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Aos 36 anos, Marco da Silva Ferreira é um dos nomes mais relevantes da dança contemporânea portuguesa

(Rui Oliveira/Observador)

Aos 36 anos, Marco da Silva Ferreira é um dos nomes mais relevantes da dança contemporânea portuguesa

(Rui Oliveira/Observador)

Marco da Silva Ferreira, do improviso de rua à criação contemporânea: “Nunca sei se estou a dançar pelo prazer ou pela dor"

É um dos nomes mais relevantes da dança portuguesa e estreia esta sexta-feira uma nova criação. Antes disso, falou de medos e de expectativas, da relação com o corpo e da vontade em fazer um solo.

“Fazemos já as fotografias para aproveitar o sol?”, sugere Marco da Silva Ferreira, pousando o capacete da bicicleta. Em poucos minutos, e sem aparente dificuldade, deixa-se fotografar pelas ruas da baixa do Porto entre saltos e piruetas em pontas dos pés, captando muitos olhares curiosos. Nasceu em Santa Maria da Feira, foi nadador de alta competição, estudou piano e violino, formou-se em fisioterapia, mas foi na dança que encontrou a sua melhor forma de expressão, apesar da pressão social que o conteve e que ainda lhe deixa marcas.

Marco faz parte da geração MTV e, influenciado pelos videoclipes icónicos de nomes como Usher ou Justin Timberlake, começou nas danças urbanas, muito marcadas pelo freestyle e pela improvisação. Teve aulas em Londres e em Los Angeles, até que em 2010 participa no programa “Achas Que Sabes Dançar?”, transmitido pela SIC, vencendo o concurso. Tinha tudo para escalar na dança comercial, mas o seu destino foi outro. Com o prémio final de 20 mil euros decide ir estudar dança contemporânea para Nova Iorque e, uns meses depois, de regresso a Portugal trabalha com coreógrafos como André Mesquita, Tiago Guedes, Victor Hugo Pontes ou Paulo Ribeiro.

Em 2013 assina a sua primeira peça como coreógrafo, “Hu(r)mano”, “uma avalanche de responsabilidade e internacionalização”, seguiram-se trabalhos como “Brother” (2016), “Bisonte” (2019), “Siri” (2021) ou “førm Inførms” (2022), com a companhia sul africana Via Katlehong. Ocupando vários palcos, nacionais e internacionais, Marco reflete frequentemente sobre a dança em contexto social, os corpos atuais, de antigamente e não binários, o movimento clubbing, a noção de identidade, de comunidade ou de empatia. O seu processo criativo pode reunir várias artes e não se resume à técnica, mas confunde-se muitas vezes com as suas próprias emoções. É entre a dor e o prazer, o caos e a organização, a racionalidade e a sensibilidade, a intuição e o autocontrolo que parece concretizar-se.

Seguro, interventivo e consciente do seu privilégio e visibilidade, Marco da Silva Ferreira fala da relação com o corpo, com o tempo e com a idade, da vontade em fazer uma dança política e, no futuro, um solo. Para já, estreia esta sexta-feira “Carcaça”, no Teatro Municipal Rivoli, no Porto, uma peça com um elenco de dez intérpretes onde as danças folclóricas são o ponto de partida de uma pesquisa sobre a construção de identidade coletiva, memória e cristalização cultural. Antes de seguir para França em turné, o espetáculo passa ainda por Lisboa, ocupando o palco do Centro Cultural de Belém nos dias 27 e 28 de outubro.

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"Dava uma música num sítio e era capaz de ser dos primeiros a mexer-me, mas nunca com o intuito de fazer disso a minha vida."

(Rui Oliveira/Observador)

Começa por estudar fisioterapia, porquê?
Sempre estive relacionado com a área da saúde, achava que a minha formação académica passaria por aí, a minha avó materna é enfermeira, sempre tive muitos amigos cujos pais eram médicos, não sei bem porquê, mas a saúde sempre esteve muito próxima do meu crescimento. Não consegui entrar em medicina, ainda estive dois anos em medicina dentária, mas não gostei nada e então mudei para fisioterapia. Nessa altura, o que queria mesmo era desporto, já era nadador de competição no Futebol Clube do Porto e acho que a minha prática física começa aí.

