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© Hugo Amaral/Observador

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Mais do que processos em papel, são casos de vidas 

O novo mapa judiciário implicou mudar de tribunal cerca de 730 mil processos que envolvem muitas histórias de vida. Em Santarém, onde fecharam dois tribunais, o Exército ajudou a levar 117 mil.

São milhares de maços de papel abraçados por um cordel. Cada um tem um número e um local de destino. Toneladas de papel. Mais do que isso. São vidas de pessoas e de empresas que estão ali à espera de uma decisão, seja porque está em causa um crime, uma falência, uma regulação do poder paternal, um divórcio. Ou qualquer outro caso previsto na lei. Cada uma dessas histórias é levada por um militar do Exército que desconhece o que carrega nas mãos. Tem ordens para levar de uma secretaria de um tribunal e entregar numa outra, conforme dita a lei da nova organização judiciária. E ele cumpre. Indiferente ao significado.

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“Ontem carreguei 500 maços”, diz um dos militares. Assim que a carrinha do Exército parou à porta do tribunal do Entroncamento e abriu as portas,  “a funcionária até deitou as mãos à cabeça”, diz. Só a este tribunal, integrado na comarca de Santarém, chegaram 52 mil processos. Todos eles de execução. Pessoas e empresas com dívidas. Algumas perderam tudo. Na comarca de Santarém, uma das dez do país com um movimento processual superior a 100 mil, havia um total de 117 mil processos em papel para mudar de morada. A nível nacional, fala-se de 730 mil.

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“Isto são processos daqueles que vão a julgamento. Com a identificação das pessoas e das testemunhas”, atira um outro militar. “Achas? Não, isto deve ser outra coisa”, responde outro, com um maço em cada mão, e incrédulo com a explicação. Um punhado de histórias. Dos que matam pela terra, dos que perdem filhos, dos que burlam, dos casais que se divorciam. E uma infindável lista de casos que à luz da lei podem chegar a tribunal.

O Ministério da Justiça e o Ministério da Defesa fizeram um acordo: o primeiro precisava de segurança no transporte de mobiliário e de processos e pagaria combustível e portagens. O segundo disponibilizou militares. Para Santarém foram homens de quatro unidades: do Regimento de Transportes de Alverca, do Regimento Militar de Apoio do Exército de Abrantes, do Regimento de Manutenção do Entroncamento e do Regimento de Infantaria de Tomar.

"São necessárias medidas de segurança no transporte destes processos. Imagine que há um acidente das viaturas que o transportam".
Juiz João Guilherme Pires da Silva

“Isto não é só papel. São casos de vida”, reforça o juiz presidente, que assumiu funções à frente da nova comarca de Santarém no final de abril, para justificar a operação de segurança. João Guilherme Pires da Silva deixou a barra do tribunal para, nos próximos três anos, gerir a comarca. “São necessárias medidas de segurança no transporte destes processos. Imagine que há um acidente das viaturas que o transportam. Ou se há alguém que queira impedir o transporte”, explica. Por isso, além dos meios militares do Ministério da Defesa, há dois militares da GNR à civil que fazem a escolta policial às carrinhas. Noutras comarcas, recorreu-se à PSP, à GNR e até ao apoio das câmaras municipais.

A nova gestão dos tribunais deixa de estar dispersa entre o Conselho Superior de Magistratura, o Tribunal da Relação e o juiz presidente de cada tribunal, para se concentrar numa gestão tripartida: juiz, procurador do Ministério Público e administrador judiciário. E com funções, muito além da gestão, que passam pela avaliação dos funcionários e magistrados, dos objetivos definidos para cada tribunal, do orçamento, da formação. Tal como numa empresa.

“Muitos dos processos pendentes que estão a ser levados já deviam estar arquivados há muito tempo. Mas os funcionários ainda não tiveram tempo para isso”, explica o juiz. Um dos objetivos da reforma, e graças a um sistema informático criado para o efeito, é prevenir casos destes.

