Faltam dois anos para as eleições autárquicas e o PS já faz contas de cabeça para perceber qual será a melhor forma de executar uma missão reconhecidamente difícil: derrotar o atual presidente da Câmara de Lisboa, o “incontestavelmente popular” (como se ouve no partido) Carlos Moedas. Para Marta Temido, presidente da concelhia de Lisboa e um dos nomes mais desejados para encabeçar a candidatura do PS em 2025, há um caminho que pode ajudar — e muito — os socialistas: a construção de um “caminho partilhado” com os partidos à sua esquerda que possa acabar por resultar numa megacoligação contra Carlos Moedas.
O assunto já faz parte das conversas de corredor da esquerda em Lisboa, no PS e não só, embora o grau de disponibilidade dos partidos para esse tipo de soluções varie bastante. Ainda assim, na cabeça da ex-ministra da Saúde as vantagens são claras: “Se olharmos para o passado, ele mostra que Lisboa tem progredido sempre quando a esquerda se une e quando tivemos soluções que permitiram esse trabalho em conjunto, até em situações anteriores à geringonça”, recorda em declarações ao Observador. “A História diz-nos que sim, que é uma boa solução”.
A esta distância, a líder da concelhia lisboeta assume que o PS “tem, obviamente, todo o interesse e disponibilidade para dialogar com as outras forças de esquerda”, assim como com forças independentes ou da sociedade civil — exemplo disso, frisa, é o “fórum Lisboa” que quer criar para ouvir e envolver vozes distintas, “que permita uma visão não estritamente partidária”. Em resumo: para a líder do PS Lisboa — e possível futura candidata a autarca na capital — existem “planos de fazer um caminho que permita soluções partilhadas“.
Mas também está presente a noção de que “não basta a vontade de um” — e que, mesmo que da parte do PS exista “um sentimento amplamente partilhado nas conversas” entre membros, pelo menos, da concelhia de Lisboa, falta saber a vontade dos outros partidos e perceber se os “aspetos mais conjunturais” que marcarem a eleição de 2026 permitirão a aproximação de uma esquerda que vive agora separada pela maioria absoluta de António Costa.
Para Temido, a prioridade é clara: a esquerda tem de se focar em chegar a resultados — e, mais do que as suas “divisões”, tem de valorizar aquilo que a une, sobretudo se estiver em causa o desafio de superar uma eleição difícil contra o incumbente Moedas.
Esquerda entre “necessidade” de derrotar Moedas e o ceticismo
O Observador sabe que a solução contaria com alguns entusiastas no PS e na esquerda — a juntar a outros tantos céticos. A conversa, ainda muito embrionária e longe de ser uma hipótese formalmente discutida ou sufragada no PS, já chegou ainda assim aos corredores de outros partidos, que olham com cautela — e curiosidade — para este cenário.
Para o Bloco de Esquerda, uma solução conjunta poderia fazer sentido: o partido gostou da experiência de influência que teve na política municipal quando negociou um acordo com Fernando Medina, no mandato anterior, e passou a última campanha a pedir ainda mais força que lhe permitisse aumentar o seu poder negocial na relação com o PS.
Nessa altura, a candidata do Bloco — e atual vereadora em Lisboa — Beatriz Gomes Dias ia insistindo: o Bloco estava dentro da solução, mesmo que Medina insistisse em ignorar os eventuais parceiros e fazer campanha pelo voto útil. O final da história é conhecido: Medina recebeu a notícia da surpreendente derrota depois de ter passado a campanha a trabalhar para chegar à maioria absoluta; o Bloco conseguiu apenas segurar o seu lugar na vereação, sem crescer mais, e perdeu a influência que tinha no Executivo municipal.
Ou seja: para o partido de Mariana Mortágua, é claro que mais à frente se pode colocar a “necessidade” de ser puramente pragmático, como regista que o PS está a ser: “Sabe que só ganha se houver uma megacoligação, como a que Moedas montou [em 2021]”, comenta uma fonte do partido. Sem “contactos formais”, os bloquistas têm, no entanto, noção de que parte do PS agita o cenário de uma aliança futura e não afasta liminarmente a hipótese — tudo depende das circunstâncias em que a esquerda (e Moedas) chegar a 2025.
No PCP, para já, não se dá qualquer espaço para alimentar a hipótese. Ao Observador, fonte oficial do partido responde de forma cortante: “Não comentamos cenários especulativos e sem fundamento”. A dois anos de distância, o PCP — que já nos tempos de Medina se mostrava cético em relação a possíveis alianças com os socialistas — nem quer ouvir falar do assunto. Mas há também quem, tal como Marta Temido, recorde outros passados comuns da esquerda, incluindo os comunistas, particularmente em Lisboa: foi na maior autarquia do país que se fizeram os primeiros testes precursores do que viria a ser a geringonça, começando por acordos entre PS e PCP.
