A vida não corria mal a Dilma Rousseff. Apesar dos protestos antes e durante o Campeonato do Mundo, apesar de o Brasil caminhar para uma recessão técnica, a vida não corria assim tão mal à presidente até meados de agosto. Até que um avião caiu e mudou tudo. No dia 13 de agosto, o Cessna onde seguia Eduardo Campos, o candidato presidencial do Partido Socialista Brasileiro (PSB), despenhou-se num bairro na cidade de Santos. Morreram todos os passageiros (quatro assessores) e pilotos. Marina Silva, a número dois de Campos, até estaria para voar juntamente com a comitiva, mas acabou por mudar os planos — embora existam notícias que contrariam esta versão oficial. E esse pequeno detalhe mudaria o destino do Brasil. Ou destas eleições, pelo menos.
Marina, como é conhecida, acabaria por assumir naturalmente a corrida ao Palácio do Planalto. Mas o percurso desta mulher é tudo menos normal. Cresceu num ambiente pobre, sonhava ser freira, fintou a morte por diversas vezes, aprendeu a ler aos 16 anos e foi fenómeno da política brasileira na década de 80, tal como é agora. Há quem diga que é o Obama do Brasil e o Lula de saias. Mas, afinal, quem é Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima?
“Marina Silva é um fenómeno extremamente curioso, que se colou à morte de um candidato. No Brasil costumavam dizer que ‘surfava no cadáver de Eduardo Campos'” – Vasco Ribeiro, professor de comunicação política na Universidade do Porto.
O corpo frágil engana. Quem ouve a convicção no tom de voz está longe de imaginar o seu passado. Marina Silva nasceu a 8 de fevereiro de 1958, em Breu Velho, uma pequena comunidade de Seringal Bagaço, no Acre. Teve dez irmãos, mas já perdeu três. A mãe morreu quando tinha 15 anos. Sem saber ler e escrever, o seu trabalho na adolescência foi nas seringueiras, das quais retirava o látex. As pedras no caminho, como dizia o poeta, foram muitas.
Marina queria ser freira, mas a sua avó dizia-lhe que “freira não pode ser analfabeta”. A sua vida começaria a transformar-se quando seguiu para Rio Branco, em busca de tratamento para cuidar do seu corpo que, até aos 16 anos, foi castigado com hepatite, leishmaniose, uma intoxicação com mercúrio e cinco vezes malária.
Em Rio Branco, a 70 quilómetros de casa, dedicou-se à vida religiosa e aos estudos. Do básico à conclusão da licenciatura em História, na Universidade Federal do Acre, foram dez anos. Durante esse período, para se sustentar, trabalhou como empregada doméstica. “Ela era tão magrinha que eu olhei e disse ‘ela vai-se quebrar, coitada, a bichinha não vai aguentar nada, não”, contou Terezinha, a dona da casa, hoje com 81 anos, em declarações ao Folha de S.Paulo.
DE CHICO MENDES AO SENADO COM A CAMISOLA DO PT
O princípio do fim do sonho de ser freira começou com um cartaz, afixado na igreja local, ironicamente. Marina optou por frequentar um curso de liderança sindical rural, lecionado por Clodovis Boff e Chico Mendes, com quem acabaria por criar uma ligação estreita. Com o último criaria a Central Única dos Trabalhadores, que lutaria contra a destruição da floresta. Pelo meio filiou-se no Partido Socialista Brasileiro. E foi assim que a política se entranhou na vida de Marina. Foram quatro anos em conjunto contra a desflorestação que acabaram abruptamente com o assassinato de Chico Mendes, em 1988. O fazendeiro Darly Alves da Silva e o filho, Darci Alves, foram prontamente indicados como principais suspeitos e acabariam condenados, em 1990, a 19 anos de prisão.
A política a sério chegou em 1988, quando foi eleita vereadora de Rio Branco. Dois anos depois foi nomeada deputada estadual. Em 1994, aos 36 anos, fez as malas e mudou-se para Brasília, para exercer o cargo de senadora. Marina foi a mais jovem da história da república daquele país. Oito anos depois, seguiu-se uma reeleição.
