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Porto 14/11/2018 - Restaurante Escondidinho que teve 2 estrelas michelin na decada de 30. Foto Pedro Kirilos / Global Imagens
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O restaurante Escondidinho, no Porto, foi o primeiro a receber duas estrelas Michelin, em 1936

Pedro Kirilos / Global Imagens

O restaurante Escondidinho, no Porto, foi o primeiro a receber duas estrelas Michelin, em 1936

Pedro Kirilos / Global Imagens

Michelin à portuguesa: clientes de elite, pratos "afrancesados" e a fama além das estrelas

A história das estrelas em Portugal é contada com porque as teve, perdeu e manteve: da marisqueira onde Juan Carlos aterrou de helicóptero ao Escondidinho onde Sá Carneiro fez a última reserva.

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Muito antes de apelidos como Avillez ou Sá Pessoa fazerem soar campainhas ou esgotar mesas durante meses a fio, entre outros nomes cada vez mais sonantes, já Portugal somava estrelas. No país, os primeiros macarrons — como lhes chamam os criadores franceses — datam de 1929 e foram atribuídos ao Santa Luzia, em Viana do Castelo, e ao Hotel Mesquita, em Vila Nova de Famalicão, uma confirmação já antes dada pelos famosos irmãos galegos Antonio e Juan Cancela, detentores de uma muito completa coleção de Guias Michelin.

E antes do Vila Joya ganhar a segunda estrela, que mantém desde 1999, já o portuense Escondidinho reclamava dupla vitória em 1936, numa outra vida do famoso guia cuja edição ficou interrompida por conta da Guerra Civil espanhola e também da Segunda Guerra Mundial. O ano de 1974 marca o regresso das estrelas nacionais, com a Casa da Comida e o Porto Santa Maria (esteve 25 anos seguidos na constelação) a serem, já na década de 1980, exemplos desse percurso. Numa altura em que se aproxima mais uma gala, marcada para o próximo dia 14 de dezembro, recordamos parte do percurso Michelin à portuguesa, com paragem em restaurantes que ajudam a contar uma história que dura até aos dias de hoje.

Guia básico para perceber as estrelas Michelin, que este ano serão entregues em Lisboa

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Porto Santa Maria: o helicóptero de Juan Carlos e o robalo ao sal de Bill Clinton

Quando José Galveia deixou o Porto Santa Maria, no Guincho, era um dos 14 sócios do restaurante que durante um quarto de século brilhou à boleia de uma estrela Michelin. Entrou era ele um funcionário “com quota a realizar” e talvez sem a previsão de que ali ficaria décadas, desde o ano da revolução de Abril até 2011. O restaurante que nasceu estava a década de 1940 a terminar, ganhou um novo fôlego nos anos 1970, quando um construtor civil de Cascais, habituado a sentar-se às suas mesas na companhia de amigos, o compra e divide a sociedade.

A vinda da primeira estrela, em 1984, foi uma surpresa: sem noção do que era ou do impacto associado, foram os próprios clientes de José Galveia a dar-lhe a notícia da vitória. Hoje especula que tenha sido o “serviço razoável” e os “bons copos e pratos” a contribuir para a causa, sem pôr de lado a matéria-prima, a lagosta da costa portuguesa, o cherne que esgotava facilmente e o lagostim comprado na lota de Cascais — era tudo comprado “vivo” e a procura era pelo peixe do mar. O gosto pelo selo português estendia-se (e estende-se) à garrafeira, dos Portos da Taylor’s e da Quinta do Noval, às muitas colheitas de Barca Velha e de Pêra-Manca. As exceções eram os franceses Chablis e os champanhes de casas sonantes.

O restaurante Porto Santa Maria nos primeiros anos de existência (© Direitos Reservados)

Durante anos, Galveia fez as compras e geriu o pessoal, sempre com a premissa de que eram os clientes que o ajudavam a tomar decisões. E que clientes. Com mais ou menos celeridade, lembra-se das “duas ou três vezes” que D. Juan Carlos, atual rei emérito de Espanha, almoçou ou jantou no restaurante, incluindo a vez que chegou de helicóptero — foi preciso avisar a Marinha — para comer bacalhau à brás. Sofia da Grécia veio numa ocasião diferente na companhia da já falecida Maria Barroso, mulher de Mário Soares. Já a ex-chanceler alemã Angela Merkel, no ano em que ficou retida em Lisboa devido às cinzas provocadas pela erupção de um vulcão islandês, levantou-se no final da refeição “e foi pagar ao balcão como se um fosse um cliente normal”.