Como surge a natação?
Comecei com aulas aos cinco anos, adorava água e tinha jeito para nadar, de repente estava a treinar diariamente e a competir, então pensei que talvez devesse ir para um clube grande e puxar por isto. Fui para o Futebol Clube do Porto e foram dois anos de trabalho muito intenso e um esforço muito grande por parte dos meus pais que me levavam aos treinos bidiários, até que se tornou saturante e aos 16 anos parei. Tive uma lesão no ombro, mas acho que foi mais o cansaço psicológico que me obrigou a pensar que me estava a privar de uma data de coisas. É um desporto individual e muito solitário, estamos mergulhados na água e não comunicamos, foi uma fase muito dura em que precisei de parar e fazer uma coisa que só me desse prazer. Sempre tive apetência para áreas artísticas, estudei música e adorava fazer coreografias e teatro em casa, então comecei a fazer aulas de dança, foi um caminho natural.

De onde vem essa apetência?
Com três ou quatro anos já era muito comunicativo, chegava a um sítio e fartava-me de fazer perguntas, era uma criança feliz e facilmente cantava, dançava e fazia palhaçadas, esse lugar é um lugar de performance. Até aos 16 anos nunca me tinha passado pela cabeça dançar, só em contexto social e muito amador. Dava uma música num sítio e era capaz de ser dos primeiros a mexer-me, mas nunca com o intuito de fazer disso a minha vida.

Sem vergonha?
Com a vergonha de um rapaz adolescente a dançar. Acho que não segui artes exatamente por uma certa vergonha em mostrar esse meu à vontade, já era natural em mim não mostrar, houve uma certa pressão social para conter essa expressividade.

Conscientemente?
O período de adolescência com os treinos da natação foi de muitas barreiras, de fechamento, de limitar e de silenciar. Quando esse cansaço chega, sinto que preciso de uma coisa libertadora de alguma forma, é assim que a dança entra na minha vida. Com ela conheço um novo grupo de amigos, novas referências, novas músicas e novos contextos.

Que referências eram essas?
A cultura pop e hip hop da MTV, do Justin Timberlake e do Usher, estava no auge. Nunca fui propriamente bom a imitar, mas estes nomes eram pontos de partida e um estímulo para me libertar através do corpo. Foi muito prazeroso o início das aulas de dança, mas dois ou três anos depois comecei a fazer battles e senti-me novamente a entrar em competição, a voltar a um sítio de regra e disciplina que não queria. Foi mesmo um alerta vermelho de uma coisa à qual não queria voltar.

Essa pressão social vinha de sua casa ou do mundo em geral?
Não é que os meus pais me impusessem que não dançasse, mas sempre fizeram muita pressão para que eu tivesse uma formação em saúde, era uma coisa que eu tinha estudado desde o secundário, queriam garantir o meu futuro, o emprego para a vida toda e esse não era de todo o meu lugar. Fiz o bacharelato em fisioterapia, estagiei e cheguei a trabalhar a fazer domicílios, mas no último ano de licenciatura participei num programa de televisão e nunca mais parei de dançar. Faltava-me dois meses e estágio para terminar o último ano.

Não pensa em voltar a essa área?
Agora não, mas sinto que há três pontos que marcaram o meu olhar na dança, um deles é a prática física dentro de água que durante muitos anos me deu um mapeamento muito específico sensorial e de técnica, depois a fisioterapia, que me deu um olhar muito teórico sobre o corpo e o que é terapêutico, e depois outra camada muito forte foi a minha formação em música. Tocava piano e violino, tive formação musical quase dez anos, então é muito natural em mim relacionar a dança com a música e outras artes. Além disso, sempre tive muito interesse em desenhar e em pintar, tenho uma necessidade grande em extravasar para a arte o que sinto.

"Depois do programa, que terminou em julho, deixei que essa calda vivesse um bocado e depois impus uma mudança. Era surreal ir a festivais de verão e toda a gente me conhecer, não conseguia ir a um centro comercial ou andar dez metros sem ser parado."

