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Maria Lúcia Amaral foi juíza do Tribunal Constitucional entre 2007 e 2016, tendo sido nomeada provedora de Justiça em novembro de 2017

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Maria Lúcia Amaral foi juíza do Tribunal Constitucional entre 2007 e 2016, tendo sido nomeada provedora de Justiça em novembro de 2017

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Maria Lúcia Amaral. "A Segurança Social continua a ter disfunções de gestão que prejudicam os cidadãos"

Provedora de Justiça defende a revolução tecnológica da Segurança Social e teme pelo sucesso do processo de extinção do SEF. "Não podemos dizer: 'Venham'. E depois falhamos na receção aos imigrantes."

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Os apoios sociais do Governo para combater a inflação geraram um “grande número de queixas” dos grupos sociais que não foram incluídos. Em entrevista ao programa “Justiça Cega” da Rádio Observador, a provedora Maria Lúcia Amaral revela que a maior parte das queixas prendem-se com o facto de a Autoridade Tributária (AT) apenas transferir o apoio social por transferência bancária.

Imigração. “Não podemos dizer ‘venham’. E falhar”

Sendo um árbitro na relação entre os cidadãos e o Estado, Maria Lúcia Amaral elogia os investimentos que os sucessivos governos fizeram na modernização da máquina da AT e defende que uma revolução tecnológica semelhante deve ser feita na Segurança Social. Tudo para promover “um grande avanço civilizacional” na relação dos cidadãos com o Estado Social.

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Professora catedrática e ex-vice-presidente do Tribunal Constitucional, a jurista é a favor de uma reflexão sobre o sistema de recursos judicias. “Temos de dar mais atenção à eficiência da administração da Justiça” e “pensar se um sistema tão generoso de acesso ao Tribunal Constitucional deve ser ou não mantido”, diz.

Pela primeira vez nos últimos três anos, a Provedoria de Justiça não vai bater o recorde de solicitações e de queixas apresentadas pelos cidadãos.

Apoios sociais contra a inflação. “A Autoridade Tributária esqueceu-se de que muitas famílias não têm conta bancária”

O Governo tem anunciado diversos programas de apoio de combate à inflação, nomeadamente apoios diretos de 125 euros por cidadão + 50 euros por dependente até rendimentos mensais de 2.700 euros e um apoio de 240 euros para família com prestações mínimas. A Provedoria tem recebido queixas sobre a aplicação destas medidas?
Sim, temos recebidos um grande número de queixas.

Essas queixas colocam em causa a eficiência dessas medidas?
Não sei se inviabilizará a eficácia das medidas. As queixas que nos chegam têm muito a ver com disfunções e mau funcionamento da administração. Por exemplo, muitas das queixas sobre a questão das 125 euros estão relacionadas com o facto de o pagamento ser feito por transferência bancária. A Autoridade Tributária (AT) ter-se-á esquecido que há muitas famílias não têm conta bancária. A Segurança Social, por acaso, não se esqueceu.

Como se faz? Paga-se por cheque?
Sim, paga-se por cheque.

"As queixas que nos chegam têm muito a ver com disfunções e mau funcionamento da administração. Por exemplo, muitas das queixas sobre a questão do apoio de 125 euros estão relacionadas com o facto de o pagamento ser feito por transferência bancária. A Autoridade Tributária ter-se-á esquecido que há muitas famílias não têm conta bancária. A Segurança Social não se esqueceu."
Provedora Maria Lúcia Amaral

Estamos a falar de centenas, milhares de queixas?
Estaremos num grande número de queixas mas não posso dizer o número exato. Também recebemos um grande volume de queixas relativamente aos grupos não incluídos.

Ou seja, pessoas que não estavam abrangidas por outras medidas, como a dos 240 euros, e que entendiam que deveriam ter sido incluídas. É isto?
Bancários, ferroviários, residentes…

A questão da meia pensão dos bancários…
Exatamente. Essa questão é muito mais complexa porque se nos pedia outro tipo de ação. Quanto aos bancários, o conflito continuará por outras vias.