Também Bill Clinton se sentou à mesa, mas servi-lo foi “muito fácil”, talvez demasiado fácil. “Até fiquei triste, tinha lagostins vivos, com 400 ou 500 gramas, coisa muito rara, e não comeram nada disso. Ele [Clinton] comeu robalo ao sal”, comenta com amargura na ponta da língua. O cineasta Francis Ford Coppola também por lá passou à procura de angulas, que então se compravam e vendiam caras. E esse, sim, era “bom garfo” e “quis provar de tudo”, incluindo vinho do Porto da casa Burmester.

José Galveia e o filho na companhia de Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos da América (© Direitos Reservados)

Galveia recorda-se ainda de Morgan Freeman (um dos famosos que fizeram caminho ao encontro ao restaurante a convite do realizador português Paulo Branco), de Brad Pitt e Jennifer Aniston, quando ainda eram um casal — “Tive pena quando se separaram”, lamenta — e da artista musical Alicia Keys, que lhe levou a caneca dada pela mulher. “Foi muito simpática, pediu um chá e disse ao empregado que queria uma chávena maior. Tinha lá uma caneca que era minha, usou-a e pediu para a levar”, graceja. Inesquecível foram as vezes em que a Fórmula 1 voltou ao ali tão perto Autódromo do Estoril e trouxe nomes como Ayrton Senna e Michael Schumacher. Para a memória fica também um dos jogos do Europeu de 2004 a que não assistiu — tampouco assistiu o grupo de ingleses que se deixaram ficar colados à mesa, entregues ao champanhe — “Era Dom Pérignon e Cristal, não brincavam!” — e à boa disposição, mesmo que tivessem voado para Portugal com destino às bancadas.

Durante 25 anos, José Galveia nunca identificou um inspetor do Guia Michelin. Por mais suspeitas que tivesse nunca as confirmou e por esclarecer ficou a dúvida: porque é que o restaurante perdeu a estrela quando a perdeu? A quem lhe ligou a contar, comentou: “Não sei como a ganhei, também não sei como a perdi”. Do outro lado da linha telefónica estava Duarte Calvão, coautor do site gastronómico Mesa Marcada e à data jornalista no Diário de Notícias. A ele coube dar a “má notícia” — a alegada justificação do guia, conta ao Observador, terá sido a perda de qualidade dos produtos, não que isso lhe faça sentido. “Sempre foi um mistério para mim terem tirado a estrela.”

O restaurante em anos mais recentes (© Direitos Reservados)

Mesmo sem a distinção, o restaurante que celebra 75 anos de existência em 2022 continuou e prosperou muito para lá da “barraca na praia” que chegou a ser nos primórdios. Saúl Saragga, atual proprietário, tentou manter o espaço o mais próximo da origem possível ao continuar a preferir os produtores locais. A linha orientadora permanece e os clientes VIP também: “Ainda há 15 dias esteve lá o Cristiano Ronaldo”. Ainda assim, 2018 foi ano de remodelações, com a parte não visível do restaurante a sofrer intervenções que fecharam o Porto Santa Maria durante sensivelmente dois meses.

Saragga especula que o extinguir da estrela esteja relacionado com a mudança de critérios do próprio guia: “Antes, a estrela era dada aos melhores restaurantes da zona pela qualidade dos produtos, pelo serviço, localização e espaço. A partir de 2007, sensivelmente, o chef começa a ter mais importância.” Ideia que vai ao encontro à opinião de Duarte Calvão, com os anos 1970 a assinalarem essa mudança e o chef como autor a ganhar um peso acrescido, figura que em Portugal desponta na viragem do novo milénio, com nomes como Vítor Sobral, Miguel Castro e Silva e Joaquim Figueiredo a definirem uma geração no sentido da modernidade.

"Antes, a estrela era dada aos melhores restaurantes da zona pela qualidade dos produtos, pelo serviço, localização e espaço. A partir de 2007, sensivelmente, o chef começa a ter mais importância."
Saúl Saragga, proprietário do restaurante Porto Santa Maria, no Guincho

Escondidinho: a última reserva de Franciso Sá Carneiro

Em 1936, uma casa da comida portuense entrava diretamente para o Guia Michelin não com uma, mas com duas estrelas — até 1999, o Escondidinho foi o único em Portugal a somar tal proeza. Amarílio Barbosa, o quarto proprietário do espaço que oficialmente abriu as portas a 12 de dezembro de 1931 às mãos do industrial António Joaquim da Silva, opta por dizer que o restaurante não chegou a perder as estrelas; foi antes a Segunda Guerra Mundial que levou à interrupção do famoso guia.