Voltando à dança, com que estilo mais se identificava?
Começo por ter aulas de dança urbana, contemporânea, jazz e capoeira, a minha base é muito freestyle e improvisação, que não deixam de ser métodos da dança mais contemporânea. Acho que me encontro entre movimentos urbanos e de clubbing, mas cheios de ferramentas de composição e de pesquisa da dança contemporânea. Não me sinto um especialista na técnica de danças urbanas, não sou um intérprete técnico, estou mais interessado na pesquisa dos limites que vão para fora da técnica do que com a execução técnica.

Em que contexto vai lá para fora pela primeira vez?
Em 2009, ou talvez um pouco antes, tive necessidade de fazer aulas específicas de pop e house dance que não existiam no Porto ou em Portugal, então comecei a ir para Londres com uns amigos durante as férias, ia umas cinco vezes por ano.

Nunca pensou ficar por lá?
Sim, até cheguei a fazer audições para entrar numa companhia, mas no dia da fase final tive febre, acho que foi uma reação somática do meu corpo [risos]. Não iria conseguir sair de Portugal, não queria largar a minha família e os meus amigos mais uma vez por causa de um objetivo profissional, como aconteceu com a natação. Depois destas idas a Londres, fui para Los Angeles com o dono da All About Dance, academia de dança em Santa Maria da Feira onde estudei, durante três semanas e conheci os estúdios icónicos daquela época, como a Debbie Reynolds Dance Studio ou a Millenium Dance Complex, foi uma experiência muito rica.

Foi uma descoberta?
Sim, o programa “So You Think You Can Dance?” passava no canal Fox e estava muito relacionado com este contexto de dança comercial e urbana que encontrei em Los Angeles. Quando em 2010 surgem as audições para a primeira edição do programa em Portugal pensei: é agora ou então não faço mais.

Porquê?
Já estava a sair da área comercial e muito interessado noutros caminhos mais ligados à arte contemporânea, mas acabei por fazer a audição e entrar no programa. Larguei tudo e fui de cabeça.

Aí não teve receio de largar tudo para entrar numa competição?
Não, sabia que era temporário e foi tudo muito pensado, a exposição televisiva, a envolvência familiar, o perfil que queria passar através daquela plataforma, quais eram os meus limites naquilo que eu comunicava e nos vídeos que se faziam sobre mim.

Já tinha um caminho trilhado para depois dessa experiência?
Não, mas sabia que não queria cair dentro de estereótipos televisivos. Nestes programas de caça talentos, as revistas cor de rosa estão muito próximas deste contexto e existe um perfil que tem de criar alguma sensação e uma determinada narrativa. Foi muito claro para mim não envolver a minha família e os meus pais demasiado nisto, não queria que as emoções fossem o foco do meu perfil no programa, mas sim a dança e o meu olhar sobre uma dança híbrida e com várias referências.

Ainda hoje lhe falam deste concurso?
Ah, sim, muitas vezes.

Isso chateia-o?
Não, de todo. Tenho muito orgulho no meu caminho, não me aborrece nada estar associado a isso. Depois do programa, que terminou em julho, deixei que essa calda vivesse um bocado e depois impus uma mudança. Era surreal ir a festivais de verão e toda a gente me conhecer, não conseguia ir a um centro comercial ou andar dez metros sem ser parado. O impacto que o programa teve foi um bocado fora do normal, não existia nenhum formato daquele género, no mesmo horário e num canal aberto.

O que fez com o prémio?
Eram 20 mil euros, uma grande parte serviu para ir em outubro para Nova Iorque fazer aulas de dança contemporânea. Quando regresso, em 2011, trabalho em projeto com o Victor Hugo Pontes, no Porto, e o André Mesquita, em Lisboa, foram duas pessoas que me influenciaram muito.

"Existe de facto em mim uma tentativa de radicalizar algumas ideias, de energeticamente ser um pouco exagerado para o publico, não faço uma coisa conservadora."