O Governo decidiu alterar a fórmula de cálculo das pensões, devido à subida muito significativa da taxa de inflação. A Provedoria de Justiça já começou a receber um acréscimo de queixas devido a essa situação?
Não, não foram em número relevante. O grande volume de queixas prende-se com grupos de cidadãos que não foram abrangidos pelos apoios sociais contra a inflação.

“A Segurança Social é a área que mais me preocupa”

A relação dos portugueses com a administração tributária e com a Segurança Social é uma das questões que mais queixas suscita na Provedoria de Justiça. Qual a área que mais a preocupa?
Indiscutivelmente, a Segurança Social.

Através desta questão, conseguimos perceber como fomos evoluindo ao longo das últimas décadas. Nos primeiros tempos da Provedoria de Justiça, em 1975, a relação com o Fisco era o tema maioritário das queixas.

O Fisco não funcionava muito bem nessa altura. Se compararmos com a eficiência de hoje, estamos a falar de um tempo pré-histórico.
Sim. Os portugueses não deixaram de ter problemas com a Autoridade Tributária (AT). O que se passa é que os problemas passaram a ser resolvidos de outro modo e são de outra natureza. Portanto, o provedor de Justiça não é demandado com o mesmo tipo de problemas. E porquê? Porque houve uma decisão política de reformar, modernizar e racionalizar a AT.

E falta isso na Segurança Social.
A Segurança Social é o oposto disso. A AT e a Segurança Social são a grande presença da administração no território: o Estado que cobra [a AT] e o Estado que presta [apoios sociais]. O problema é que a Segurança Social não foi objeto da intervenção que o Estado decidiu fazer na AT.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

E que tornou o Fisco super eficiente.
Já lá vamos porque também há a super defesa. Quando falo da Segurança Social, não estou a falar do apoio social ao infortúnio na existência quotidiana — não é isso que está em causa. Também não estão em causa os recursos que têm de ser alocados para assegurar a proteção social garantida pela Constituição. Estou a falar do terceiro patamar, mais pormenorizado: como as decisões legislativas e constitucionais são executadas diariamente pelos serviços.

Essa é uma questão de organização e a racionalização dos serviços que, tal como a AT, estão dispersos por todo o território nacional. Mas, ao contrário da AT, a Segurança Social continua a ter disfunções de gestão que leva a que as pessoas sejam prejudicadas.

Por outro lado, não há um mediador entre os cidadãos e a administração. A Provedoria acaba por ocupar esse espaço.

A Provedoria de Justiça acaba por ser um árbitro entre os cidadãos e a administração.
Sim, é exatamente isso: a Provedoria é esse árbitro.

“Seria um grande avanço civilizacional atualizar sistema informático da Segurança Social”

Desde há muito que há queixas sobre o desequilíbrio entre a rapidez e a eficiência com que o Fisco estipula e cobra dívidas e, por outro lado, os direitos e garantias dos contribuintes. Um exemplo: será que se justifica que, sempre que o cidadão queira contestar o pagamento de uma alegada dívida fixada pelo Fisco, tenha de depositar o valor de uma caução no mesmo montante? Isso não é uma inversão do ónus da prova?
Isso não é bem assim. A obrigatoriedade de depósito de caução acontece quando se quer que a impugnação tenha efeito suspensivo no processo executivo. Se isso representasse uma violação gritante dos direitos dos contribuintes, nós já teríamos sabido.

Temos tido vários fiscalistas a defenderem no “Justiça Cega” essa posição de inversão do ónus da prova porque é o contribuinte que tem de provar que não deve nada.
Ora aí está. A questão só se colocará quando os advogados pedem a suspensão da execução.

Há pouco falava em direitos para uma super defesa. Pode desenvolver?
É público e notório que a super eficiência do Fisco alterou as relações entre o cidadão e a administração. Quando falo da super defesa, estou a referir-me à emergência dos conflitos entre o Fisco e os grandes contribuintes. Os tribunais e os centros de arbitragem nascem desses conflitos — que são matérias tecnicamente muito complexas e que nada têm nada a ver com o tipo de queixas que chegam à Provedoria.

