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Eugénia Queiróz foi mãe em 2012. “Só me apercebi que o que se passou não era normal muito tempo depois, a falar com outras pessoas. Tudo o que me disseram para fazer eu fiz. Fui ensinada a obedecer aos médicos na preparação para o parto no centro de saúde”, desabafa. Depois da entrada na maternidade, ouviu palavras rudes de enfermeiros, teve que esperar horas pela epidural que tinha dito querer.
Mas o pior aconteceu durante o parto. “Eu não me podia mexer, não podia falar, não podia fazer nada. O bebé estava a nascer com a cabeça de lado. A enfermeira disse que ia fazer uma coisa e não me explicou o quê. Cortou-me, meteu a mão lá dentro e rodou o bebé. Tive dores horríveis. A única coisa que me disse foi que tinha que fazer aquilo senão ia para cesariana. Depois chamou o médico e disse: ‘Põe-te lá aí que ele é pequenino e vai rápido’. O médico disse ao meu marido para não se assustar. Mete-se em cima dum banco e põe-se em cima de mim, com os cotovelos a fazer força para o bebé sair. Fez o peso todo em cima de mim.” Depois do nascimento, Eugénia esteve uma hora a ser cosida e a sentir tudo. As palavras saem em catadupa mas o tom ainda é emocionado. “Fiquei quase dois meses sem me conseguir sentar. Não conseguia andar. Foram 20 e tal pontos e fiquei traumatizada. Nem conseguia entrar na banheira para tomar banho. Fiquei mais inválida do que estava no final da gravidez.”
O caso de Eugénia Queiroz é um caso de violência obstétrica. Sim, a expressão existe. Sara do Vale, presidente da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e no Parto, explica o que significa: “É tudo o que é feito contra a vontade da mulher ou sem ela ter sido consultada”. Sandra Oliveira, uma das fundadoras do projeto Mal Me Quer (ver caixa), diferencia violência de abuso: “Abuso obstétrico pressupõe que estão a ser feitas práticas com pressão e sem consentimento informado. Muitas vezes, debaixo da pressão, há manipulação. A violência obstétrica é quando há mesmo violência física.”
Organização Mundial de Saúde quer acabar com maus-tratos no parto
Em 2014, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou a declaração sobre “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde”. No documento, a OMS admite a existência de “violência física, humilhação profunda e abusos verbais, procedimentos médicos coercivos ou não consentidos (incluindo a esterilização), falta de confidencialidade, não obtenção de consentimento esclarecido antes da realização de procedimentos, recusa em administrar analgésicos, graves violações da privacidade, recusa de internamento nas instituições de saúde, cuidado negligente durante o parto levando a complicações evitáveis e situações ameaçadoras da vida, e detenção de mulheres e seus recém-nascidos nas instituições, após o parto, por incapacidade de pagamento.”
A Organização Mundial de Saúde defende que esta violência “ameaça o direito à vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação”. Para evitar e eliminar os maus-tratos durante o parto, a organização aconselha a melhorar a qualidade dos cuidados de saúde materna, dando “apoio social através de um acompanhante, mobilidade, acesso a alimentos e líquidos, confidencialidade, privacidade, escolha esclarecida, informações para as mulheres sobre os seus direitos, mecanismos de acesso à justiça em caso de violação dos direitos, e garantia dos melhores padrões da assistência clínica”.
“Foi usada por médicos estagiários”
A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e no Parto fez recentemente um inquérito sobre “Experiências de Parto em Portugal”. As respostas surpreenderam Sara do Vale e a equipa. “Tínhamos ideia de que havia um nível de medicalização muito grande. Mas quando começaram a chegar as respostas, havia histórias mesmo tristes de mulheres que foram maltratadas. Isso foi chocante e difícil. Foi o que nos impulsionou a fazer a campanha ‘Sombras do parto’.”
Sara do Vale conhece pessoalmente várias histórias de violência obstétrica contadas na primeira pessoa. “Conheço o caso extremo de uma mulher que ficou com stress pós-traumático, acompanhamos uma que ficou incontinente aos 30 anos na sequência de uma episiotomia (corte no períneo). Já tivemos um processo muito muito grave que acabou na morte do bebé e em que um casal nos pediu ajuda.”
Que associações dão apoio às mulheres?
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Há associações que acompanham mulheres vítimas de violência obstétrica e dão apoio jurídico e psicológico. Tome nota dos contactos:
Projeto mal me quer
Website | E-mail
Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e no Parto
Website | E-mail
Rua Ilha de S. Tomé n. 9 CV esq.