(Rui Oliveira/Observador)

Além de interpretar, começa também a criar. Foi uma necessidade ou uma oportunidade?
Foi algo muito natural, mal sabia interpretar e já estava a criar. Era uma misturada gigante, quando não sabia fazer, inventava para conseguir fazer. Nesse sítio do desenrasca e do não ter medo do ridículo, sinto que nunca andei à procura da perfeição, nunca senti aquele peso, que às vezes as escolas provocam, de conseguir a linha perfeita. Isso acaba por ser muito castrador e frustrante, vejo muitos bailarinos a terminarem longos anos de formação cheios de medo de errar, com uma auto estima muito baixa, e eu nunca tive isso. Sempre gostei muito de ironia, de humor, da sátira e do ridículo, a minha dança é muito enérgica, despojada, às vezes é feia, mas esses limites na arte não fazem muito sentido para mim. Entrei de forma autodidata na dança e no circuito onde me movia não existiam grandes professores a dar aulas cá, então rapidamente passei a ser professor, a dar workshops e a construir espetáculos, coreografias, cenas e temas para grupos. Tinha muito interesse em improvisação, mais do que interpretação, facilmente as pessoas me associavam a um intérprete criador. Lembro que no programa uma das minhas grandes forças era quando fazia solos de 30 segundos os universos que apresentava eram muito diferentes dos restantes concorrentes. Havia um mistério sobre o que eu estava ali a fazer: qual é o tipo de dança? Isto é popping? Dança clássica? Não era nada óbvio. Diziam-me que era um criador nato, tinha qualquer coisa que não era comum e uma linguagem muito própria, era difícil colocarem-me numa caixa.

Em 2013 estreia a sua primeira peça, o “Hu(r)mano”.
Sim, fiz a candidatura e tive o apoio da DGArtes pela primeira vez. A peça teve uma circulação muito grande a nível internacional e isso surpreendeu-me muito. Foi uma avalanche, comecei a viajar muito, de repente precisava de uma estrutura e logística de produção para dar resposta e não tinha, foi uma avalanche de trabalho e de responsabilidade. Percebi que internacionalmente as pessoas falavam em mim e eu não sabia que tinha esse lugar e essa visibilidade, tinha programadores franceses a querem trabalhar comigo e a gostar do que fazia, quando eu ainda estava a perceber o que queria fazer.

Faz depois o “Brother” em 2017 e o “Bisonte” em 2019. Foi este arco temporal que lhe permitiu fazer coisas tão diferentes?
Acho que sim. Apesar das temáticas serem muito diferentes, existe uma linguagem e uma forma de a colocar em cena muito comum. No Hu(r)mano percebe-se o meu interesse em pensar a dança num contexto social, como é que ela se relaciona com o contexto de clubbing presente pela música e pelo lado mais obscuro, meio sensual e carnal, cheio de velocidade, urgência e tensões. Com o “Brother” quis perceber como é que as danças sociais muito afroamericanas se relacionam com os corpos de hoje, que ainda procuram sensações tão semelhantes aos corpos de antigamente. O lugar da dança vai-se transformando, mas se calhar as origens e as motivações que nos levam a dançar, a estarmos todos juntos e a celebrar, continua o mesmo. São sítios comuns, a gravidade é a mesma, as sensações, a transpiração e as hormonas são as mesmas, assim como esse lugar de liberdade, de exaltação, de cerimónia e de empatia. Em “Bisonte” quis falar sobre emoções, é talvez o trabalho mais autobiográfico que fiz até hoje. Ele surge depois de um evento muito lancinante na minha vida, em que passo por uma separação, e exploro as danças sociais, muito masculinas e altamente codificadas, e tento mexer nelas, procuro que elas deixem de ser tão binárias à medida que eu próprio me ia tornando mais não binário, vivendo um processo de emoções muito forte.

Esse processo foi feito do quê?
Foi um lugar de tristeza, solidão e melancolia enormes, mas ao mesmo tempo foi uma possibilidade de descobrir novas coisas, sentindo uma euforia e histeria gigantes.

Descobriu-se ao mesmo tempo que esse processo criativo estava a acontecer?
Sim e consegui que não fosse o artista a falar de si, mas encontrar pessoas que perceberam o que eu queria trabalhar, que já tinham passado pelo mesmo, que entenderam o que são corpos não binários, efervescentes e que gostavam de viver loucura e a transformação, que pensam que o mundo é mais ambíguo e mais complexo do que possamos pensar. As minhas peças exigem um ritmo e uma energia carnal, é uma dança intuitiva onde gosto de construir lugares de compressão e de explosão. Existe uma organização naquilo que parece caótico e ela vem de um sítio de muita contenção.