O Juiz João Guilherme Pires da Silva vai deixar a barra do tribunal para gerir a comarca

© Hugo Amaral/Observador

As mudanças na comarca de Santarém, onde existe meio milhão de habitantes, começaram a ser delineadas ainda em maio. Três tribunais para fechar por terem menos de 250 processos entrados por ano: Mação, Ferreira do Zêzere e Tribunal do Trabalho de Abrantes. Dois outros, que quase fecharam portas, convertidos em secções de proximidade: Alcanena e Golegã. E a transformação dos tribunais da comarca em secções centrais e locais com especialidades várias como o Comércio, Execução, Criminal, Cível e Família e Menores. Na Golegã, ressalva o juiz, vão “fazer-se muitos julgamentos”. As instalações “são óptimas” e vão servir de apoio ao tribunal do Entroncamento.

“Fizemos um inventário de todo o mobiliário para avaliar o seu destino”, explica ao Observador o administrador judiciário, Manuel Grilo. Este ano, não tirou férias. Na primeira quinzena de agosto geriu a mudança de mobília de uns tribunais para outros. Na segunda quinzena, os processos. No dia que os funcionários judiciais souberam onde seriam colocados, o telefone não parou. “Tenha calma, tenha calma, ainda nada é definitivo”, dizia por telemóvel.

O administrador judiciário, Manuel Grilo, teve que adiar as férias para gerir a mudança

© Hugo Amaral/Observador

Não foi o único que alterou os planos. No tribunal de Mação, que vai fechar portas já no último dia do mês, dois dos quatro funcionários reformaram-se. Mas António Simões, 58 anos, continuou ao serviço para ajudar a organizar as mudanças. Enquanto pega na vassoura para varrer o pó atrás do móvel que seguiu caminho, dá sugestões para o futuro das instalações do tribunal – inaugurado em 1994. “Devia ser instalado aqui o serviço de Finanças”. Ainda não se sabe o que vai acontecer a este edifício.

Ao seu lado, a funcionária Maria Graça, 52 anos, viu a reforma judiciária mandá-la para a comarca de Ponte de Sôr. A ela e ao seu colega de trabalho. E marido. “Vou passar a fazer mais 45 minutos de caminho para cada lado. Mas era o mais próximo e estou contente”, diz. Interrompe a conversa para atender um utente. “Queria um registo criminal para a licença de caça”. É o que mais se pede naquele tribunal. “O movimento processual é de facto reduzido”, constata o juiz. Em cinco anos a presidir a julgamentos coletivos de juízes, só se lembra de julgar mais processos criminais no Tribunal de Mação no ano de 2012. E alguns eram casos de 2007.

Maria Graça e António Simões vão fechar a porta do Tribunal de Mação

D.R.

Apesar de, no último dia de agosto, fecharem definitivamente as portas de 20 tribunais do país, eles continuam a funcionar. Tal como todos os outros funcionam em plenas férias judiciais: há processos urgentes, com arguidos presos, que não podem parar. Insolvências, processos com menores. Há mesmo sessões de julgamento, porque a lei obriga a que não se interrompa um julgamento por mais de 30 dias. Há ainda novos processos a entrar. Porque as férias judiciais não interrompem as ocorrências. “É um engano pensar-se que as férias judiciais páram tudo”, diz o juiz João Guilherme Pires da Silva.

Ainda não são 9h00 e as três carrinhas do exército já estão na porta traseira do Tribunal de Tomar. No primeiro andar funciona o cível e o criminal. No piso superior vai funcionar o de Família e Menores. A ministra da justiça, Paula Teixeira Cruz, sempre acenou com a bandeira da especialização para explicar esta reforma. A ideia é que todas as comarcas tivessem serviços especializados em cada matéria, com juízes, magistrados e funcionários concentrados numa só área. Quem trabalha há anos no tribunal afirma não fazer sentido um mesmo juiz julgar um caso de homicídio, de seguida uma insolvência e, depois, um processo de regulação de poder paternal.

Apesar das férias judiciais, todos os tribunais estão abertos para processos urgentes e novos casos.