1170-184 Lisboa
Contacto Telefónico:
967 761 925 ou 218 152 230
Também Sandra Oliveira já ouviu um pouco de tudo. “Há uns meses chegou-me o relato de um filme de terror: uma mulher foi de tal ordem maltratada que saiu de cadeira de rodas, cheia de hematomas na barriga. Isto acontece com muita frequência. Muito mais do que se possa imaginar.” Outro caso que continua a indignar esta doula é de uma jovem mãe de 16 anos. A voz altera-se quando conta o que se passou: “Perguntou-me, a medo, se era normal fazerem-se vários toques depois do parto. Claro que não é normal! Ela não sabia e contou-me a chorar. Tinha sido usada por médicos estagiários. Isto não pode ser!”
Se estas histórias se repetem o que fazer para as evitar? “O parto não é a melhor altura para fazer valer os seus direitos. O ideal é a mulher fazer o plano de parto, o acompanhante estar com ela e estar a par do plano de parto. Pequenas coisas ditas de forma simpática podem fazer a diferença.” Sara do Vale diz que cada vez mais se aceitam estes documentos, que mais não são do que pôr no papel a vontade da mulher para o trabalho de parto e parto. “Não há um protocolo nacional para os planos de parto. E é pena, porque acaba por depender das pessoas que se encontra e das equipas.” Mesmo munida desse documento, Sara aconselha mente aberta. “O parto pode mudar a qualquer momento. O plano de parto não são os dez mandamentos escritos na pedra. É preciso que a mulher seja informada e consultada a cada passo.”
“Há uma hierarquia de preocupações”
João Bernardes é membro do Colégio de Obstetrícia e Ginecologia da Ordem dos Médicos e assume que a violência obstétrica o preocupa. Mas “há uma hierarquia de preocupações”. “A principal preocupação é tratar as pessoas com dignidade e com segurança, segurança em termos de mortalidade. Queremos que tanto as grávidas como os bebés nasçam e não corram risco de vida nem de ficarem com sequelas, fazendo isso de forma digna.” Este obstetra e professor universitário admite que podem existir excessos ou mal entendidos. “Sentimos que, às vezes, as pessoas têm expectativa de ter um parto mais natural e menos dirigido pelos profissionais de saúde e, às vezes, poderá ter havido pontualmente alguma falha de comunicação ou de informação e as pessoas não entenderem bem o que vai acontecer. Mas temos os nossos regulamentos. As pessoas assinam consentimentos. Mas o parto tem tantas variáveis que é genérico.”
Em Portugal, a episiotomia é uma das intervenções mais comuns. O nosso país é, aliás, o que tem a taxa mais elevada da Europa: 70%, quando a Organização Mundial de Saúde recomenda que não ultrapasse a média de 10%. Além disso, tem taxas elevadas de cesarianas e de induções de parto. João Bernardes diz que “quando há mais tecnologia temos mais capacidade de intervir com mais segurança mas também com o risco de nos afastarmos, às vezes, das expectativas de humanização. É preciso gerir isso e reavaliar a situação, auditar as situações e introduzir essa nota de re-humanização e humanização constantemente”.
Daí que saliente as alterações nos protocolos. “Não tínhamos possibilidade de ter acompanhante com a grávida e já temos. A maior parte dos blocos operatórios já permite que os pais assistam. Ainda não conseguimos em todos os partos, mas estamos a trabalhar para isso. A diminuição da taxa de cesarianas também sido uma preocupação grande e tem tido uma evolução. Temos feito intervenção no sentido de diminuir as episiotomias e a nível nacional temos diminuído. Portanto tem havido uma evolução.”
Ordens de Médicos e Enfermeiros sem queixas
Sandra Oliveira reconhece que muitas mulheres não chegam a apresentar queixa. “Ficam em níveis básicos de sobrevivência, de tal forma maltratadas e com um bebé nos braços para cuidar. Quando existe violência física e abuso há mesmo stress pós-traumático. Claro que não ficam em condições de reclamar.” À Ordem dos Médicos e à Ordem dos Enfermeiros não chegaram reclamações. João Bernardes diz não haver queixas contra médicos por violência ou abuso obstétricos no Colégio de Obstetrícia e Ginecologia da Ordem dos Médicos nem no Conselho Disciplinar da Região Norte. Vítor Varela, presidente da mesa do Colégio de Saúde Materna da Ordem dos Enfermeiros é claro: “Até hoje, sobre esta matéria, nunca recebemos nenhuma queixa. Nunca.”