Essa contenção que sentiu na adolescência ainda permanece?
Sim, acho que é uma característica, uma marca. Sou muito racional e auto consciente, mas ao mesmo tempo muito sensível. Acho que as minhas peças são muito racionais, pensadas e controladas, com picos e pontos de sensibilidade muito particulares.

Como é que se faz esse equilíbrio criativo?
A tensão é sempre ótima, dá dor, cria rasgões e cria prazer. Nunca sei bem se estou a construir uma coisa com prazer ou com dor e também nunca sei se estou a dançar pelo prazer ou pela dor.

Como assim?
Quando começo a ficar cansado de dançar, começo a atingir outros níveis de prazer e aí percebo onde é que estão as minhas dores e prazeres a acontecer ao mesmo tempo. As duas coisas confundem-se e é nesse sítio onde quero estar. Não quero fazer apenas aquele tipo de dança que é linda, bela e harmoniosa, mas também não quero estar na dança que chega sempre com violência, que só fala de dor e de depressão ou que é escura. O que eu faço é uma selva bela e explosiva, esbanje crescimento e ao mesmo tempo desorganização.

"Nunca pensei 'não vou sair porque amanhã tenho ensaio' ou 'não vou beber ou comer isto porque me vai fazer mal'. Nunca quis isso, antes pelo contrário, sempre escolhi sentir no meu corpo a vida a acontecer."

Que relação tem com o corpo? Há uma atenção especial quando se dança?
Tenho um limite para sacralizar o meu corpo, há bailarinos que têm muito a ideia de que o corpo é uma ferramenta de trabalho, eu talvez seja um bocadinho mais violento com o meu corpo.

De forma consciente?
Sim. Durante muitos anos fui disciplinado, mas a alta competição não é uma coisa saudável e com a dança isso também acontece, a minha dança não é terapêutica, aliás, nunca procurou ser. Nunca pensei “não vou sair porque amanhã tenho ensaio” ou “não vou beber ou comer isto porque me vai fazer mal”. Nunca quis isso, antes pelo contrário, sempre escolhi sentir no meu corpo a vida a acontecer. Adoro marcas, cicatrizes e rugas, são identidade e procuro muito falar sobre identidade coletiva e pessoal na minha dança. Não me protejo demasiado, vivo naquele limite de não querer destruir o meu corpo, mas não deixo de fazer as coisas, como artista devo ter essas vivências.

A dança está associada uma carreira muito curta. Tem 36 anos, em que fase está?
É inevitável que um intérprete com 40 anos seja diferente de um com 25, mas existem cada vez mais companhias com bailarinos de 45 anos a fazerem muitos trabalhos porque o que se procura agora em cena na arte contemporânea não é o virtuosismo físico, começa a ver-se cada vez mais em cena corpos não normativos com outras características, que abrem discursos novos sobre o corpo e sobre a dança e isso é essencial. Quem vê consegue sentir isso, mas quem faz percebe que é uma prática transformadora. Os bailarinos e os performers veem a sociedade de forma diferente, a bolha em que nós, artistas, vivemos é muito diferente da bolha que encontro na rua de um contabilista ou até de um jornalista.

Essa bolha é feita do quê?
É mais utópica, é menos presa, muitas vezes é um gatilho e é uma descoberta constante.

"Carcaça" é a mais recente criação de Marco da Silva Ferreira e estreia esta sexta-feira no Teatro Municipal do Porto - Rivoli

© José Caldeira

Disse numa entrevista que a dança nunca pode ser uma figuração de uma história ou de uma emoção. Porquê?
Vivemos uma fase em que a dança era isso, vinha do palácio, da corte, da monarquia, do belo e do paraíso, mas já não estamos civilizacionalmente aí. Hoje questionam-se outras coisas e não tenho interesse em fazer ilustrações. Nesta peça, “Carcaça”, fui buscar relações com o folclore, não me interessa nada fazer uma ilustração ou uma recriação, mas sim provocar alguma coisa nova.

