Há dois hemisférios políticos e, no meio deles, o mundo muito particular de Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa que, por mais voltas que dê, com mais ou menos recados, vetos ou discordâncias — ultimamente, de substância –, fica sempre em pé. É um fenómeno político com sete anos de existência e que chega agora ao fim. Termina no pior momento entre os dois, mas com um balanço que ambos garantem positivo. Costa sai a dizer que foi “um dos melhores períodos” da história da coabitação Belém/São Bento. Marcelo fica, a explicar como isso foi possível — como quem deixa recado para quem vier.
“O hemisfério político” do primeiro-ministro, “muitas vezes não deve ter percebido a forma como tratava o Presidente da República”, resumiu depois de descrever como as “divergências” e as “convergências” nem sempre eram as que pareciam de fora. Quanto à sua família política tem mais certezas dessa incompreensão: “O meu hemisfério, desde que tomei posse, nunca percebeu a forma como tratava o primeiro-ministro e o Governo”.
Houve “uma relação institucional sempre boa, mesmo quando havia divergências políticas”, notou apontando a principal razão: “Cada um pensava o que pensava, mas procurava o compromisso, porque havia um dos dois que ganhava cinco eleições em seis anos e outro duas em oito anos”. “Tinham de procurar o compromisso”, concluiu e deixou a síntese: “A recordação destes oito anos é uma boa recordação, uma boa recordação”.
Já Costa agarrou-se à história para concluir o mesmo. “Os portugueses recordarão um dos melhores períodos de relacionamento” entre os dois órgãos de soberania, afirmou convencido: “Duvido que tenha havido tantos períodos de tanta boa convivência entre órgãos de soberania”. Marcelo não o contrariou e muito menos o fez quando Costa sublinhou que isso nunca quis dizer que houve “coincidência de pontos de vista”. E a começar pelo fim da sua maioria, à qual se opôs, já que queria demitir-se mas que Marcelo nomeasse um novo primeiro-ministro de dentro da família socialista. Foi a última grande discórdia, com tiros de falta de “bom senso” atirados a Belém de forma muito direta e bem recentemente por Costa. Mas neste tema ninguém tocou diretamente.
No fim, resumiu Marcelo, “valeu a pena”. Mesmo assumindo desacertos “por razões internacionais, por razões nacionais objetivos” ou “por erros” cometidos, Marcelo está convencido que “um dia, quando se observar com atenção e com distanciamento, se dirá que não é por acaso que o povo português decidiu manter por tanto tempo as suas opções e as suas escolhas relativamente ao Presidente e ao Governo”. Um depende do outro, sempre dependeu, na lógica de Marcelo que nada disse sobre o futuro pós 10 de março, mas deixou nesta intervenção leitura para esses tempos.
Antes dele, Costa já o tinha tentado “tranquilizar” sobre esses tempos, ou por ser aquilo que suspeita ser o sentimento em Belém ou como forma de deixar no ar a ideia que depois de si virá quem bom de si fará. Seja como for, o primeiro-ministro que está de saída aproveitou os cumprimentos de Natal para dizer, num jeito que reconheceu poder ser “irritantemente otimista”: “Sei que nunca experimentou presidir com outro primeiro-ministro e posso assegurar que nos habituamos”. Também ele entrou em funções com Cavaco Silva em Belém, “personalidades muito diferentes”, mas habituou-se, garantiu: “Seguramente vai habituar-se e vai poder correr bem.”
A responsabilidade pela crise política entre lamentos pelo fim precoce
Ambos fizeram questão de deixar claro que nenhum dos dois queria que acabasse já — e aqui Marcelo e Costa têm feito questão de sacudir a responsabilidade pela crise política, atirando para o lado de lá essa culpa. Marcelo até afirmou três vezes que não esperava nada disto. “Para ser sincero, sincero, sincero, estava convencido que ia durar mais um tempo. Tinha uma fórmula: um ano e dez meses que é o tempo que faltava até autárquicas”. Depois disso seria aberto automaticamente um outro ciclo político, com candidatos à sucessão dos dois a saltarem para a praça pública (2026 é o ano das Presidenciais e era o das legislativas).