Há nove décadas dedicado à cozinha nortenha, com óbvias influências francesas, o Escondidinho que funciona à porta fechada foi criado para a elite e a elite dele se serviu: mais uma vez Juan Carlos, rei emérito de Espanha, figura entre os ilustres comensais que dividiram mesa e prato (e há fotografias que registam o momento, de quando este era jovem e os pais viviam exilados no Estoril).

© Direitos Reservados

Mas também o cineasta Manoel de Oliveira e o comentador político Luís Marques Mandes passaram por lá. Nada que se compare com a presença de um ditador: “O restaurante era eleição de Salazar de Oliveira. Era o Escondidinho que ia fazer os grandes banquetes aos cartéis a cargo do regime salazarista”, diz Amarílio. Na lista de nomes influentes cabe mais um: Francisco Sá Carneiro que no dia em que morreu, a 4 de dezembro de 1980, tinha uma reserva para jantar no Escondidinho, uma mesa para “seis ou oito pessoas” para uma refeição que nunca aconteceu. Nesse dia tinha um comício no Porto, nos outros “era cliente assíduo”.

Pouco mudou com o tempo. A fachada do espaço na rua de Passos Manuel, na Invicta, está igual a si própria e lá dentro permanecem os tetos apainelados e os lambris cerâmicos, com as antigas faianças a servirem agora de ornamento — os azulejos e as loiças vindos da Fábrica Constância são motivo de orgulho para Amarílio, que assegura que este é uma espécie de museu da restauração. A confirmá-lo, a mobília de outros tempos que ainda respira vitalidade e o sistema de aquecimento central vindo da fornalha que já não funciona, mas que ainda é exultado. A única coisa “fortemente intervencionada” foi a cozinha que antes funcionava a lenha. “Os clientes que antes vinham com os avós e que agora são avós exclamam que nada mudou”, assegura.

O restaurante Escondidinho mantém a traça original

Pedro Kirilos / Global Imagens

O gosto pelo passado é tanto que o restaurante é forte em merchandising, vendendo para fora pratos, chaleiras, bules e até guardanapos sempre com a imagética da casa. Na carta deixaram de estar alguns “pratos muito afrancesados”, ainda que continuem por lá a lagosta gratinada, o entrecôte e o bacalhau à Escondidinho, uma das referência mais antigas. Só o elitismo parece estar fora de validade, ainda que a “clientela” seja de classe média alta e o restaurante continue a ser “muito bem frequentado” — a título de exemplo, o preço médio por refeição com bebidas ronda os 40 euros, mas há quem consiga facilmente gastar 200 ou 300 euros por pessoa. “Basta comprar um Pêra-Manca que isso dispara. Ainda há tempos um senhor comeu tripas com um Barca Velha 2008.”

Casa da Comida: a “herança viva” do contador de estórias

O tio era ator de profissão, contador de histórias por gosto e bom garfo nas restantes horas do dia. Jorge Vale “adorava comer”, tanto que, desafiado pelos amigos que juntava à mesa, abriu o restaurante Casa da Comida em 1976, dois anos após a revolução dos cravos — consta que o nome resulta de um trocadilho e que nasceu durante uma tertúlia com os colegas… da Casa da Comédia.

Há 45 anos na mesma morada, muito foi o que mudou. A sobrinha Salomé Alcântara, que comanda os destinos do espaço juntamente com o marido Rogério, diz que aquele foi outrora um restaurante à porta fechada, com a entrada dos clientes a depender de um toque de campainha, e cujo dress code arrojado dos comensais era ponto assente. “Tinha um layout diferente do tradicional [para a época], havia uma sala de estar onde as pessoas se sentavam a tomar um aperitivo, onde se tiravam os pedidos, e só depois seguiam para a sala de jantar”, recorda a atual proprietária, que refere ainda como todos os pratos eram servidos em campânulas que só eram retiradas diante dos clientes e sempre em simultâneo por mais que as mesas estivessem concorridas — adivinha-se o efeito cénico cuidado.

A estrela que chegou na década de 80 e que se manteve durante mais de dez anos representou um “boom de clientes” e uma “lista de espera de quatro e cinco meses”. Perdê-la significou tristeza para a família que o tio tanto gostava de colar à mesa para dar a conhecer experiências gastronómicas. “Na altura tentámos perceber o motivo, mas o júri do Michelin não foi flexível ao ponto de explicar o porquê”, diz Salomé. O certo é que nos anos em que deteve a estrela, ninguém sabia quem era o chef da Casa da Comida, tanto que era Jorge Vale, viajante gastronómico determinado, que ensinava as cozinheiras escolhidas a dedo a fazer as diferentes receitas (ainda que o nome Lígia Medeiros conste em alguns livros de cozinha europeus). “Ele sabia transmitir o que queria, além de que no restaurante havia muito cuidado com as loiças, com os talheres e com a forma como os empregados serviam.”

