A ilha de Bergman é real e fica na Suécia. Chama-se Fårö e entrou na vida do realizador quando este rodou “Em Busca da Verdade” (1961). Pouco tempo depois, fez lá morada e por lá assinou muitos dos seus filmes. O local indissociável do imaginário do cineasta sueco, é fundamental no seu cinema e na sua vida. Mia Hansen-Løve, no filme que agora chega às salas portuguesas, intitulado precisamente “A Ilha de Bergman”, aproxima-se como poucas vezes vimos (talvez nunca assim) desse imaginário bergmaniano que é bem real — como como quando, logo no início, nos mostra a cama de casal de “Cenas da Vida Conjugal”, no quarto onde irão ficar os protagonistas do filme que a própria realizou: Chris (Vicky Krieps) e Tony (Tim Roth).
São dois realizadores que vão para a ilha de Fårö para desfrutar da Bergman Week, semana verídica dedicada ao realizador, mas também à procura de inspiração para os seus próprios filmes. Muitos vão para a ilha fazer residências, à procura de ideias para os seus filmes. Mia Hansen-Løve usa esse recurso para contar a história de uma autora de cinema (Chris) que procura, mais do que inspiração: procura emancipação e liberdade para o seu próximo filme. O argumento e a vida privada de Chris misturam-se e tanto no cinema como no dia-a-dia, vemos aquilo que pode ser o drama, a alegria, o medo e o encanto das relações humanas.
O deslumbre por Ingmar Bergman, pelo filmes do realizador sueco e pelos respetivos objetos está sempre presente, mas nunca toma conta do filme. Mia Hansen-Løve usa a ilha como artifício para uma história romântica que por vezes quase tocar a comédia (mais europeia do que norte-americana). A realizadora esteve em Portugal e falou com o Observador sobre este novo filme, as relações entre mulheres e homens e sobre sobreviver à pandemia com um trabalho por estrear.
[o trailer de “A Ilha de Bergman”:]
Como é que começou a sua relação com a Ilha de Fårö?
Durante muito tempo foi um sítio que apenas imaginava, uma fantasia. Acredito que seja assim para muitos realizadores, não existem muitos lugares tão associados a um realizador como este, que está para sempre ligado a Ingmar Bergman. Foi algo que cresceu em mim depois de ver alguns dos seus filmes que foram ali rodados, depis de ter lido a sua biografia. Após ele morrer, houve um livro com itens seus, criado para um leilão, e fiquei impressionado com as fotografias do livro: os objetos, as casas… Era muito poderoso. Sei que é muito infantil, quando somos crianças, lemos um conto de fadas, passamos as páginas e as imagens criam um imaginário único na nossa cabeça. Aconteceu-me o mesmo ao olhar para estas imagens. Ainda me lembro de ver a fotografia do carro dele, um carro lindo dos 1970s, e de me sentir convidada para entrar naquela história. Mas depois…
Aconteceram-lhe outros cruzamentos de ideias.
Sim. Pouco depois disso estive com a Greta Gerwig. Eu tinha acabado de filmar o “Eden”, e ela tinha estado lá, com o Noah Baumbach, e falou-me do espaço e da Bergman Week. Simultaneamente, comecei a estar envolvida com uma série de coisas e de pessoas que me atraíram para a ilha.
Os objetos têm uma grande presença no filme. Mas parece que não fez um grande esforço para eles estarem lá, não parece que tenha sido essa a motivação do filme.
Não foi preciso fazer um grande esforço para colocar referências do Bergman no filme. Até porque, de qualquer das formas, não estou muito interessada em referências. Estou interessada em filmar objetos como um meio para estabelecer relações entre o quotidiano, a realidade e o invisível, o nosso interior. Acho que foi isso que me inspirou quando vi as fotografias daquele livro, aqueles objetos banais, da sua vida, era uma forma de entrar no mundo. Não tem a ver com a sacralização da sua vida, como os groupies fazem, mas com a minha crença de que o cinema serve para criar o invisível a partir daquilo que é visível e os objetos são essenciais para isso.