Fala-me melhor desse novo trabalho.
O “Carcaça” surge de um interesse em falar da dança em contexto social e sobre comunidades e coletivos. Desta vez pensei mais sobre o que é cultura, como se forma cultura? O que é a cultura de um grupo e de um país? Como se preserva a memória? Como é que há símbolos que se tornam identitários e culturais? Depois da fase romântica da globalização, onde pensamos que estamos todos muito próximos e à distância de cliques, vivemos hoje numa fase de pós globalização, onde percebemos que ela traz imensos problemas de sustentabilidade, de consumismo, de empatia e de criação de uma nova escravidão, novas fronteiras e novos movimentos fundamentalistas. Quero falar sobre identidade coletiva, o que é isto de ser português e europeu? Quais são os símbolos de identidade nacional? Eles vêm de onde? Vejo o folclore que continua a existir, mas que é claramente uma recriação de uma época que foi muito toldada por um movimento totalitário e autoritário patriota. O Estado Novo disse que o país é isto, que se vestia de determinada maneira e se comportava assim, eliminou totalmente a expressão de outros corpos, outras culturas, nomeadamente as antigas colónias e corpos não normativos. Temos que voltar a falar disto porque acredito que tudo isto está em causa. O medo dos estrangeiros e dos novos refugiados existe e faz parte da identidade coletiva do que é hoje o nosso país, um puzzle disto tudo.

Depois da estreia no Porto, passará por onde?
Segue depois para Lisboa e depois irá fazer uma turné em França, começando por Marselha.

"Sinto uma expectativa em relação ao que faço, mas ao mesmo tempo sei que as pessoas me veem como o menino imprevisível que pode ser um bocado radical, já estão à espera disso e não querem perder isso."

França continua a ser um mercado muito forte na sua carreira?
Sim, surpreendeu-me muito este interesse e esta curiosidade pelo meu trabalho.

É uma validação, um peso ou uma responsabilidade acrescida?
Acho que é sobretudo uma validação. Há um circuito em que sei que o meu trabalho é apreciado, não quer dizer que outros coreógrafos não tenham isso. Às vezes gosto de ser advogado do diabo de mim próprio e questiono: o que quer dizer eu estar circular tanto? Significa que tenho sucesso? O que significa ter sucesso nesta sociedade? É empoderá-la ou se não tivesse sucesso é que estaria a tentar transformá-la? O sucesso é um reflexo de que me encaixo na perfeição num modelo?

E já chegou a alguma conclusão?
Estou a tentar ter sucesso e meter o dedo na ferida ao mesmo tempo. Sinto uma expectativa em relação ao que faço, mas ao mesmo tempo sei que as pessoas me veem como o menino imprevisível que pode ser um bocado radical, já estão à espera disso e não querem perder isso. Existe de facto em mim uma tentativa de radicalizar algumas ideias, de energeticamente ser um pouco exagerado para o público, não faço uma coisa conservadora.

Essa imprevisibilidade não se pode tornar também previsível?
Pode, claro. Quanto mais faço, mais previsível se consegue perceber a minha linha e quais são as minhas características. Isso é identidade de um artista, talvez faça a mesma coisa toda a vida até encontrar fases de mudança. Fazer uma digressão internacional grande é bom, mas tento não me acomodar demasiado a isso. Quero continuar a questionar qual é o meu lugar de intervenção, de transformação e de mudança, sabendo que as coisas têm um tempo e não duram para sempre, que novas gerações vêm e novos artistas chegam ao mesmo palco.

Tem medo de perder essa visibilidade e esse lugar?
Sim, tenho medo de me tornar velho e um dinossauro. Estou sempre à procura da curiosidade, do espanto e de não fazer o que já fiz. Agora estou na dança, mas não sei se estarei sempre na dança.

A dança é sempre um ato político?
Acho difícil não ser. A dança tem linhas abstratas e possibilidades de leituras que são mais de quem vê do que quem faz, mas não consegues tirar do contexto uma peça. Onde é que está apresentada? Qual é o timing? O público quando entra numa sala traz uma bagagem e essa bagagem vai sempre relacionar-se com o que está a ver. A minha dança é política, mas não é uma bandeira, não faço peças à luz de partidos ou ideologias, existe é sempre uma relação com um contexto social, urbano e cultural, uma noção de comunidade, empatia e empoderamento.