Em 1989, Jorge Sampaio avançava para a Câmara ao mesmo tempo que mantinha os discretos contactos com responsáveis comunistas de topo para garantir “uma coligação ou um apoio” do PCP, a que se juntariam depois, numa frente de esquerda mais ampla, forças como a UDP e o PSR (ambos na origem do Bloco de Esquerda) ou o PEV. Na altura, o PS partia de uma base baixa, com cerca de 17% dos votos, e toda a ajuda era pouca.
A fórmula seria repetida nos anos 90 por João Soares — embora as relações com o PCP acabassem, nessa altura, por azedar — e o PS chegaria, mais tarde, a acordos de governação na Câmara com vereadores do Bloco de Esquerda, tanto no tempo de António Costa como de Fernando Medina. Noutros setores à esquerda, ironiza-se que as hipóteses de uma coligação vão sendo atiradas para o ar para testar as reações das outras forças, recordando que será sempre mais fácil fechar acordos pós-eleitorais, já com a correlação de forças entre os partidos bem definida, do que fazê-lo às escuras, antes da ida às urnas. Uma coisa é dada como certa: o PS ainda não sabe “como dar a volta para ganhar ao Moedas“, daí que a hipótese seja posta em cima da mesa.
[Ouça o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o projeto de coligação contra Moedas]
PS dividido. Entusiastas registam dificuldades
No PS, também se regista que pode haver diferenças na forma como os vários partidos encaram este cenário. “A esquerda não lida toda com a mesma naturalidade com a direita no poder”, atira um socialista de Lisboa que vê a ideia com simpatia, convicto de que mais depressa o Bloco se disporá a ajudar o PS a derrotar Moedas do que o PCP o fará.
O que é certo é que entre socialistas se regista alguma divisão nas opiniões, ainda cautelosas, sobre o assunto. Parte do PS Lisboa estará com Marta Temido, de olhos postos na missão de tentar vencer Moedas: “O PS desde 2007 que faz sempre as coisas em parceria [com coligações com o Livre e o Cidadãos por Lisboa]”. O único “contra” apontado por este dirigente socialista é que, após as últimas eleições, o partido fez um balanço e concluiu que a sigla do PS combinada com a dessas outras forças “não ajudou”: “As pessoas baralharam-se um bocadinho a votar. É o único contra que vemos”.
Deste lado do PS, anotam-se vantagens para o partido: Moedas é considerado, como o Observador tinha escrito, uma ameaça maior do que Luís Montenegro e é “incontestavelmente popular, nas ruas e nas redes sociais”. Daí a conclusão: “Não é líquido que”, mesmo com o “impacto” de Marta Temido nas ruas e a sua popularidade no contacto com os lisboetas (e nas sondagens), o PS “recupere a Câmara” — “toda a ajuda é pouca”. As vantagens podem estender-se a uma esquerda que tema não ter uma palavra a dizer numa “corrida muito bipolarizada”.
Outro simpatizante da ideia no PS defende que ela faz sentido de um ponto de vista estratégico: “Fazer oposição tentando disputar o centro com Carlos Moedas é muito difícil”. Ou seja, os socialistas devem concentrar-se num discurso mais à esquerda que divida a corrida e lhe traga votos novos, a que Moedas não consiga chegar: “Precisamos de ganhar com os votos da esquerda”.
Mas, mesmo deste lado, são reconhecidas as várias dificuldades no complicado caminho que levaria a uma coligação. Desde logo, dada a necessária partilha de lugares e de poder que teria de ocorrer, e que mesmo no cenário atual, com uma aliança de menores dimensões, já provoca algum mal estar entre os socialistas de Lisboa — muitos deles “moderados” e sem inclinações “esquerdistas”, reconhece uma fonte.
Por outro lado, admite-se a dificuldade que o próprio ciclo político impõe: com um PS absoluto e uma esquerda empenhada em fazer-lhe oposição sem tréguas, será difícil que se apresentem juntos na Câmara de Lisboa a apenas um ano de eleições legislativas.
Resta saber se a popularidade de Moedas será o suficiente para servir de cola à esquerda e ultrapassar as hesitações de vários partidos. Em 2021, a tese corrente era que o atual autarca não constituía ameaça suficiente para fazer com que a esquerda ultrapassasse as suas diferenças e, por isso, não serviria de cimento a uma aliança em Lisboa. O tempo, e os votos, provaram que Moedas seria afinal um obstáculo bem maior do que estava previsto, o que leva a que as opções aparentemente mais improváveis voltem a ser, pelo menos, admitidas.