou menos estabelecido que existe um circuito de samba a acontecer no Porto. Aqui o samba existe de uma forma harmoniosa, com base na amizade e na admiração mútua e isso é maravilhoso. Os grupos conhecem-se, interagem, tocam em conjunto e têm a consciência que o destaque de um grupo vai beneficiar todos os outros. Estamos a falar de um género musical que não é nativo de Portugal e que as pessoas às vezes conhecem de uma forma enviesada ou têm algum tipo de preconceito. No Porto todos os grupos são diferentes, até podem ter o mesmo público, mas não são concorrentes. Dentro desse circuito, talvez o próximo passo seja a aposta numa produção mais autoral, uma vez que os grupos tocam maioritariamente versões.

Irás apresentar este disco no Brasil? Como vês a situação política e social atual?
Não tenho nenhuma viagem marcada, mas é uma das minhas ambições ir lá com este novo projeto. É quase certo vou voltar este ano. Continuo a ter lá familiares e amigos e vejo tudo muito instável, as pessoas estão receosas, não está um clima nada bom. Há muita insegurança, muita perseguição ideológica, violência e racismo. Hoje vejo o Brasil com pessimismo. Por mais que se questione a validade das últimas eleições, porque o Lula foi impedido de se candidatar ou pelas fake news que influenciaram os resultados, na prática as pessoas realmente votaram em Bolsonaro e no seu discurso, o que é mais triste e assustador. Isso é difícil de disputar. Vou com certeza ver um Brasil diferente do último Natal de 2017, mas não me consigo preparar muito. Consigo mentalizar-me, mas depois quando chego lá é sempre uma surpresa.

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