"O grande problema dos atrasos é transversal a todos os setores da administração. Oxalá que tivéssemos o mesmo ímpeto reformista não apenas do lado Estado que cobra… oxalá que não tivéssemos apenas um Estado eficiente a cobrar. Mas também no Estado Social que cuida."
Provedora Maria Lúcia Amaral

No que diz respeito à Segurança Social, a Provedoria de Justiça deu bastante atenção aos atrasos verificados quer na Caixa de Aposentações, quer na Segurança Social sobre a demora no cálculo das pensões. Houve casos com atrasos de dois anos. Qual é o ponto da situação?
Seguramente que o auge dos atrasos, sobre os quais nós falamos, passou. Não consigo avaliar a eficiência e a justeza da “Pensão na Hora”. O que o Governo fez foi alargar o âmbito da “Pensão na Hora”, que já existia, a outros tipos de prestações sociais. Mas esse é sempre uma pecha nossa, não é? É remediar, é criarmos soluções provisórias.

O grande problema dos atrasos é transversal a todos os setores da administração.

Ao contrário da Autoridade Tributária, que é super eficiente.
Oxalá que tivéssemos o mesmo ímpeto reformista não apenas do lado do Estado que cobra… oxalá que não tivéssemos apenas um Estado eficiente a cobrar. Mas também no Estado Social que cuida.

Se a Segurança Social tivesse um sistema informático tão eficiente quanto o do Fisco, isso seria uma grande avanço?
Como se costuma dizer hoje em dia, aplicando o termo sem grande rigor, seria um grande avanço civilizacional.

Dou-lhe um exemplo que considerei profundamente chocante e falei do mesmo cara a cara com o Governo, com a senhora ministra e o senhor secretário de Estado: a questão dos limites mínimos de impenhorabilidade. Há limites para as penhoras por dívidas ao Fisco, à Segurança Social e outras dívidas.

Ou seja, há uma parte do salário que não pode ser penhorada em caso algum.
Sim. Esse limite começou por ser defendido pelo Tribunal Constitucional nos anos 90 e foi posteriormente imposto por lei. Fez-se uma ponderação até onde deve ir o princípio jurídico justíssimo de todos os créditos serem ressarcidos. Mas, se o ressarcimento dos créditos colocar a sobrevivência do devedor em causa, o direito entendeu que o valor total dos créditos não é ressarcido.

Esse limite de sobrevivência é calculado em função do Indexante de Apoios Sociais (IAS) — e o valor deste, por seu lado, depende do salário mínimo nacional.

"Eram penhorados bens para lá do limite legal e a administração [o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social] confessava que não tinha e esperava que as pessoas reclamassem. Nós fomos falar com secretário de Estado da Segurança Social e dissemos-lhe: "achamos isto absolutamente inqualificável. A administração reconhece que pratica actos contra a lei!"
Provedora Maria Lúcia Amaral

O que é que acontecia? Acontecia uma coisa incrível: eram penhorados bens para lá do limite legal e a administração [o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social] confessava que, como o salário mínimo nacional era atualizado anualmente, dizia que não tinha meios para atualizar o valor do salário. Portanto, atualizava manualmente.

Quer dizer que atualizavam à mão por falta de meios informáticos?
Sim, à mão. E responderam que estavam à espera que as pessoas reclamassem.

Isso é um abuso do Estado.
Nós fomos falar com o secretário de Estado da Segurança Social e dissemos-lhe: “Achamos isto absolutamente inqualificável. A administração reconhece que pratica actos contra a lei!”. A Provedoria fez várias recomendações sobre este tema.

Esta situação foi resolvida?
Espero bem que sim. Mas não consigo garantir isso. Tenho de ver se não continuam a acontecer casos isolados. É este tipo de coisas que não podemos tolerar, como país civilizado que somos. Nem podemos tolerar que a administração responda desta forma. É demais. Ainda por cima quando a Segurança Social está organizada em diferentes institutos públicos.

Será que esses diferentes institutos não comunicam entre si?
Tenho a certeza que não comunicam. Se me perguntar quais são os vícios transversais a toda a administração pública, um deles é aquilo a que os americanos chama a lógica do silo. Ou seja, são mundos fechados entre si.

Por isso é que uma revolução tecnológica poderia potenciar a eficiência.
Sim mas não só. Por exemplo, a AT tem uma organização estável presente em todo o país. Tanto quanto me chega ao conhecimento, essa estabilidade não é replicada na Segurança Social.