Ainda assim, não há regra sem exceção. E há muitas comarcas que ficam fora deste esquema, como Portalegre, Guarda, Bragança, Évora, Açores e Madeira. Onde os juízes vão continuar a tratar matérias díspares.

No tribunal de Tomar, os militares já carregam maços de papel. Os funcionários judiciais, que souberam há dias onde iam ser colocados, colaboram com a organização dos processos. Mas o cenário está longe do pretendido já a partir de 1 de setembro.

A menos de dez dias da entrada em vigor do novo mapa judiciário, há ainda obras a decorrer. Muitas. O segundo andar, que vai acolher todas as histórias de vida entre família e menores, ainda não está pronto. Está em vista uma sala especial onde os psicólogos podem ouvir as crianças. Uma outra para os assistentes sociais. Mas há paredes que ainda não estão prontas. Andaimes, plásticos, areia, que atrapalham os movimentos dos militares do exército. O Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça garante que está tudo pronto no final do mês. O juiz diz que acredita. E até encara o caso com ironia. “Já fez uma reportagem de guerra? Aqui está uma boa hipótese”, atira antes de começar a visita guiada.

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As visitas guiadas multiplicaram-se. As futuras instâncias centrais da comarca de Santarém dividem-se entre Tomar, Entroncamento e Santarém. Em terra de escalabitanos, há dois tribunais de serviço, o mais recente instalado na antiga escola do Regimento de Cavalaria. E é aqui que decorrem julgamentos tão mediáticos como o “dos banqueiros“, diz um funcionário. O do BPP, por exemplo, no âmbito do processo interposto pela CMVM, vai passar a decorrer numa sala extra disponibilizada pela câmara municipal para o efeito.  Isto porque o tribunal foi concebido para três juízos e a juíza que preside ao caso BPP ficou colocada noutro tribunal. Por lei, não pode abandonar o processo, por isso terá uma sala própria sem prejudicar o agendamento dos processos que correm nos outros juízos. Aqui correm ainda os processos do BPN e “provavelmente” chegará o do BES. Há já julgamentos marcados a partir da primeira quinzena de setembro.

São 17h00. As quatro unidades que fizeram percursos diferentes ao longo do dia para irem buscar processos concentram-se à porta do tribunal instalado na Escola Prática, em Santarém. Uma azáfama. Alguns funcionários aproveitam a hora de fim de serviço para saírem. Outros tentam organizar o destino dos processos. Os armários já têm indicações dos locais de origem: Golegã, Entroncamento, Ferreira do Zêzere, Abrantes, Mação, Almeirim, Alcanena…

Em Alcanena, nas antigas instalações de uma escola primária transformadas em tribunal, passa a haver uma secção de proximidade. E apenas um funcionário judicial de serviço. Sozinho. Esse lugar até podia calhar a Lucília, que não quis dar o último nome, mas calhou a um colega. Lucília ficou colocada Santarém. Mais uma vida mudada. Antes ía trabalhar de carro, agora terá de conduzir até ao Entroncamento e apanhar o comboio com destino a Santarém. “Eu gostava de ter ficado no Entroncamento, é mais perto da escola da minha filha”, diz ao Observador.

O tribunal de Alcanena vai ser convertido em secção de proximidade. Só terá um funcionário

© Hugo Amaral/Observador

Nos últimos dias do mês, que calham num fim-de-semana, o atual sistema informático – o Citius – vai ser desligado. Há quem lhe chame um apagão, o juiz João Guilherme Pires da Silva, que também trabalhou nesta reforma, prefere chamar-lhe desativação. É neste momento que o sistema informático vai ser trocado pelo novo. Há perigo de perda de dados? O Instituto de Gestão Financeira e Património da Justiça diz que não. O juiz acredita.

Até dia 31 de agosto, estes tribunais vão funcionar de acordo com a lei em vigor. Mesmo se despidos de mobiliário e de processos. E esse será um dia cheio, porque ainda vai ser necessário levar processos e computadores que tiveram de estar ao serviço até ao fim, para começarem ao serviço noutros tribunais a partir de dia 1. O último a sair, fecha a porta.

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