E se quiser apresentar queixa?
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Para apresentar queixa o primeiro passo é escrever um relato sobre o parto, descrevendo o que aconteceu. A Associação para os Direitos da Mulher na Gravidez e no Parto aconselha a apresentação de queixa junto da Entidade Reguladora da Saúde através do Livro de Reclamações ou na internet, aqui. Se a queixa for contra um profissinal de saúde específico, também pode ser apresentada reclamação nas ordens dos Médicos ou Enfermeiros (em carta dirigida ao Bastonário da Ordem)
Joana, não é o seu nome verdadeiro mas aquele que preserva a sua identidade, ainda não apresentou queixa. Mas o tema continua a mexer muito com o casal. “O meu marido cada vez que fala sobre isto fica com testosterona aumentada e diz ‘eu levo-os para tribunal!’” Ela queria um parto o mais natural possível mas não foi isso que aconteceu. “Tive um trabalho de parto de 30 horas. Eu tinha plano de parto, mas desde o início desconsideraram a minha recusa em levar epidural. Houve algum abuso verbal ligeiro.”
Mas o pior aconteceu durante o que julgava ser uma avaliação médica. “Meteu a mão dentro e senti uma dor muito grande e gritei: ‘O que está a fazer?’ Ele estava a fazer dilatação manual. E ainda me disse: ‘Se não for assim tenho que lhe abrir a barriguinha!’ Não respeitou o consentimento informado.” Durante o nascimento ficou sem o marido, obrigado a sair porque “o parto foi intervencionado com ventosas e fórceps”. Joana viu o parto ter sido feito por uma interna, apesar de terem dito ao marido que não, o que reforçou a suspeita: “Na sala de espera, estavam dois ou três pais e todos os partos tinham sido com ventosas. É muita coincidência! Houve um conjunto de factores que nos levam a pensar até que ponto não estavam a experimentar os partos instrumentalizados com os internos.”
Saiu do hospital com uma bebé saudável nos braços. Mas não estava bem. “Todos os dias chorava à noite. Tive um pós-parto terrível a nível físico. Fiquei com uma hemorroida muito grande. Não me consegui sentar durante três semanas. É muito debilitante.”
Sandra Oliveira é doula há 10 anos e já acompanhou mais de 150 partos, entre os quais o de Joana. Esta ativista do parto defende que a “Direção-Geral de Saúde tem que ter consciência que isto acontece em Portugal e lançar orientações”. Além disso, defende que “os médicos estão formados para intervir e num parto quanto menos intervenção houver melhor. Não estão preparados para partos fisiológicos.” As mulheres também têm que se informar. “Se, nos dias de hoje, temos mulheres a achar que a episiotomia é normal então receberam informação desatualizada ou não a procuraram. Estamos ainda longe de as pessoas se responsabilizarem pela sua saúde e por norma entregam tudo nas mãos dos profissionais de saúde. Mas isto não dá o direito a ninguém de cometer abuso ou violência obstétrica.”
“Quanto menos mexermos melhor”
Vítor Varela, presidente da mesa do Colégio de Saúde Materna da Ordem dos Enfermeiros, admite a preocupação com a violência obstétrica, que diz ser uma questão de direitos. Reconhece que há maior consciência do problema, mas ainda há procedimentos errados. Vítor Varela sublinha que “os profissionais de saúde devem aceitar chegar a compromissos com o que as pessoas solicitam quando vão ter um filho”.
O enfermeiro obstetra admite que “há confronto entre as expectativas das pessoas e os profissionais. E não sabemos à partida gerir de uma forma eficaz e eficiente este tipo de questão, para a qual não fomos educados na altura em que tirámos os nossos cursos”. Agora o tempo é de ouvir os utentes e “não fazer coisas por rotina”.
Para o presidente da mesa do Colégio de Saúde Materna da Ordem dos Enfermeiros, é preciso aceitar e incentivar a autonomia das mulheres e isso passa pela elaboração e discussão do plano de parto. Mas nem todos os profissionais aceitam debater procedimentos em pé de igualdade com mães e casais. “Ainda não temos o plano de parto institucionalizado. A Direção-Geral de Saúde tem um papel muito importante. Há pouco tempo saiu o programa nacional de vigilância da gravidez de baixo risco e vem lá o plano de parto. Está na altura de todos os profissionais, em termos operacionais e relacionais, o porem a servir e a apoiar as respetivas utentes. Estamos a falar, na maior parte dos casos, de partos de baixo risco. Quanto menos mexermos neste processo melhor funciona a natureza.”