Ao nível das chefias territoriais e intermédias, há uma grande influência política nesse tipo de nomeações.
Nem mais. Como diriam os italianos, pode ser [que seja a causa do problema].

Recordes de solicitações da Provedoria de Justiça em 2021 não foi batido em 2022

A Provedoria da Justiça tem quebrado sucessivos recordes de queixas nos últimos anos: mais de 21 mil solicitações só em 2021. Num ano de 2022 marcado por uma subida abrupta de perda de poder de compra, já podemos dizer que os números de 2021 foram batidos?
Posso já adiantar em relação de 2022: os recordes de solicitações que vinham a ser batidos nos últimos anos, não foram batidos e recuou-se.

Não porque o número de solicitações que nos chegam tenha baixado mas sim porque a nova lei orgânica da Provedoria de Justiça (publicado no final de 2021) permitiu a reorganização dos métodos de trabalho da instituição e começamos a fazer um maior reencaminhamento para outras entidades do Estado de algumas dessa queixas. Isso fez com que nos pudéssemos concentrar em áreas com maior importância sistémica.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Havia uma falta de resposta da Provedoria por falta de meios, como assinalou no relatório de atividades de 2021.
Exatamente. Ao contrário do que as pessoas costumam pensar, a Provedoria de Justiça não faz parte do sistema de Justiça. Tal como acontece noutros países europeus, a Provedoria caracteriza-se pela universalidade e pela gratuidades dos seus serviços, sendo certo que no mundo digital é muito mais fácil fazer uma queixa.

O que leva a um número avassalador de queixas.
Exato. Perante isso, tivemos que encontrar novos métodos de trabalho

“O atraso na atribuição dos atestados multiusos é um problema recorrente”

A atribuição dos atestados multiusos, que permitem uma série de apoios sociais e benefícios fiscais, ficou praticamente parada com a pandemia. Esse atraso já foi recuperado?
Não tenho a certeza que o atraso já tenha sido recuperado porque as queixas continuam a chegar-nos. Não obstante, temos dada muita atenção a essa questão. Porque a caducidade ou a obtenção do atestado impede a atribuição de apoios sociais, nomeadamente do rendimento social de inclusão.

Este é um problema recorrente. Obviamente que, durante a pandemia, as juntas médicas tiveram de ter que fazer outro tipo de trabalho, logo houve atrasos entre um e dois anos. O que atrapalha muito a vida das pessoas.

Não obstante, temos feito algumas recomendações. E estas têm sido acatadas pelo Governo, nomeadamente que os atestados multiusos para o rendimento social de inclusão sejam concedidos com a data do pedido, e não com a data em que foi efetivamente concedido. Temos que ter em atenção que o universo das pessoas que recebe este apoio social é um universo muito frágil.

A prestação social de inclusão, que inclui várias prestações sociais, é uma belíssima ideia. Infelizmente, acontece muito no nosso país: ótimas ideias, péssimas execuções.

O Parlamento aprovou recentemente uma lei que impõe um limite sobre as multas a aplicar pelo não pagamento das portagens. Na prática, entre portagens, coimas e custos administrativos, o valor total não pode exceder três vezes o valor das respetivas taxas de portagens. Esta questão preocupava a Provedoria?
Sim, a Provedoria recebia muitas queixas dirigidas às concessionárias pela questão da desproporção.

Esta lei impede que uma portagem de poucos cêntimos dê origem a uma multa de centenas de euros. É uma medida justa?
É mais do que justa. Ainda não conheço a lei porque ainda não foi publicada. Veremos a aplicação prática mas é absolutamente bem-vinda.

“Não podemos dizer aos imigrantes: “Venham”. E depois falhamos na receção”

Uma área em que a Provedoria de Justiça tem um papel importante prende-se com a discriminação, sendo a instituição nacional de direitos humanos que tem uma relação direta com as Nações Unidas nessa área. A imigração tem vindo a aumentar de forma significativa e continuará a subir nos próximos, sendo que a Provedoria dirige-se tanto aos cidadãos nacionais como também a estrangeiros residentes ou até visitantes. O que nos dizem as queixas dos estrangeiros?
Sabem que a Provedoria de Justiça localiza-se na Lapa, numa zona de embaixadas e em frene a um hotel de luxo? É uma zona nada apropriada a uma instituição com as características da nossa e ainda por cima é de difícil acesso. Ora, as queixas podem ser apresentadas por carta, por email mas também presencialmente.

