Comecei a escrever estas linhas na sala de jantar. Pousei o computador na mesa, puxei uma cadeira, sentei-me. As cadeiras são seis, mais dois cadeirões largos com braços. São móveis antigos, com alguns sinais de bicho. Comprámos o conjunto numa loja de antiguidades há quase quinze anos e tem sobrevivido admiravelmente às sevícias que duas crianças lhe impõem todos os dias. A madeira é trabalhada. As pernas das cadeiras e da mesa são arqueadas. Começam numa folha de acanto e terminam num pé delicado. As cadeiras têm assentos amplos e almofadados, costas direitas. No topo têm um ornamento assimétrico esculpido na madeira, com flores a envolver uma concha. Quando me esqueço daquele pedaço de madeira saliente e tento encostar a cabeça, aquilo espeta-se na minha nuca. O ornamento e as costas direitas não me deixam reclinar, impõem uma posição formal. No fundo, aquele ornamento sou eu, quando repito todos os dias ao jantar – sentem-se direitos, estão à mesa!
Se estão a ler este artigo, calculo que também estejam sentados algures. Pode ser numa cadeira semelhante às minhas, pode ser no chão, na areia, na relva, pode ser num muro, pode ser em qualquer outro assento entre os milhões de cadeiras, sofás, poltronas e bancos que existem pelo mundo fora. Há, no entanto, alguma probabilidade de estarem sentados na cadeira de plástico de que vos quero falar.
É impossível que não a conheçam, porque ela é um elemento inevitável do vocabulário visual universal. Está em todos os continentes, em todos os lugares. Diria mesmo que é impossível que nunca se tenham sentado numa. Aparece, normalmente, em branco. Já a devem ter encontrado sozinha, à entrada de um parque de estacionamento empoeirado de uma praia, coberta com uma toalha desmaiada pelo sol, onde se senta o porteiro a cobrar dois euros pela entrada. Ou quatro a quatro numa esplanada, à sombra de um chapéu de sol encarnado da Buondi, o passeio empedrado a desequilibrar as pernas das cadeiras. Ou às dezenas, no centro de vacinação, todas em linha, algumas ainda com códigos de barras que ninguém se lembrou de tirar (os códigos de barras que as pessoas não descolam das coisas davam um estudo sociológico). 1,5 metros rigorosos de distância entre cada uma, um exército disciplinado de plástico branco assético, fácil de desinfetar, em posição de combate à pandemia da Covid-19. É possível que tenham algumas em casa, ou que as tenham usado nas férias, dispostas no terraço em frente a uma mesa. Toalha impermeável amarela às flores, salada de tomate, alface e cebola, batatas cozidas, as crianças cheias de areia nos pés, sentadas inquietas nas cadeiras, tudo à espera do peixe grelhado comprado na lota nessa manhã.
Apesar de conhecerem esta cadeira, possivelmente nunca pensaram nela nem sabem o seu nome, por isso permitam-me que faça as devidas apresentações. Caros leitores, esta é a Monobloco.
A Monobloco é, como o próprio nome diz, feita de um bloco só, sem qualquer encaixe. De polipropileno, produzida através da injeção de plástico num molde. É mono em outros sentidos, também. Monocromática, monolítica, monogramática – e, segundo muitos, monótona e monopolizadora.
A cadeira Monobloco é tão vulgar que usá-la é muitas vezes sinónimo de falta de esforço. O próprio nome com que a batizaram revela que ninguém quis perder muito tempo a pensar numa coisa mais inspirada. Usar esta cadeira é para muitos o equivalente a escrever em Times New Roman no Word, comprar estantes Billy na Ikea, servir mousse de chocolate de pacote. Na Suíça, chegou a ser proibida em alguns espaços. Em Lisboa, já não a vê com muita frequência: os cafés e os restaurantes plantam nas suas esplanadas cadeiras Adico pintadas na mesma cor do seu logotipo, normalmente com a intenção de aproveitar de forma fácil um design vernáculo, um pouco como tem acontecido com a marketização forçada da sardinha em lata e do pastel de nata.
A Monobloco tem sido obrigada a assumir um papel de vilã em muitas histórias. Na história do consumo no séc. XX, na história da globalização, na história do plástico, na história do design com impacto ambiental. Raramente vê a sua própria história contada, e, quando vê, é de forma pouco consistente.