Até lamentou: “Não quis o destino que fosse assim. Estava eu já a pensar bater o recorde de ter um só primeiro-ministro durante dez anos, mas não consigo cumprir”. E garantiu que “entre 2017 e 2023, em seis anos, cinco vezes os portugueses sufragaram, em europeias e em legislativas, o essencial da fórmula governativa existente. O que em democracia não é propriamente irrelevante”, enquanto passava em revista o melhor e pior de cada um dos anos.
No pior foi colocando o período “doloroso para os dois” dos incêndios, em 2017, e no melhor a “estabilização do sistema financeiro”, logo no arranque da coabitação. Esse, disse mesmo, foi um dos exemplos de que “sem esforço de compromisso havia desafios impossíveis de vencer” e que acabaram ultrapassados, colocando-se como factor decisivo nesse processo, com “diligências internas e internacionais”.
Ouviu Costa a aproveitar a ocasião para dizer ali em Belém e um ano depois do aviso de Marcelo para um 2023 “decisivo” na execução dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência, que Bruxelas já aprovou a transferência na próxima semanas das terceiras e quartas tranches de fundos para Portugal. Mas não se deixou ficar e disse-lhe que quase teve razão nas preocupações que mostrou nessa mensagem de Ano Novo, afinal “a taxa de execução esteve bastante para trás em meados deste ano” e que só a partir do verão recuperou e “ultrapassou os 3 mil milhões de execução no terreno, quando tinha estado muito tempo nos 1.900 milhões.”
Profecia do regresso de Costa nos próximos dois anos
Quanto ao futuro político, Costa escorregou nas palavras e ao desejar um resto de bom mandato a Marcelo concluiu: “Em 2026 cá nos reencontraremos” — ainda tentou corrigir: “Em 2026 tem direito ao ano todo. Há mais vida para além da Presidência da República”. Mas não se corrigiu quando à sua própria presença no palco político nessa altura. E Marcelo também não acreditaria que pudesse ser de outra maneira.
Em ambas as intervenções, ambos lamentaram que o Presidente não tenha conseguido converter o primeiro-ministro à fé católica, mas além dessa divergência que mantiveram, há outra, notada por Marcelo: “Encaro as minhas atividades futuras de rutura com a política e o primeiro-ministro esquecer-se da política é impossível”. E fez ainda um aposta: “Profetizo que mais rapidamente o primeiro-ministro estará a braços com essa sua vocação natural do que eu estarei no futuro quando puder lançar-me em causas sociais e educativas, onde haja o mínimo possível de recordação da vida política”. Ou seja, aposta que António Costa esteja de novo na vida política ativa antes dele mesmo terminar o seu mandato em Belém. Recorde-se que Costa mantém esse cenário em suspenso enquanto não existir uma decisão sobre o processo-crime que o envolve e que provocou a sua demissão.
Uma coisa pareceu, no entanto, certa, com Costa a garantir mais uma vez que não andará por aí, mas aí com críticas a antecessores à mistura. “Não imitarei como ex-primeiro-ministro os que também não imitei como primeiro-ministro”. E garante sair “otimista com o futuro do país”, tocando num cognome que lhe foi dado por Marcelo. “Verifiquei que o otimismo de irritante foi passando a — se não contagiante — cativante. E foi com grande satisfação que há dias o ouvi lamentar a tendência alguns para o pessimismo. Percebo que a circunstância e o companheirismo que tinha lhe suscitasse essa ideia”, disse sem dizer que era Carlos Moedas que estava ao lado de Marcelo nessa situação.
Disponibiliza-se para, no futuro, “por telefone ou presencialmente acrescentar um suplemento de otimismo quando a fé não for suficiente” para o Presidente da República e avisa que “com pessimismo é muito difícil encarar com boa cara o mau tempo. Porque o mau tempo não se evita e quando ele surge temos de estar de boa cara. Temos de ter confiança nos outros e na capacidade do país.” Sai com o último Orçamento que aprovou promulgado pelo Presidente, pouco antes de o Governo em peso entrar em Belém para os cumprimentos de Natal ao Presidente da República. No final, Marcelo cumprimentou um por um e ainda quase teve um braço de ferro com um dos principais nomes do pedronunismo. Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente, tentou antecipar-se ao passou-bem sempre efusivo de Marcelo e acabou numa disputa de braços entre risos de todos os que estavam na sala. Até ver, acabou tudo bem.