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ANDRÉ CARRILHO/OBSERVADOR

ANDRÉ CARRILHO/OBSERVADOR

Miguel Bonneville. “Escolhi ser ator para tentar escapar à inevitabilidade de ser eu”

A infância, a descoberta da importância da representação, os homens, as mulheres e porque é que a indignação indigna. Entrevista com Miguel Bonneville antes de subir ao palco do CAL.

Em 2012, acabou uma série homónima de performances com o funeral dele próprio. Miguel Bonneville passou a assinar com um traço por cima do primeiro nome. Ou seja, ainda lá está algo desse outro Miguel, que morreu em cena. Uma das frases que mais usa é: “Acho que estas coisas estão todas ligadas”. E diz que é preciso dar o contexto, portanto aqui vai o dele: é do Porto e vem de uma família burguesa. E na infância aborrecia-se de morte na praia, em Cascais; adorava o pós-praia, o banho sozinho onde tirava o sal da pele; aos nove anos decidiu que ia ser ator porque alguém, no colégio, num andar de cima, repetiu o que ele estava a dizer.

O trabalho de Miguel Bonneville é a vida dele. Sempre trabalhou a autobiografia, a identidade, a sexualidade, o género, sempre procurou fugir de si, sempre quis observar-se a fugir. Em 2008, criou “MB#6”, um espectáculo onde dobra as vozes de seis mulheres que entrevistou para aquele propósito. Seis mulheres próximas. Em 2018, voltou a fazê-lo, com algumas das mesmas mulheres e ainda outras. São essas duas performances documentais que vai apresentar no CAL – Primeiros Sintomas, em Lisboa, este sábado e domingo, integrado no festival Temps d’Images. Em Maio de 2019 estará no São Luiz, com “A Importância de Ser Georges Bataille”, mais um capítulo da sua série “A Importância de Ser”, onde parte de um autor para tentar conhecer-se melhor. Foi o que também tentámos fazer nestas linhas, que não são poucas.

Neste “MB#6” utiliza a entrevista, na “Importância de ser Paul B. Preciado” entrevista um butt-plug [brinquedo sexual]. Como é que gostava que começasse esta entrevista?
Já começou, não é? Portanto se pudéssemos voltar atrás… não tenho nenhuma forma, acho que começou bem, gosto muito do formato de entrevista. Apresentei um espectáculo em 2010 que também era em entrevista porque é algo a que recorro bastante.

O que o encanta na entrevista?
É um lugar onde estou sempre à procura de dar uma resposta que ainda não dei, descobrir qualquer coisa que ainda não formulei, também tem um lado de confessionário. Uma procura daquilo que faz sentido neste momento.

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Essa entrevista ao butt-plug era uma colagem de várias respostas de vários autores/filósofos.
Sim, leio imensas entrevistas e a certa altura queria pensar de que maneira é que posso dar respostas que estão mais próximas daquilo que acho na verdade, mas sem ter que ser eu a dá-las. Acho que estava a ler um livro de entrevistas à Marguerite Duras e aquilo inspirou-me para o espectáculo e para pensar sobre o meu trabalho. É uma daquelas referências que raramente menciono, mas cada vez mais percebo que aquilo que ela faz me influenciou de uma maneira muito forte. Essa entrevista foi mais um desses casos e depois achei que faria sentido ir procurar outras respostas que pudessem ser dadas por mim.

Quer dizer algumas dessas frases para marcar o tom da entrevista?
A minha memória… tenho boa memória, mas não sei nenhum poema de cor, como os atores sabem. Tenho tendência para me esquecer de tudo. Quando faço um espectáculo espero que parte do motivo que me leva a fazê-lo é que as coisas que li e que vi e sobre as quais estou a trabalhar sejam integradas por mim, mas que depois não retenha essa informação de forma a passá-la racionalmente. Espero que isso fique integrado na minha vida e que consiga agir com essas coisas sem que elas assumam a forma de citação. Se estou a citar é porque não integrei, é quase como se fosse um roubo.