A verdade é que a história da Monobloco é ela própria pouco consistente. A partir da década de 40 do séc. XX, muitos designers tentaram encontrar uma fórmula que lhes permitisse produzir uma cadeira de um só elemento, sem uniões ou encaixes. O material mais promissor para superar esse desafio era o plástico. Após a criação dos primeiros plásticos, Ray e Charles Eames, Eero Saarinen e Robin Day, entre outros, fizeram as primeiras cadeiras com assentos de plástico moldado, mas usaram pés de metal. Em 1946, D.C. Simpson concebeu uma cadeira toda em plástico, feita de um elemento só, mas a tecnologia não lhe permitiu massificar a produção. Outras cadeiras vieram: a cadeira Bofinger de Helmut Bätzner, em 1964, a Chair Universal 4867 de Joe Colombo, em 1965, a cadeira Panton de Verner Panton, em 1968, a Selene de Vico Magistretti, no mesmo ano. Nenhuma dessas cadeiras, todavia, se assemelha à Monobloco corrente que hoje conhecemos. A cadeira Panton é esguia e escultural, as cadeiras de Colombo e Magistretti são quadradas e volumosas, as cadeiras de Simpson e Bätzner mais leves, mas também elas de linhas muito direitas.
Há quem defenda que a forma da Monobloco foi pensada para otimizar a produção e gastar a menor quantidade possível de plástico. Outros dizem que foi inspirada nas cadeiras de jardim francesas. Mas o que são cadeiras de jardim francesas? São as conhecidas cadeiras bistrô de vime da Maison Drucker, que enchem as esplanadas dos cafés parisienses? São as famosas cadeiras de metal da Fermob do Jardim do Luxemburgo? Ou são as cadeiras da Tolix, que desde a Exposição Universal de Paris de 1937 estão um pouco por todo o lado? A Monobloco não tem semelhanças evidentes com nenhuma delas.
O desenho mais aproximado é, na verdade, o do francês Henry Massonnet, que criou em 1972 uma cadeira monobloco de plástico, a Fauteuil 300. A linha das costas, as pernas, o assento e os braços da Fauteuil 300 são a base da cadeira Monobloco que hoje está em nossas casas. Mas o design atual da Monobloco foi desenvolvido pela Grosfillex e pela Allibert, duas empresas francesas fabricantes de mobiliário de jardim que nos anos 80 começaram a produzir em massa a cadeira em resina branca tal como a conhecemos. Ainda assim, não se sabe o nome de quem desenhou a cadeira, nem por que razão se consolidou na sua forma atual.
Tudo (ou quase tudo) aquilo que acabei de vos contar podem encontrar num dos muitos e variados artigos que já foram escritos sobre a Monobloco. Ou no recente filme dedicado só a ela, do alemão Hauke Wendler, que dará origem a um livro ainda este ano. É uma história com uma agenda, que se foca no material da cadeira e na forma como a sua produção e o seu consumo se disseminaram por todo o lado.
Aquilo que vos proponho neste artigo não é nem mais uma imolação de uma sociedade asfixiada em plástico, nem mais uma viagem à volta do mundo em oitenta cadeiras. É uma viagem no tempo.
Para isso, basta olhar para a Monobloco. Eu sei que é difícil, mas vou pedir-vos para ignorarem toda a carga valorativa, provavelmente negativa, que a vossa memória acumulou sobre esta cadeira. Tentem olhar para ela apenas como um objeto que está à vossa frente.
Esta cadeira pode chamar-se Monobloco, mas não é um mono. É esguia, mas também voluptuosa. Na sua versão mais conhecida, tem as costas em semicírculo na parte superior, uma curva ampla e cheia, que depois desce em direção ao assento, apertando a cintura. As costas da cadeira têm aberturas. Tornam a cadeira mais leve, tanto visualmente como em termos de peso. E permitem usar menos plástico. O padrão das costas é muitas vezes em forma de concha, finas tiras de plástico que se desenvolvem até ao topo das costas. Para mim, essas tiras parecem as tiras de barbatana de baleia usadas nos espartilhos. Em algumas cadeiras, as costas são mais côncavas, noutras, mais direitas. Nas cadeiras com costas côncavas, as tiras das costas são flexíveis, moldam o corpo de quem se senta. O assento, por vezes, replica as aberturas das costas, deixando passar a chuva e impedindo a acumulação de água em cima da cadeira. É mais estreito junto às costas e alarga progressivamente para a frente.