MINISTRA, DEMISSÃO E VIRAGEM AOS VERDES
Marina Silva conquistou o seu espaço no PT. E também a confiança de Lula da Silva, o homem que agarrou o leme do país do samba no primeiro dia do século XXI. Marina foi nomeada ministra do Meio Ambiente, enquanto Dilma Rousseff ficou com a pasta de Minas e Energia. Apesar de algumas vitórias, como a de colocar a questão ambiental na agenda do governo e a necessidade de obtenção de licença prévia para projetos hidroelétricos, Marina criou anticorpos no Executivo e, no dia 13 de maio de 2008, pediu a demissão. “Esta difícil decisão, sr. Presidente, decorre das dificuldades que tenho enfrentado há algum tempo para dar prosseguimento à agenda ambiental federal”, escreveu numa carta a Lula.
“Enquanto ministra do Ambiente fazia cerimónias religiosas em pleno ministério. Improvisava sessões religiosas e toma decisões em função da bíblia” – Vasco Ribeiro.
Sensivelmente um ano depois, chegou outra decisão: abandonar o Partido Trabalhista. Marina não concordava com a “conceção do desenvolvimento centrada no crescimento material a qualquer custo, com ganhos exacerbados para poucos e resultados perversos para a maioria, ao custo, principalmente para os mais pobres, da destruição de recursos naturais e da qualidade de vida”. A filiação no Partido Verde (PV) aconteceu apenas 11 dias depois. Seria com esse partido que disputaria a primeira corrida ao Planalto, em 2010.
A luta prometia ser inglória. O PT contava com nove partidos para a coligação, entre eles o Partido Comunista do Brasil e o Partido Republicano. A aliança de José Serra (PSDB) juntava seis partidos. Mas, nesta eleição, Marina voltou a vincar o seu nome na política brasileira, ao conquistar quase 20 milhões de votos, o que correspondeu a 19,3%. Dilma (46,9%) e Serra (32,6%) garantiram o passaporte para o segundo turno, onde a sucessora de Lula venceria com 56%.
No Brasil que temos, precisamos manter as conquistas, corrigir os erros e enfrentar os novos desafios, para chegar ao Brasil que queremos.
— Marina Silva (@MarinaSilva) September 17, 2014
REDE SUSTENTABILIDADE E EDUARDO CAMPOS
A ligação aos Verdes terminaria ao cabo de quase dois anos. “A experiência no PV serviu para sentir até que ponto o sistema político brasileiro está empedernido e sem capacidade de abrir-se para sua própria renovação”, assim justificou o abandono dos Verdes, no dia 7 de julho de 2011. Por esta altura começou a alegar a necessidade de uma “nova política”. Foi, aliás, lançado o Movimento por uma Nova Política, de cariz suprapartidário, que visava encontrar uma fórmula no qual economia e a preservação dos recursos naturais andassem de mão dada. Dessas reuniões resultaria o partido Rede Sustentabilidade, que não conseguiria preencher os requisitos para a oficialização — não obteve as 492 mil assinaturas exigidas.
A solução de Marina passou por uma coligação com o Partido Socialista Brasileiro, que foi recebida com reticência pelos colaboradores. O acordo chegaria poucos dias depois. Os militantes do Rede teriam de filiar-se temporariamente ao PSB. A 28 de junho, Eduardo Campos foi oficializado como candidato presidencial do PSB e teria Marina Silva como número dois.
Candidato e braço direito pareciam estar genuinamente na mesma página. No vídeo acima colocado, publicado a 27 de março, Marina e Campos expressavam o que desejavam para o Brasil. Mais: falavam em trajetórias semelhantes na caminhada até 2014. “Somos companheiros da luta e paz”, diziam.
“A grande novidade é ter a coragem de dizer que vamos preservar as conquistas já alcançadas, mas que não teremos uma atitude de complacência com os erros e que estamos dispostos, juntos com a sociedade brasileira, a encarar os desafios”, afirmou Marina (no vídeo em cima).
OS VENTOS MUDARAM PARA DILMA ROUSSEFF
A dupla dispensou semanas a apresentar o programa aos brasileiros. As sondagens, no entanto, não eram animadoras. Eduardo Campos gozava apenas da confiança de 9% dos brasileiros. Até os indecisos eram mais (14%). Mas tudo mudaria, a 13 de agosto, quando o avião onde seguia o candidato caiu em Santos, a caminho de mais um evento de campanha.