"Comecei a criar espectáculos porque tinha muita vontade de falar sobre certas coisas, mas não tinha a ideia de ter um discurso. Tinha a ideia de ser actor e que ser actor, para mim, era uma mistura entre a ficção e a realidade. Era como se estivesse a viver uma espécie de documentário falso."

Dá para perceber que não adora citações.
Sim e depois há esta coisa toda do vamos citar o Deleuze, de repente parece que estou a justificar o meu trabalho com filósofos que dizem exatamente aquilo que estou a fazer e que me estão de alguma maneira a validar.

Dizia que não tem boa memória.
Tenho, só não tenho para estas coisas das citações.

Mas não é por isso que neste espectáculo dobra as vozes ao vivo, pois não?
Não, aí o objetivo é completamente diferente. E não considero como citações aquilo que estou a dizer, para mim aquilo é uma espécie de possessão. É talvez o único espectáculo onde sinto que cheguei mais perto do lugar onde gostava de estar sempre – pelo menos durante as apresentações – que é de não ter oportunidade nenhuma do meu ego interferir naquilo que estou a fazer. Tenho um objetivo muito claro que é dizer as palavras que estou a ouvir, se começo a pensar em alguma coisa, se começo a achar que já sei aquilo que está a ser dito, se começo a ver quem está na plateia, vai-me escapar alguma coisa, já não vou conseguir dizer.

Está a fazer uma coisa muito mecânica que é uma grande proposta de reflexão. Não temos cena.
Sim, espero que seja. É um mecanismo. E depois pensei muito na minha relação com a Beauvoir, em 2008, foi quando a comecei a ler e fiquei fascinado com a obra dela. Aquela frase “não se nasce mulher, torna-se mulher”…

Isto é uma citação.
Sim, mas esta é inevitável. O que é isso de ser mulher, ao mesmo tempo o que é isso de ser homem, o que é isso de ser qualquer coisa, e de me pôr nesse lugar de ser um veículo do discurso destas pessoas, se com isso consigo perceber alguma coisa sobre mim, sobre elas, sobre o que é ser humano.

O que o inquietava em 2008, para fazer este espectáculo?
Quando decidi fazer o “MB#6” foi mesmo uma mudança radical, da forma como estava a criar os espectáculos, acho que tinha um formato mais de fábula, usava muitas coisas dos animais e ainda uso, mas acho que de forma diferente. Fazia muitos espectáculos sobre as minhas relações amorosas e os meus problemas emocionais. Esse foi o momento em que comecei a ler Beauvoir, comecei a ficar consciente de que forma é que o meu trabalho era político, sabia que era político, mas nada que ver com a ideia que tinha de político – que era uma coisa partidária, Cavaco Silva, etc. Através da Beauvoir cheguei ao feminismo, a ideia do pessoal é político, o meu trabalho é político desta forma. Foi um ganhar de consciência, uma vontade de parar de falar das minhas relações amorosas e de perceber quem é que eram as pessoas que estavam constantemente na minha vida, com quem é que tinha relações mais sustentadas. Houve um dia que fui dançar e no meio da pista lembrei-me desta ideia. Juntando a isto o meu gosto pela entrevista.

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E estas mulheres são todas próximas de si, com essa sustentação.
Sim, pensei em convidar seis mulheres, podiam ter sido mais, sabia que queria ter pessoas que me eram próximas, com quem tinha afinidades estéticas, laborais, filosóficas, sei lá, amizade. A primeira ideia é que estas mulheres estivessem ao vivo a responder a questões que o público tivesse como se elas fossem eu.

E elas não quiseram?
Não houve foi orçamento para isso. Sempre achei que se devia pagar bem às pessoas. Achei que tinha de arranjar uma forma de fazer, então inverti, faço as entrevistas e depois faço a possessão. As perguntas eram todas muito importantes para mim na altura. A questão da autobiografia, das pessoas me dizerem porque é que não ia para a terapia, que era uma coisa narcísica, não havia uma compreensão do que eu estava a fazer. E depois, claro: a infância, a morte, o amor.