A sua arte questiona sem nunca responder?
Vou-me posicionando à medida que vou questionando, mas as questões já são por si só provocatórias e algumas são mesmo afirmações. No “Carcaça”, por exemplo, o linóleo que está no chão ergue-se, como um muro, mas a certa altura desce, quando ele cai podemos pensar que tudo será incrível, mas pode não ser. A queda de um muro pode criar novos muros, novos conflitos, uma coexistência que não existia antes, não quer dizer que a vida vai ser mais fácil ou melhor.

"Tenho um limite para sacralizar o meu corpo, há bailarinos que têm muito a ideia de que o corpo é uma ferramenta de trabalho, eu talvez seja um bocadinho mais violento com o meu corpo."

(Rui Oliveira/Observador)

Com uma exposição tão grande lá fora, nunca pensou deixar de viver em Portugal?
Pensei, mas nunca foi muito necessário. Tenho a sorte de ter uma base num país bonito, seguro e que me dá todas as condições para poder trabalhar e manter as muitas pontes internacionais que colmatem as lacunas que possam cá existir. A precariedade salarial, por exemplo, é compensada com o facto de ser artista associado em França, em Lyon, tenho apoio de uma rede de festivais europeus que me permite garantir uma circulação antes mesmo do espetáculo estar construído, isto é algo que poucos criadores podem ter. Desta forma, consigo dar condições de trabalho a bailarinos das quais me orgulho muito.

Isso não cria uma dependência grande do que vem de fora? Não gostava que Portugal oferecesse as mesmas condições?
Acho impossível isso acontecer.

Porquê?
É uma questão de escala. A arte contemporânea nunca vai viver apenas estando em Portugal e acho muito saudável a deambulação de conteúdos entre países porque efetivamente aproxima a diferença. Se o que é distante não me chega, vai sempre ser motivo de desconfiança, se estou constantemente a ir a vir, a levar e a trazer, a receber coisas diferentes, acabo por estigmatizar a diferença. O que é diferente às vezes cria medo, se não trazemos a diferença e não vamos a outro sítio sendo diferentes, somos vistos como uma ameaça ou algo perigoso. Precisamos que a arte seja fluida e transfronteiriça.

O que gostaria que Portugal lhe desse?
Gostava de ter mais lugares de criação, centros coreográficos para apresentar, para fazer residências, para construir peças, para ter arquivo e contribuir para um desenvolvimento territorial. Acho que cada direção regional deveria ter um centro de criação que fosse um polo de desenvolvimento e de expansão do que se faz no país, descentralizando as atenções. Gostava também que Portugal se preocupasse mais com a questão dos teatros e cineteatros. O que vai acontecer às pessoas? Que recursos terão? Haverá uma programação em rede? Que futuro podemos esperar?

Pensa muito no futuro? Já sabe o que vai fazer depois deste espetáculo?
Em 2023 e 2024 vou estar em digressão e não irei criar quase nada, a não ser pesquisa e dar algumas aulas. Depois gostaria de pensar em novos formatos, talvez fazer um solo.

A interação com outras artes, como já fez com o cinema com o realizador Jorge Jácome em “Siri”, será algo a explorar?
Sim, mais com a música e com a voz num formato de conferência performática.

O que gosta de fazer quando não está a trabalhar?
Gosto muito de sair à noite, de viver a cultura de clubbing.

É mais de noite do que de dia?
Não, normalmente acordo cedo, vou ao ginásio e adoro ver o horizonte, gosto de sol, procuro tempo para estar à luz e ao sol, é uma coisa importante. Depois adoro desenhar e pintar, normalmente faço desenhos sem levantar a caneta e tenho uma coleção de animais de boca aberta, algures entre o bocejar e o rosnar, tudo coisas reais. Também gosto muito bricolage e jardinagem, é o meu grande lugar de lazer.

Tudo o que é feito com as mãos…
Sim, dizem-me muitas vezes que as minhas mãos são grandes e expressivas, mesmo quando falo, não tenho consciência disso, mas deve ser verdade.

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