Sobretudo durante a pandemia, o atendimento presencial era essencialmente preenchido por cidadãos estrangeiros porque não tinham outra alternativa e porque não se exprimem de outro modo.

Isto diz-nos como a nossa sociedade também mudou, porque passamos a importar recursos humanos. O que se passa com estas pessoas também não nos dignifica enquanto sociedade.

O racismo e a xenofobia são um problema da sociedade portuguesa?
Não lhe posso dizer isso. Porque as queixas que me chegam têm uma vez mais a ver com o mau funcionamento da administração, sobretudo por pessoas que esperam anos pela análise dos pedidos de autorização de residência.

"Temo que o período de uma transição tão profunda [no processo de extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras] venha a agravar a questão do atraso nos processos de autorização de residência. Temo mas espero que não aconteça. A Provedoria está a fazer tudo para que não existam custos para as pessoas."
Provedora Maria Lúcia Amaral

Mesmo tendo em conta que o SEF tem tentado agilizar esses procedimentos?
Sim, recebemos muitas queixas. Ainda há pouco tempo fomos fazer uma inspeção ao SEF para perceber o que se passa porque não conseguimos resolver caso a caso.

Já tem resultados dessa inspeção?
Ainda não porque a mesma ocorreu há muito pouco tempo. Ainda estamos na fase de follow up e a conversar com o SEF.

A extinção do SEF preocupa a Provedoria no que respeita a esses processos?
Sim, claro que sim. Tanto quanto sabemos, será uma transição longa até à entrega de todas as competências do SEF a diferentes entidades. O Estado tem de garantir que os procedimentos administrativos não afetam a vida das pessoas.

Nós, Estado português, não podemos dizer aos imigrantes: “Entrem. Venham. São bem-vindos”. E depois falhamos na receção a estas pessoas. Aqui está, falhamos novamente na execução.

Receia um novo aumento do tempo de resolução dos processos de autorização de residência?
É previsível. Temo que o período de uma transição tão profunda venha a agravar essa questão. Temo mas espero que não aconteça. A Provedoria está a fazer tudo para que não existam custos para as pessoas. Por isso é que fomos fazer a inspeção ao SEF.

Várias investigações jornalísticas têm alertado para um eventual problema de racismo nas polícias portuguesas. A ação da Provedoria permitiu identificar esse problema ou as queixas recebidas não evidenciam essa temática?
Infelizmente para nós, não nos chega nenhum eco disso.

As pessoas têm receio de se queixar da autoridade?
O problema é nosso: as pessoas que são mais susceptíveis de serem vítimas desse tipo de discriminação não sabem que a Provedoria de Justiça existe. Claro que também há medo e isso afasta as pessoas de todas as autoridades públicas, como se todas as autoridades públicas tivessem um potencial de ameaça.

Tenho vindo a pensar há muito tempo para termos uma ação mais próxima desses cidadãos para ajudar as instâncias inspetivas, como a Inspeção-Geral da Administração Interna, a agir de imediato.

“Temos de dar mais atenção à eficiência da administração da Justiça”

Muitas das queixas dirigidas à Provedoria de Justiça sobre a administração da Justiça focam-se nos atrasos e nas demoras. A jurisdição administrativa-fiscal é aquela que está em pior situação, com um tempo médio de resolução superior a 7 anos. Essa é a jurisdição que mais a preocupa, do ponto de vista da morosidade?
Isso não me preocupa só a mim. É um facto público e notório que temos esse problema. A maior parte das condenações que nós temos no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem prendem-se com a morosidade dos processos judiciais. E a jurisdição administrativa é que está em pior situação.

Mas, atenção, a Provedoria de Justiça para à porta dos tribunais, até por razões constitucionais.

Por uma questão da separação de poderes.
O provedor de Justiça pertence ao sistema político — não pertence à administração da Justiça. É eleito pelo Parlamento por uma maioria de dois terços e é um auxiliar da Assembleia da República na fiscalização do Governo e na garantia do princípio da boa administração.