É muito claro que não existe, para si, a separação entre a vida e trabalho. Se tivesse outra profissão, também seria assim?
Provavelmente não. Quer dizer, depende do trabalho. Para mim nunca houve essa separação, depois percebi que não havia, mas não escolhi. Estava lá. Isto é: comecei a criar espectáculos porque tinha muita vontade de falar sobre certas coisas, mas não tinha a ideia de ter um discurso. Tinha a ideia de ser ator e que ser ator, para mim, era uma mistura entre a ficção e a realidade. Era como se estivesse a viver uma espécie de documentário falso. Esta ideia foi desmontada quando fui para a escola de teatro. E foi também engraçado quando trabalhei com a Joana Craveiro como actor, a primeira vez com ela a dirigir, foi isso que aconteceu. Senti que dez anos depois vivi uma experiência que era aquilo que achava que era ser ator. Também não vejo diferença entre ficção e realidade.

É igual?
O que é real e o que não é real? Quando estou num teatro deixo de ter vida? Não, sou eu na mesma, ali, a trabalhar. Estou a pensar, pensar fazer parte do meu trabalho, que faz parte da minha vida. Não sei muito bem como é que essa separação pode ser feita. A minha vida não teve esse espaço.

Não lhe disse outra coisa.
Exatamente, se calhar trabalhasse num escritório… mas mesmo assim, estou a trabalhar num escritório e não deixo de viver, não estou morto. Também faz parte da minha vida.

Fala-se de infância, sobretudo na versão de 2008. Fiquei com a ideia que aquelas pessoas cresceram muito com elas próprias, sozinhas, acha que quando isso acontece a capacidade intelectual, a maturidade, chega mais cedo?
Não sei se chega mais cedo, mas fica mais presente. Aquela falta de espaço para ser uma criança como é suposto ser uma criança, sem preocupações, mais livre. Todos – as mulheres que entrevistei e eu – percebemos que somos pessoas e não crianças, de repente há uma responsabilidade desde muito cedo. No meu caso, porque senti que os meus pais não eram pessoas minimamente responsáveis para tomar conta de mim.

"Já fiz um exercício que foi escrever tudo o que me lembrava da infância e não há assim nada que me faça pensar que a minha infância foi incrível, aquela coisa que as pessoas dizem do “adorava voltar a ser criança, foi o momento mais livre”... Não tenho nada disso. E a minha adolescência foi um horror."

Pode falar-me da sua infância?
Não tenho muitas memórias da infância e as que tenho não são muito boas.

Má memória?
São umas coisas meio misturadas. Passava as férias todas em Cascais. Os momentos em que tenho boas memórias… adorava quando estava a tomar banho, sozinho, depois da praia. Esse era um momento muito gratificante para mim. Era um polibã que tinha assim umas escadinhas, ficava lá muito tempo, não havia ninguém para me dizer nada.

Mas é do Porto.
Sim, mas o meu pai tinha uma casa em Cascais. Fazíamos sempre férias lá. Aborrecia-me de morte na praia. O meu pai e o meu irmão ficavam a esturricar e eu queria sempre ir ao mar e aquelas coisas das crianças mais ativas. Tinha de me cingir às regras das pessoas mais velhas. A minha relação com o meu pai também era meio esquisita, são sempre memórias assim agridoces.

E não é o Miguel que controla isso?
Não. Já fiz um exercício que foi escrever tudo o que me lembrava da infância e não há assim nada que me faça pensar que a minha infância foi incrível, aquela coisa que as pessoas dizem do “adorava voltar a ser criança, foi o momento mais livre”… Não tenho nada disso. E a minha adolescência foi um horror.

Porquê?
Não queria nada voltar a esse lugar… Foi quando comecei a manifestar todas as minhas inquietações, acerca de tudo o que aquilo que tinha passado, depois era a escola, nunca fui o melhor aluno, mas estava sempre os melhores, mas depois também não era geek nem era sociável.