A Casa da Comida está na mesma morada desde a sua fundação, em 1976

© Mario Cerdeira

Nos tempos áureos, atores de cinema encheram o restaurante, mas não é dessas histórias que Salomé se recorda. Na memória mais imediata está Palmira, a catatua que “fazia parte da mobília” e que residia numa gaiola, por norma aberta, logo à entrada do espaço. “De vez em quando a Palmira saía e andava por lá a voar. O tio contava muitas vezes que havia um cliente de quem não gostava nada. Nem a catatua gostava, ela que ia para cima da cabeça dele e arranhava-o. O tio chamava-lhe o ‘chato lírico’.”

Angulas, caviar, foie gras e escargot assados eram propostas que faziam parte da carta de outros tempos, a qual foi sendo atualizada, tal como a decoração do próprio espaço que hoje se quer mais moderna. Alguns pratos ficaram, outros mais clássicos já não existem, muitos foram entretanto reinterpretados pelos chefs que passaram pela cozinha, onde ainda é possível encontrar pato com citrinos e perdiz de escabeche. “Ao longo de 45 anos tivemos muitos altos e baixos. Quando o tio morreu foi um período conturbado, o restaurante era muito Jorge Vale, era uma herança viva.” Com “muito suor e esforço”, Salomé e o marido vão mantendo a Casa da Comida, que há vários anos também é uma empresa de catering, no mapa e na memória.

Vila Joya: há mais de 20 anos com duas estrelas Michelin

Facilmente dispensa apresentações. Desde 1999 tem duas estrelas Michelin, com a primeira a ter surgido quatro anos antes — feitas as contas, é o restaurante em Portugal que há mais tempo detém a distinção do Guia Michelin. Joy Jung gere a casa algarvia que não é um hotel (com 12 quartos e nove suites) desde o início do milénio. Ficou responsável pelo projeto familiar aos 26 anos já o restaurante tinha sido duplamente premiado pelos inspetores. E desde logo o pai fez um aviso: “No Koschina não se toca”.

Joy Jung, do Vila Joya

Jorge Amaral/Global Imagens

A liberdade de que o chef goza é evidente, ele que utiliza o Vila Joya “como um supermercado” e recorre aos mesmos fornecedores há vários anos. “À noite, depois de a cozinha fechar, senta-se com a equipa, vê o que tem no frigorífico e desenha um novo menu”, comenta Joy. Também acontece fazer mudanças no próprio dia, o que provavelmente é uma dor de cabeça para quem, diariamente, traduz a carta para quatro línguas diferentes. O certo é que a cada 24 horas, sem exceção, a ementa é alterada. “Não sei como é que o chef faz”, diz, sobretudo após anos de história e de compromisso com os clientes que vêm para o Vila Joya “para comer e não para dormir”. Dieter Koschina e Paulo Luz, chefe de sala, entraram os dois em 1991. “São as duas pernas do restaurante.” 

Muito mudou com o passar dos anos apesar da manutenção das estrelas: da decoração ao ambiente que ficou decididamente mais minimalista, do empratamento à harmonização com os vinhos que se foi tornando mais complexa. “Antigamente a mesa estava cheia de coisas, três garfos, três facas, todos os copos de vinho… Hoje em dia não há quase nada.” À observação de Joy Jung, o chef acrescenta que a cultura alimentar “evoluiu dramaticamente” desde os anos 1990. Diz ainda que “a qualidade nos anos 1990 versus as vastas opções que existem no mundo de hoje são coisas diferentes. Muita da qualidade, sabor e variedade de produtos que existiam naquela época já não são conhecidos ou vistos. Hoje podem-se encontrar produtos maravilhosos, mas em comparação com o passado, não é mais a mesma”.

Dieter Koschina está aos comandos do Vila Joya desde 1991

Filipe Amorim / Global Imagens

Ainda assim, o oceano continua a ser o protagonista desta história, com o peixe fresco a ser para o chef “o produto mais incrível do mundo”. “São produtos únicos em Portugal na ótica de um chef austríaco e europeu. A minha cozinha é mediterrânea. Claro, com alguns toques austríacos. Adoro usar azeite e concentrar-me em dois ou três ingredientes principais de qualidade. Para mim, menos é mais e o sabor é o mais importante, não a apresentação ou a história em torno [do prato].”

Koschina não esconde que, a par e passo com Claudia Jung, fundadora do Vila Joya e mãe da atual proprietária, sempre ambicionou ser dos melhores e juntar estrelas à sua coleção. Mas questionado sobre se tem a terceira em vista, responde assim: “Não, ninguém tem a terceira [estrela] em mente, ela simplesmente chega por conta própria”.

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