A cadeira está também ligeiramente inclinada para trás, fazendo o nosso corpo deslizar até ao fundo do assento. É como se tivesse ação: primeiro deixa-nos escorregar na direção das costas, que nos recebem, e depois molda-nos com as suas tiras flexíveis. Os braços, finos, nascem a meio das costas, e não chegam até ao limite da frente do assento. O sítio onde os braços da cadeira dobram fica precisamente no sítio onde os cotovelos dobram, quando ali pousamos os nossos próprios braços. A Monobloco é um abraço ao contrário, ajusta-se ao nosso corpo em todas as superfícies dele que toca. As pernas abrem-se ligeiramente para o exterior, dando mais estabilidade à cadeira, mas dando-lhe também mais elegância. Terminam, normalmente, numa dobra do plástico junto ao chão, o que não só reforça a sua solidez como lhe dá um detalhe interessante: pés, pequenos e graciosos.
Moldura redonda como um decote generoso, a brotar de uma figura afinada por tiras de espartilho, ancas largas e projetadas para a frente, pés pequenos e elegantes. Estamos a falar da Monobloco, mas também podíamos estar a falar de uma senhora da corte francesa do séc. XVIII.
Quem não conhece, por exemplo, Madame de Pompadour, amante oficial de Luís XV entre 1745 e 1751? Procurem os seus retratos pintados por François Boucher ou Maurice Quentin de La Tour, e comprovem. Busto delicado, cintura elegantemente delineada por corpetes ou espartilhos, vestidos amplos a evidenciar as ancas, poses reclinadas, pequenos sapatos forrados a seda pastel a espreitar por debaixo de metros de tecido tufados. Madame de Pompadour, nascida Jeanne-Antoinette Poisson, feita Marquesa de Pompadour pelo Rei, era tudo isso, mas era também muito mais. Relacionou-se com Voltaire e Montesquieu, cruzou-se várias vezes com Rousseau, apoiou a Encyclopédie de Diderot e d’Alembert, foi mecenas de pintores e joalheiros, teve um papel fundamental na criação da célebre fábrica de porcelana de Sèvres. Viveu em vários chateaux, bem como numa casa em Paris, atualmente o Palácio do Eliseu, residência oficial do Presidente francês. Decorou e redecorou repetidamente todas essas propriedades, comprando mobiliário sem poupanças.
Como bem explicou Leora Auslander, que escreveu um livro sobre gosto e poder na França Moderna, o mobiliário era uma forma de representação de poder no Antigo Regime francês. A mobília do Rei e da sua entourage, e os restantes objetos utilizados por ele, eram mais do que uma longa manus da sua imagem. Eram parte dela, estavam no centro de um fetichismo, de um culto do objeto, cujo único propósito era fortalecer a monarquia. Quando subiu ao trono, Luís XV mandou vender a mobília do seu antecessor, Luís XIV. Havia que impor um novo poder. A linguagem visual do reinado de Luís XV abandonou o peso barroco e monumental de Luís XIV, continuando o estilo mais leve que surgiu durante o período da Regência. O mobiliário de Luís XV era mais elegante, mais curvo, mais decorado. Era voluptuoso e algo frívolo, com decorações inspiradas na natureza, folhas, flores, conchas. O estilo Rococó que o caracterizou, e cujo nome provavelmente vem de uma mistura de rocaille (pedra) com coquille (concha), floresceu até Luís XVI, quando um neoclassicismo mais sério o substituiu. Madame de Pompadour, e outras mulheres importantes nesse período, foram agentes cruciais na promoção e na disseminação do Rococó nas artes e no mobiliário, muito embora a primeira coisa que venha à cabeça quando se fala de cadeiras e de Madame de Pompadour seja a cadeira-elevador que estava ao seu serviço em Versalhes, e que lhe dava acesso direto aos aposentos do Rei.