Sentia que não fazia parte.
Sim, estive sempre ali num limbo entre a pessoa estranha que também consegue falar com as outras pessoas, não jogava à bola, mas dava-me bem com os rapazes embora no intervalo tivesse sempre com as raparigas porque preferia estar sentado a falar. Não era propriamente rejeitado por não ser normal, mas também não era detestado. Tive sempre nesse limbo, até hoje. Depois houve fases mais complicadas. Estive num colégio onde era tudo muito protegido, depois passei para uma das piores escolas de bairro do Porto, onde uma rapariga tinha sido violada e as pessoas não tinham sequer batata cozida para comer. Passei por várias realidades e isso foi importante, percebi que nem toda a gente pode ter aquilo que tenho. E também havia pessoas que tinham muito mais do que eu.

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Deu-se bem com o ensino, ao longo da vida?
Sim e não. Até aos dez anos adorava ir à escola, mas depois disso comecei a não gostar muito, mas sempre fui bom aluno.

Estudou na Academia Contemporânea do Espectáculo, no Porto.
Sim, entrei aos quinze anos, era uma escola profissional.

Queria estar ali?
Não. Primeiro não sabia nada sobre teatro, não tinha visto grande coisa, não percebia coisas que estavam a acontecer ali, não entendia as aulas de movimento ou de voz, ficava à nora. Pensava “o que estou aqui a fazer?”. Depois comecei a ir ver mais peças, o que era o trabalho de actor. O que conhecia tinha muito mais a ver com as artes plásticas, porque aí sim, o meu pai, mesmo que desdenhasse a coisa da arte contemporânea, levava-nos sempre a ver as exposições a Serralves. O meu irmão estava a estudar na Soares dos Reis, uma escola artística do Porto, também fui influenciado por ela no universo da pintura e da fotografia. Teatro e dança, nada.

Mas foi por aí que foi.
Sim… é que foi aos nove anos que decidi que queria ser actor.

Precoce, isso.
Lembro-me de estar a falar no colégio e de alguém, num andar qualquer, imitar aquilo que estava a dizer. Aí fiquei em pânico e pensei: “OK, não há nada que vá fazer que não possa ser imitado”. Não posso deixar de ser eu. E isso deu-me uma angústia gigante. Depois o que tentei procurar foi um escape a isso, e pronto, na minha ideia ser ator permitia-me ser muitas coisas diferentes, muitas pessoas diferentes. Foi aí que escolhi ser ator para tentar escapar à inevitabilidade de ser eu. Então quando soube que havia uma escola profissional pensei logo que era aquilo.

Podia ter sido designer.
Eventualmente. Ainda tenho esse interesse, não pela indústria da moda, mas aquilo que a moda pode fazer em relação à identidade, aquilo que somos, a forma como a roupa diz tanto sobre nós. Ainda em relação à adolescência, além de estar confuso com a escola e muito contra aquilo que estavam a ensinar, sentia que era uma agressão com quinze ou dezasseis anos estar a fazer de operário ou de padre. Não tenho relação nenhuma com isto, é ridículo, ver uma pessoa de quinze anos a fazer de padre, numa peça do Brecht? Por favor, não me façam isto, não sei fazer, não tenho maturidade.

Algures no “MB#6” volta-se a falar da transitividade da identidade, “aquilo que sou agora não sou daqui a dez anos”.
Sim, sempre senti isso. Olho para dentro, se é que há dentro, e não vejo nada, não vejo característica nenhuma, não há nada que possa dizer isto sou eu. Não tenho uma personalidade. É engraçado porque uma grande amiga, a Magda, que foi minha professora de história de arte na Academia, dizia que às vezes nas reuniões de professores parecia que estavam a falar de pessoas diferentes.

"Acho que não me serve de nada estar bem informado. Não estou a acrescentar nada, a minha opinião não é assim tão válida porque não é profunda, às vezes a indignação é tanta que não preciso de me indignar. Não é “estou indignadíssimo com a situação do Brasil”, claro que estou, mas o meu post vai mudar qualquer coisa?"