Abatida, com olheiras profundas e uma voz trémula. Foi assim que Marina reagiu à morte de Eduardo Campos, ao que chamou de “tragédia”, pedindo a deus que olhasse pela família do antigo candidato. “Durante estes dez meses de convivência aprendi a respeitá-lo, a admirá-lo e a confiar nas suas atitudes e nos seus ideais de vida. Foram dez meses de intensa convivência e, como eu disse, começámos a fiar juntos, principalmente na esperança de um mundo melhor, um mundo mais justo. (…) A imagem que quero guardar dele foi da nossa despedida de ontem: cheio de alegria, cheio de sonhos, cheio de compromissos.”
Uma semana depois, a Executiva Nacional do PSB confirmou Marina Silva como candidata ao Palácio do Planalto. Beto Albuquerque seria o número dois. Numa sondagem posterior, os indecisos, por exemplo, caíram de 14 para 9%. Esta nova peça no xadrez político brasileiro prometia um autêntico terramoto quando uma sondagem da Datafolha lhe dava 21% das intenções de voto, valor esse que subiria para 34% em duas semanas, o mesmo de Dilma. Na sondagem de 11 de setembro, a atual presidente deu um passo em frente, estacionando nos 36%, enquanto Marina recuou para os 33%, registando assim a primeira oscilação negativa. Estaria em quebra o estado de graça? Sim, uma sondagem publicada no primeiro dia de outubro confirmou que sim. Dilma aproximou-se da maioria (45%), enquanto Aécio Neves (20%) conquistou terreno e aproximou-se de Marina (25%). Ainda assim, a segunda volta continua a ser o cenário mais provável. Mas com uma diferença: já se fala que Dilma poderá ter superado a rival nas contas para o segundo turno. O que isto mudou em pouco mais de um mês…
Mas quem é a candidata do PSB? Maria Silva é casada com Fábio Vaz de Lima, um técnico agrícola que assessorava os seringueiros de Xapuri. Desse casamento nasceram duas filhas. Do primeiro casamento, que acabou em 1985, teve dois filhos. Foi católica seguidora da teoria progressista e social da Teologia da Libertação e depois mudou-se para a Igreja Evangélica.
A musa ideológica de Marina é Hannah Arendt, uma pensadora alemã de origem judaica, que viveu em Paris e Nova Iorque depois de lhe ver retirada a nacionalidade alemã durante a II Guerra Mundial, conta o El País. O artigo encontra pontos em comum entre textos de Arendt e o discurso da candidata presidencial. A crítica à “velha e arrogante política”, o desejo de reunir consensos alargados e a possibilidade de unir sonhos e pragmatismos são traços em sintonia. Isso e um artigo de Marina com seis anos de vida.
“O sentido da política é a liberdade. (…) O grande desafio da democracia é criar espaços múltiplos de participação política, onde os partidos sejam participantes e não guias. Os homens são capazes de realizar o improvável e o imprevisível. É o que a sociedade brasileira está fazendo. E os partidos ainda não ficaram sabendo”, escreveu Marina. A sua referência já havia escrito algo semelhante há algumas décadas: “Se o sentido da política é a liberdade, é nesse espaço que temos o direito de esperar por milagres. Não porque acreditamos neles, mas porque os homens, à medida que podem agir, são capazes de levar adiante o improvável e imprevisível, saibam eles ou não.”
“Para se colar à direita, Marina revelou que votou a favor de capitais privados na área da Saúde, mas vários jornais vieram mostrar que não foi assim. Mentiu” – Vasco Ribeiro.
Marina Silva insiste numa nova política, que pretende derrubar os partidos que normalmente governam o país (PT e PSDB). Na narrativa da candidata é comum ouvir-se e ler-se a palavra “eles”, como que numa tentativa de marcar as diferenças e ditar a distância para os demais. A subida do tom da campanha eleitoral acompanhou a escalada de Marina nas intenções de voto. Mas, e como já vimos em cima, os ventos mudariam com o avançar de setembro.
Marina tem sido acusada de incoerência, nomeadamente pelas mudanças de posição quanto ao agronegócio e casamento gay, que deixou insatisfeitos eleitores evangélicos. Numa entrevista à Globo, Aécio Neves afirmou que “o Brasil não é para amadores” e que vê “um número muito grande de contradições” em relação ao que o PSB propõe e o que praticou no passado. Também o tesoureiro do PT, Edinho Silva, teceu duras criticas a Marina. “Toda a vez que você faz um discurso contra partidos é perigoso. (…) O discurso fácil que cheira a postura demagógica leva a instabilidade”, afirmou. A candidata do PSB falou em “perseguição” e “desespero” dos adversários.