O obstetra Diogo Ayres de Campos reconhece que distinguir os casos de maior risco obstétrico dos de menor risco é essencial para intervir menos. “Sabemos que em 90% das vezes, em média, não é necessário grande interferência. Mas nos 10% restantes a intervenção é necessária e resulta em muito menos doença e morte. É preciso é escolher bem estes 10% e não aplicar as regras desses 10% à totalidade da população”, explica.
Este profissional fez parte de uma comissão da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) promotora da iniciativa “Hospitais Amigos das Mães e dos bebés”. O objetivo é precisamente “a humanização e a desmedicalização”das salas de parto de todo o mundo. Ou seja, promover cuidados tecnicamente bons mas “que ao mesmo tempo sejam mais empáticos e mais individualizados e respeitadores da dignidade da pessoa”.
O documento estabelece dez pontos para uma instituição ser designada amiga das mães e dos bebés. São eles:
- Permitir às mulheres no primeiro estágio do trabalho de parto comer, beber e andar e, se não houver contra-indicação médica, escolher a posição que lhes pareça melhor durante o segundo e terceiro estágio do parto;
- Garantir condições não discriminatórias às grávidas seropositivas e aos seus bebés, bem como aconselhamento pós-parto;
- Proporcionar privacidade à mulher durante o trabalho de parto;
- Dar condições para o acompanhamento do trabalho de parto por pelo menos uma pessoa da escolha da mãe, que seja culturalmente apropriada;
- Proporcionar um atendimento que respeita a individualidade da mulher, o seu contexto cultural e pessoal, bem como os valores que rodeiam o nascimento, incluindo às mulheres que vivenciam a perda perinatal;
- Não permitir abusos físicos, verbais, emocionais ou financeiros durante o trabalho de parto, nascimento e pós-parto;
- Proporcionar cuidados a custos suportáveis ou gratuitos e assegurar a sua transparência;
- Não utilizar, por rotina, práticas que não são baseadas em evidência científica, tais como: episiotomia, indução, separação da mãe e do bebé;
- Encorajar os profissionais, garantindo-lhes formação adequada, a proporcionar métodos de alívio da dor quer farmacológicos quer não farmacológicos;
- Promover o contacto imediato pele com pele e apoiar ativamente todas as mães a dar colo aos bebés e a amamentá-los, em exclusivo.
Por agora, Diogo Ayres de Campos afirma que “não passa de um documento de boas intenções”. A ideia é que os governos e as entidades europeias agarrem na ideia e a ponham na prática.
“Temos que olhar para estas mulheres como vítimas”
A psicóloga Jordana Pinto Cardoso acompanha mulheres que sofreram violência durante o parto e não tem dúvidas de que a probabilidade de sofrerem de depressão pós-parto aumenta. Além das exigências habituais com o nascimento de um bebé, estas mulheres vivem também “o luto do parto que não se teve” e a “dificuldade de conseguir espaço para expressar esses sentimentos, pensamentos sobre o que aconteceu e o que não aconteceu”.
Outro dos traços comuns destas mulheres é a culpabilização. “Pensam nelas como culpadas: ‘Se eu tivesse dito isto ou se eu tivesse feito aquilo’. Os ses não nos ajudam a mudar o que aconteceu. Temos que olhar para estas mulheres como vítimas. Não são culpadas”.
Além da depressão pós-parto há também “casos de psicoses do puerpério associadas a violência obstétrica”. Jordana Pinto Cardoso diz que também pode haver interferências com a amamentação, com os cuidados ao bebé e com a vontade de estar com o recém-nascido.
Outra vida psicológica em jogo é a do filho. “O bebé tem também uma vida emocional que pode estar em risco.” Jordana acompanha também mulheres grávidas de um segundo filho e que equacionam o parto em casa depois de episódios de abuso ou violência no nascimento do primeiro filho. O medo que tudo se repita fica lá, mesmo se recalcado. Uma gravidez fá-lo voltar a sair. Mas há quem o sinta sempre bem vivo.
“Normalmente, no momento do pós-parto, a sensação é muito evidente e algumas verbalizam logo que não querem voltar a ter filhos.” Foi o que aconteceu com Eugénia. Quase quatro anos depois do nascimento do seu filho, as marcas persistem e a voz treme quando diz que “sim, há muito medo de voltar a engravidar e passar por tudo outra vez.”