Já que estamos no tópico de groupies, o Bergman Safari [tour em volta do mundo de Bergman na ilha de Fårö e que aparece no filme de Mia Hansen-Løve] existe mesmo?
Sim, existe sim. Só alterei o autocarro em que é feito. Não gosto dos carros modernos, decidi usar um autocarro antigo.
Menciona vários filmes de Bergman no seu próprio filme. Um deles é “Lágrimas e Suspiros”, que os protagonistas veem. Chris descreve-o como um filme de terror sem catarse. A expressão é sua?
Sim. É uma questão que coloco a mim mesma, porque é que ele fez “Lágrimas e Suspiros”? Ele queria que as pessoas sofressem, enquanto tentam responder a esta pergunta: como vai ser quando se morre? Ainda não tenho a resposta. A estética do filme deprime-me muito, é muito poderoso e importante. Mas não consigo dizer que gosto, não é um filme de que se possa dizer que se goste. Não o verei de novo, a não ser que seja obrigada.
É uma reação comum a esse filme, parece-me.
Não se pode gostar de “Lágrimas e Suspiros”. Só temos de o ver. Há muitos filmes do Bergman que podemos ver e rever e ter prazer em ver, mas não o “Lágrimas e Suspiros”, “O Sétimo Selo” ou a “A Hora do Lobo”, na minha opinião.
Há pouco mencionou Greta Gerwig. Ela foi a sua escolha inicial para interpretar Chris. Mas depois escolheu a Vicky [Krieps]…
A Greta teve de abandonar o projeto, pouco antes das filmagens. Coincidiu com “Mulherzinhas”, ela só poderia fazer o filme naquela altura. Foi inesperado… Vicky não fazia parte do plano, mas decidi por ela muito rapidamente. Sou grande fã dela desde que a vi em “Linha Fantasma” [de Paul Thomas Anderson]. Muitas vezes, não tem a ver com o quão bom achamos que alguém é a representar, mas sobre como nos relacionamos com essa pessoa ou como a imaginamos integrada no mundo que estamos a construir. Existia algo sobre a sua presença, o balanço entre vulnerabilidade e força, algo que emanava dela, e isso criou uma ligação muito forte comigo. É o tipo de atriz que pertence aos meus filmes. Ainda mais do que a Greta, adoro a Greta, mas ela é diferente, muito americana. A Vicky é europeia, trouxe algo que está mais próximo do meu mundo, mais melancolia. Isso tornou o filme ainda mais pessoal, ela está mais próxima de mim em termos de sensibilidade.
Como escolheu o restante elenco?
A Mia Wasikowska e o Anders Danielsen Lie estavam comigo desde o início. Foram as minhas primeiras escolhas. Sou uma grande fã da Mia, há algo na sua inocência que me atrai imenso. Há algo na sua presença… transmite muita inocência e emoção. Acho que ela gostou muito de fazer parte deste projeto, porque está mais habituada a produções maiores. Eu sentia que isto era tudo fresco para ela, uma alegria, um prazer de estar neste filme, que era diferente do resto que ela faz. Sentia-a mais próxima de si, e isso foi ótimo para mim e para o filme. O Anders conheço-o desde o “Oslo, 31 de Agosto”, assim que o vi, quis que um dia participasse num filme meu.
E o Tim Roth?
Apareceu mais tarde. Filmámos durante dois verões, estava à procura do parceiro ideal para a Vicky. Demorou muito tempo… primeiro queria um ator norte-americano. O Tim não é norte-americano, mas há algo complexo nele de que gosto muito. Ele interpreta o tipo duro em alguns filmes, mas queria o Tim Roth frágil, que ele não gosta de mostrar, mas que existe, na forma como anda, como fala…
É algo que não se vê com frequência. Lembro-me de ele ter estado muito exposto naquele filme que o próprio Tim Roth realizou, o “Zona de Guerra”.
O facto de ele ter realizado esse filme, que é tão pessoal e escuro, que mostra outra parte dele, isso tocou-me particularmente. Foi uma das razões que me fez acreditar que ele poderia interpretar um realizador, porque ele de facto já foi um.