Para a face da corrupção que está acabando com a Petrobras, vamos oferecer a face da honestidade! É disso que eles têm medo! #SouMarina40
— Marina Silva (@MarinaSilva) September 14, 2014
Eles estão desesperados. E nós estamos animados para ganhar e fazer coisas boas para o Brasil. #MarinaEmBrasília #SouMarina40
— Marina Silva (@MarinaSilva) September 14, 2014
“A grande contradição de Marina é o agronegócio, que ela disse ser o maior vilão do Brasil. Agora já tem na equipa colaboradores do agronegócio. É algo que preocupa, este ataque, porque representa 23% do PIB do país”, explicou Vasco Ribeiro, professor de comunicação política na Universidade do Porto, que esteve um curto período de tempo em Minas Gerais a dar aulas. A escolha de Beto Albuquerque para número 2, alguém próximo do agronegócio, não será alheia a estas polémicas.
Um episódio que prometia agitar a campanha eleitoral foi a denúncia de Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras que está preso, de que diversos políticos estariam envolvidos no escândalo da petrolífera. O chamado homem-bomba elaborou uma lista de políticos que desviaram dinheiro ou fizeram negócios obscuros através de uma das maiores empresas do Estado brasileiro. Aécio Neves, o candidato do PSDB, chamou a este caso de “Mensalão 2”.
“Este caso da Petrobras não afeta só o Partido Trabalhista, que tem alguns ministros envolvidos. O Partido Socialista também sai afetado, porque Eduardo Campos também aparece na lista” – Vasco Ribeiro.
“A atual presidente da República controlou com mão de ferro essa empresa ao longo dos últimos 12 anos. Foi ministra de Minas e Energia e presidente do Conselho da Petrobras. Foi ministra da Casa Civil. É inadmissível ela alegar desconhecimento sobre isso, a exemplo do que fez seu antecessor com o mensalão”, disse Aécio.
ELEIÇÕES À PORTA
A France 24 chamou-lhe “Obama do Brasil”, pela promessa de mudança. José Dirceu, antigo ministro de Dilma, que está preso no seguimento do “caso mensalão”, disse que Marina era o “Lula de saias”, o que, tendo em conta a aura de que goza o antigo presidente, pode ter sido uma forma de afetar ou abanar a campanha de Dilma Rousseff.
Marcelo Moura, um professor de uma universidade de São Paulo, disse ao Financial Times que Marina “tem o passado de Lula e a cabeça de Fernando Henrique”. Talvez por isso, há quem diga que o programa do PSB é esquizofrénico e que a candidata tem um discurso vazio, que assenta essencialmente na pessoa.
“Proximidade a Maria Alice Setubal é vista com bons olhos. Os brasileiros veem como um sinal de força. É como nos Estados Unidos: a candidatura com mais dinheiro é a que ganha”.
Maria Alice Setubal, a filha do dono do poderoso Banco Itaú, colaborou na elaboração do programa do PSB e doou quase 30 mil euros. Alguns adversários levantaram dúvidas sobre esta ligação, enquanto alguns analistas concluem que o mercado poderá estar do lado de Marina, e que isso sossega os investidores. Para a economia, Marina pretende recuperar o “tripé macroeconómico” — câmbio flutuante, meta de inflação, que pretende fixar nos 4,5% ano, e disciplina fiscal. Veja aqui o que a brasileira promete fazer noutras áreas.
Se ganhar, Marina Silva já indicou que não deseja recandidatar-se. Esse é, aliás, um dos pontos incluídos na reforma política que propõe. “Do ponto de vista governativo é perigosíssimo. Mas há mais: propôs que decisões políticas fossem tomadas por consulta popular. É populismo puro. É um processo chavista. Mas vim há duas semanas do Brasil com a ideia de que ela ganhava”, explicou Vasco Ribeiro. As eleições presidenciais brasileiras estão agendadas para dia 5 de outubro. A segunda volta afigura-se como um cenário muito provável, mas esta história já deu muitas cambalhotas e está numa fase imprevisível.