É fácil ver a decadência do Antigo Regime, a promiscuidade e a corrupção das suas cortes e dos seus salons, o papel das mulheres nesses equilíbrios e desequilíbrios de poder. Mas este período também é conhecido pelo desenvolvimento criativo e inovador da arte e do design, frequentemente sob influência dos elementos femininos da corte. O abandono da rigidez e da formalidade de Luís XIV trouxe também a ideia de que o mobiliário devia ser confortável, sobretudo para as mulheres, e que por isso devia ser adaptado a cada necessidade. A bergère (cadeira de braços sem abertura entre os braços e o assento), a marquise (bergère mais larga, onde por vezes cabiam duas pessoas em, digamos, momentos de maior intimidade), a convalescente (bergère baixa), a boudeuse (bergère de braços direitos e rígidos), a voyeuse (cadeira com braço no topo das costas, usadas pelos Messieurs que observavam os jogos de cartas, sentando-se virados ao contrário, de pernas abertas, os braços pousados no topo da cadeira), a voyeuse à genoux (uma voyeuse apropriada para mulheres, de assento mais baixo, permitindo que as Mesdames se ajoelhassem na cadeira em vez de abrirem as pernas), a obligeante (bergère com braços alargados para acomodar os vestidos), a duchesse (bergère transformada em chaise longue, para posições mais reclinadas) ou a fauteuil à coiffer (cadeira com um entalhe na linha das costas, para facilitar os penteados das senhoras) são apenas algumas das inúmeras cadeiras que floresceram nesta época. Podiam ter funções diferentes, mas quando conviviam umas com as outras eram todas feitas com a mesma madeira trabalhada, estofadas com os mesmos tecidos, munidas de pés arqueados e elegantes, tudo replicado nos painéis das paredes e nos cortinados. Cada uma tinha também o seu lugar numa sala. A ideia de Baudrillard, de que é possível identificar um discurso só na mera organização de cadeiras num espaço e nas posturas corporais que os seus utilizadores assumem, não podia ser mais verdadeira neste período. Basta ver fotografias dos aposentos de Madame de Pompadour em Versalhes para se perceber que há uma corte ensaiada em madeira trabalhada e tecidos adamascados e uma conversa entre cadeiras subjacente a essa coreografia.
Um exemplo importante de alteração no design para aumentar o conforto das mulheres encontra-se na fauteuil à la Reine e na fauteuil en cabriolet. A fauteuil à la Reine é uma cadeira de braços, com costas direitas. A fauteuil en cabriolet é semelhante, mas mais pequena e leve, com costas côncavas, mais informal. São duas cadeiras irmãs, com molduras de madeira trabalhada, estofos ricamente decorados, pernas curvadas, assentos generosos. Mas, a partir de Luís XV, ambas viram os seus braços recuar, não indo até ao limite do assento, que se alargou para a frente. Este novo design permitia acomodar com mais conforto os panniers, estruturas que as senhoras usavam por baixo dos Robes de Cour, acentuando as ancas, e que se tornaram mais frequentes a partir de 1730. Vários daqueles retratos de Madame de Pompadour que acima referi mostram fauteuils à la reine ou en cabriolet, sendo visíveis muitas vezes tufos de tecido a brotar das aberturas das cadeiras.
O mobiliário Luís XV é indissociável do papel e da influência das mulheres neste período. Aliás, olhando bem para muitos retratos da época, é impossível não pensar que as cadeiras eram também representações antropomórficas da figura feminina. Os ornamentos esculpidos no topo das costas das cadeiras como a renda que roça delicadamente um decote, os tecidos que as cobriam, os braços ricamente estofados como as mangas de um vestido, as pernas de gazela na continuação de um assento amplo, terminando em pequenos pés, cobertos com sapatos delicados. Devo dizer que não consigo olhar para os pés de uma fauteuil Luís XI e não me lembrar da Madame escandalosa do baloiço de Fragonard, Les Hasards Heureux de l’Escarpolette. Aqueles pezinhos mimosos a calçar uns sapatos cor de rosa com rendas, um deles já no ar, atirado com graciosidade por uma perna roliça, um relance de pele dissoluta acima da meia branca. Uma face virginal e despudorada, emoldurada por laços e fitas, o ar meio tolo do marido que empurra o baloiço, o amante enfeitiçado, de olhar lascivo dirigido à senhora, ou melhor, a partes da senhora de que não é próprio falar-se neste artigo.
Agora, olhem novamente para a Monobloco. Sou só eu, ou a Monobloco tem sérias semelhanças com uma fauteuil en cabriolet Luís XV? A moldura lisa que circunda as costas e o assento, deixando o padrão no meio, o desenho das costas que segue o desenho do assento, os braços curvos e recuados, o assento projetado para a frente, as pernas finas que se estendem para fora, terminando num pequeno pé. Será mera coincidência que as costas da Monobloco tenham normalmente um padrão de concha gigante, naquelas tiras de espartilho? Não será, de certa maneira, uma alusão à coquille típica do Rococó?