"Talvez tenha chegado a hora de pensar se este sistema tão generoso de recurso para o Tribunal Constitucional, que permite que qualquer questão seja mantida em litigância até chegar ao TC (e com efeito suspensivo), deve ser ou não mantido."
Provedora Maria Lúcia Amaral

Cada vez mais magistrados, sejam judiciais, sejam do MP, defendem uma alteração do nosso sistema de recursos e/ou reforço dos poderes dos juízes, para impedir as chamadas manobras dilatórias (as nulidades, as reclamações, as aclarações, etc.). Historicamente, Portugal tem uma relação complexa com a autoridade, devido à herança da ditadura, sendo essa a causa da restrição do poder das magistraturas. O presidente do Supremo Tribunal de Justiça tem defendido a necessidade de dar mais atenção à eficiência do sistema. Concorda com essa ideia?
Não posso deixar de estar de acordo. Temos de dar maior atenção a essa área. Tudo o que disse é certíssimo: nós temos uma herança da ditadura, de um temor da autoridade. É uma herança que nos condicionou muito.

Tivemos uma reação do legislador, também ela compreensível, de evitar a concentração do poder e da autoridade. É uma espécie de veio constitucional muito profundo que está presente em muitos domínios. Fizemos essa opção de forma pensada e compreensivelmente preocupada do sistema eleitoral, do sistema de Governo e na administração da Justiça.

Mas isso tem um outro lado.
Sim, há outro lado da questão.

Por um lado, já passaram 50 anos.
Exatamente.

Por outro lado, esta espécie de hipergarantismo que impede que um juiz possa pura e simplesmente recusar reclamações, pedidos de nulidades ou aclarações que são manifestamente dilatórios — com os consequentes efeitos suspensivos, todos esses expedientes, ainda por cima não estão ao alcance de todos…
E não estão ao alcance de todos. A minha experiência também o diz…

Não valerá a pena enfrentar esta questão de frente e pensar em soluções específicas?
Se me pede uma resposta enquanto jurista, é minha convicção profunda que vale imenso a pena e exigir de nós próprios uma reflexão mais madura e profunda sobre essa questão.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Foi juíza do Tribunal Constitucional entre 2007 e 2016. Valerá a pena repensar o sistema de recursos para esse tribunal, no sentido de criar uma restrição?
Ora bem, essa é uma questão muito complexa que merecia ser muito mais discutida. Os recursos de decisões judiciais — que são a maioria dos recursos que fazem a prática quotidiana do Tribunal Constitucional — não são recebidos na esmagadora maioria das vezes e com custas judiciais elevadas. E porquê? Porque não colocam questões constitucionais, colocam outras.

Ou seja, nem sequer são apreciados pelo tribunal. A taxa de rejeição liminar é superior a 90%.
Sim, é elevada. Falo na qualidade de jurista e não falo na qualidade de provedora. É por essa via que se faz o acesso dos cidadãos ao Tribunal Constitucional (TC). Este acesso que nós desenhamos é generoso.

Talvez tenha chegado a hora de pensar se este sistema tão generoso, que permite que qualquer questão seja mantida em litigância até chegar ao TC e com efeito suspensivo, deve ser ou não mantido.

A história da rubrica “De Olhos Bem Fechados”

No “Justiça Cega” queremos sempre ouvir uma história de “Olhos Bem Fechados” sobre a carreira do nosso convidado. Que história nos traz?
Esta história tem a ver com a minha experiência enquanto provedora de Justiça. Costumo receber regularmente cidadãos que pedem para falar comigo.

Um dia recebi um representante de uma associação — não digo qual — que me vinha falar de algo delicado. Eu pensei que o senhor tivesse uma noção das coisas mas ele não tinha razão.

No final, quando não sabia mais o que dizer, comecei a falar da casa que alberga a nossa sede. Como disse há pouco, as instalações não estão no local mais adequado para uma Provedoria de Justiça. E disse-lhe justamente isso: “Olhe, estamos a ver se mudamos porque não temos acesso por autocarro ou por metro.”

E a pessoa disse-me assim — o que eu achei cómico: “Ah! Mas isto não é para qualquer um cá chegar!”

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