Vê a personagem do Tim Roth com uma certa dominância masculina?
O filme é sobre uma emancipação, numa relação emocional, mas também numa relação artística. E há uma dominância porque ele é mais velho, tem uma carreira maior e mais completa. É uma pessoa mais realizada. São duas personalidades diferentes. Há fragilidade nele, mas o filme não a explora muito porque é sobre ela: quanto mais se aproxima dela, mais se afasta dele. No início, parece que é sobre eles, ambos, mas não. O filme é sobre esse movimento, dele para ela. Não exploro quem ele é, mas o filme não era para ser contra a personalidade dele, melhor dizendo, estando do lado dela e contra ele. Não é a minha forma de escrever. Só consigo escrever filmes nos quais tenho empatia por todas as personagens.
Diria que é sobre emancipação?
Sim. E sobre o fim de uma relação, os últimos momentos. Não sabemos se existe esse momento, o final, mas sentimos que há qualquer coisa que acaba e o filme é sobre isso, esse percurso.
Falei nesse lado dominante porque parece muitas vezes que ela não é ouvida.
Pois, claro. Talvez ele a tenha ouvido de mais e está cansado. Percebo que ao ver o filme fique a ideia que ele não lhe dá tanta atenção. Mas, na minha perspetiva, ele tem boas intenções, ele tenta ajudá-la. Ele apoia-a muito, suporta-a, mas está muito enfiado no seu mundo. Esse é o problema de quem escreve, dos artistas… ela também está no seu mundo, por exemplo. Ambos têm os seus jardins secretos, em que nenhum pode entrar, ela simplesmente é mais aberta sobre isso. É difícil artistas viverem juntos e comunicarem e o filme medita sobre isso, quanto partilhamos quando escrevemos, o que é que a cumplicidade significa e até que ponto podemos estar juntos enquanto artistas e pessoas.
Uma das primeiras coisas que se ouve sobre a ilha é a hostilidade dos locais em volta de perguntas sobre Ingmar Bergman. Isso é verdade?
A maioria das pessoas é simpática. As pessoas ligadas ao legado do Bergman, ou que têm uma ligação ao seu passado, são muito simpáticas. E ficam radiantes por se estar a filmar na ilha. Mas são pessoas insulares. Houve alguns dias em que estávamos a fazer prospeção em alguns locais e algumas pessoas meteram troncos de árvores no caminho, para os carros não passarem. Tivemos de tirar um a um… e no outro dia estavam lá outra vez. Isso foi a coisa mais hostil que presenciei. Mas essa frase que se ouve no filme, é algo que ouvi, claro. Quando o Bergman era vivo, os vizinhos dele, ou quem o conhecia, não diziam onde era a sua casa. Porque o Bergman estava cansado de ver turistas em volta do seu espaço e da sua vida.
Há aquela personagem que fala dele de uma forma bastante hostil. Isso também existe na ilha?
Não, não na ilha. Senti isso de alguns suecos, pessoas que conheci em festivais na Suécia… aquilo que se ouve no filme foi algo que ouvi dessas pessoas. Mas na ilha não, toda a gente o respeita. Pelo menos as que conheci.
A pandemia atrasou a produção do filme?
Quando tudo começou, já tinha o filme terminado. Tive de esperar um ano… durante um ano nada aconteceu e não mudei nada no filme.
Como foi este ano e meio para si?
Foi uma merda, odiei. Foi um ano e meio em que não estive tão interessada no cinema, tive várias questões familiares, fui mãe novamente, entre outras coisas. Sabe a história de “A Bela Adormecida”? Senti-me assim, que estava tudo adormecido por um ano, e começou tudo de novo, no mesmo lugar, mas um ano mais tarde.
E como estão as coisas agora?
Vou começar a filmar na segunda-feira [a entrevista aconteceu numa sexta-feira]. Deveríamos ter filmado essas cenas no verão, mas algumas pessoas da minha equipa apanharam Covid… como se pode ver, ainda me afeta. Mas pelo menos agora estamos a trabalhar. Como toda a gente neste meio, estou muito preocupada com a situação.