A partir do séc. XX, novos materiais e novas tecnologias permitiram a criação de peças de mobiliário nunca antes vistas. Mas também houve alguma revisitação do passado. Muitos designers têm vivido de trocadilhos com a história, como Philippe Starck (também ele francês, curiosamente). Goste-se ou não, Starck é conhecido por usar formas históricas e por traduzi-las para uma linguagem contemporânea. As cadeiras Louis Ghost e La Marie são exemplos disso. A Monobloco pode bem ser mais uma manifestação dessa espécie de revivalismo material nacionalista: tem origem em fábricas francesas, e tem como principal antepassada um cadeira desenhada por um francês, Massonnet. Não é impossível, parece-me, a sugestão da forma de uma fauteuil Luís XV na Monobloco. Não é, certamente, uma sugestão intencional e explícita, como acontece com as cadeiras de Starck. Nem sei se, a ter existido, terá sido consciente. A Monobloco tem traços de fauteuil, mas não é uma cópia fiel em plástico de uma cadeira Luís XV. De certa maneira, é mais sofisticada do que uma simples transferência de matéria-prima. Não é apenas uma Madame em polipropileno da corte francesa do Antigo Regime. É uma leitura moderna de um design tipicamente francês, uma fauteuil en cabriolet do séc. XX.
Se uma cadeira Luís XV representa o poder real do Antigo Regime francês, uma cadeira Monobloco materializa a sociedade de consumo atual que surgiu no séc. XX. Nas duas situações, o fetichismo fortaleceu a definição de grupos diferentes de pessoas, mas enquanto no séc. XVIII servia para manter o poder do Rei, no séc. XX passou a dar um significado próprio à compra e ao uso de determinadas coisas, passou a definir o poder social. Já não são as coisas em si mesmas que nos fazem sentir como sendo parte de um determinado grupo de pessoas, mas o que elas representam, num sistema semiótico de consumo do qual não se consegue escapar, como dizia Baudrillard. A Monobloco tem imensas virtudes enquanto objeto de design, mas como ultrapassar o preconceito que se criou à volta dela? No fundo, a Monobloco faz parte do capital cultural de que Bourdieu falava, que define grupos sociais numa sociedade estratificada. Ou seja, a Monobloco é uma parte do conjunto de ativos e de elementos que uma pessoa adquire e que a fazem identificar-se com um determinado grupo social, e que podem ser tão variados como educação, contexto familiar, competências, graus académicos, gostos, objetos, sotaques ou maneiras de estar. Bourdieu defendia ainda que pessoas com elevado capital cultural (por exemplo, com graus académicos) são vistas como tendo mais poder social para definir o que é bom gosto e o que é mau gosto.
A teoria de Bourdieu tem muito que se lhe diga, e a Monobloco seria um tema riquíssimo para explorar as suas ramificações. Afirmar que há um grupo de pessoas com elevado capital cultural a qualificar a Monobloco como cadeira de mau gosto, remetendo-a para objeto do universo dos grupos de baixo capital cultural, parece uma simplificação pouco justa. Aliás, nem todos os que desprezam a Monobloco têm elevado capital cultural, e nem todos que as compram ou que as elogiam têm baixo capital cultural.
Os leitores podem dizer – pois, mas aqueles que têm elevado capital cultural e que compram a cadeira estão a legitimá-la no seu meio dando-lhe um invólucro intelectual, um discurso de aceitação, seja pela afirmação do kitsch ou, pelo contrário, pela sua total ausência de relevância, uma manifestação de desapego às coisas materiais. Para não falar daqueles que usam a Monobloco como matéria-prima em inúmeras instalações e obras de arte pós-modernistas (ou, para ser mais moderna, meta-modernistas). Mais: os leitores provavelmente pensarão que mesmo este texto é uma dessas formas de açambarcamento de um suposto símbolo de baixo capital cultural, na recondução da Monobloco a uma forma de mobiliário requintada, no name-dropping das alusões a Fragonard, Baudrillard e Bourdieu, no uso de tantas palavras francesas em itálico. Dirão, inclusivamente, que a autora tem em casa umas cadeiras Luís XV, e não umas Monobloco (apesar de, muito provavelmente, as minhas cadeiras serem apenas um pastiche do séc. XIX, o chamado estilo Luís XV, que ainda assim não elimina a estima que tenho por elas). Mas descansem, caros leitores, não tive qualquer intenção apropriativa. Gosto da Monobloco tal como gosto das cadeiras Luís XV, e em ambas esse gosto surgiu porque lhes prestei atenção. Com mais ou menos capital cultural, o meu único objetivo com este texto foi assegurar-me que nunca mais se cruzarão com uma Monobloco sem corar.
Materialista é uma série sobre memória material em que Joana Albernaz Delgado dá a voz a objetos icónicos do quotidiano. Desde que terminou o mestrado em História do Design no Victoria and Albert Museum e no Royal College of Art que Joana escreve sobre tudo e mais alguma coisa, em especial sobre coisas. É materialista, no bom sentido.