Às tantas a Joana Linda diz algo como: “Quase que pagamos para sermos percecionados como únicos, mas se calhar faz parte da questão percebermos que não somos”. Concorda?
Não sei. Acho que há dez anos pagávamos para podermos ser percecionados como únicos, hoje em dia não sei se é tanto assim. Se calhar é a minha impressão de fora, com esta coisa do Instagram e do Facebook e parece-me tudo igual.

Isso não quer dizer que as pessoas não tentem fazer diferente.
Não tentem parecer únicas… é possível. Mas como é que tento parecer único…

…se estamos todos a meter a foto na praia?
Sim, isso. É possível distinguir? Estamos a usar o mesmo filtro? Ou tirar sempre aquela selfie assim [estica o braço para cima]. Não sei. Acho que nos anos 90 havia muito aquela coisa de “sê tu próprio, sê diferente”, a coisa de seres alternativo. Agora não sei. Mas se calhar é também porque estou mais desligado… desligado em geral. Acho que essas coisas me poluem um bocado, fico mesmo irritado, de repente vou ao Facebook e é toda a gente a pôr a mesma coisa. Ou é um statement político do Brasil ou qualquer coisa sobre o preço das casas, parece que esta semana este é o tema e toda a gente vai falar sobre isto. Para a semana muda.

Quem é que faz essa agenda temática?
São os media, não é? É a televisão. São as conversas, é um bocado como os meus pais, falam sobre o telejornal, não quero falar sobre o telejornal, embora depois a minha mãe diga que estou sempre muito informado, mas isso é porque levo com estas enxurradas do Facebook.

Preferia estar mal informado?
Às vezes preferia. Acho que não me serve de nada estar bem informado. Não estou a acrescentar nada, a minha opinião não é assim tão válida porque não é profunda, às vezes a indignação é tanta que não preciso de me indignar. Não é “estou indignadíssimo com a situação do Brasil”, claro que estou, mas o meu post vai mudar qualquer coisa? Não tenho pessoas que são pró-Bolsonaro nos amigos do Facebook, não são dessas pessoas que me rodeio. Não vou perder tempo em algo que não posso mudar. Estou cada vez mais assim. Se calhar estou a ficar velho.

Por falar em idade: o que sentiu de diferente nestes dois espectáculos, sobretudo nas mulheres que intervieram em 2008 e em 2018.
Acho que as pessoas estão menos inocentes.

Isso é mau?
Não necessariamente. Há uma ligação com a morte diferente, mais pesado, as pessoas começaram a perder mais pessoas na vida delas. E acho que há uma consciência diferente, não só porque já viram o que foi o primeiro espectáculo, a vulnerabilidade é outra, embora tenha havido choradeiras e coisas durante as entrevistas. De repente emocionamo-nos porque passaram dez anos e continuamos na vida uns dos outros. Isso também mudou, a ligação, a proximidade, todas as histórias que nos ligam. Houve um refinamento dessas relações e desse amor. Isso é bonito.

Tende a achar que o homem é um ser horrível?
Acho que sim. É por fases, obviamente, porque há fases em que estou mais desprendido e acho que é tudo fantástico… muito raramente, atenção. Mas a minha experiência com o ser humano não é muito simpática.

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Não falava tanto do ser humano, mais do homem, mesmo.
O homem é um bocado assustador, é. Não é só pela minha experiência com os homens, mas a história está feita dessa maneira. No outro dia estava a pensar sobre isso, no livro de história do 9.º ano há uma página a falar sobre Picasso e depois há 30 páginas a falar sobre a Segunda Guerra Mundial, o Hitler. Então a história é feita de pessoas sinistras, o próprio Picasso é bastante sinistro. É só atrocidades.

Mas há um sucesso mediático grande em volta destas figuras.
Eu percebo, são fascinantes, é verdade. E também adoro as personagens más porque a catarse é mais intensa. Mas depois, conhecer pessoas assim na vida real não é nada bom. E elas existem. E existem muito. Altamente controladoras e ditatoriais, pessoas que conhecemos, da família. No outro dia estavam a contar histórias de malta que usava droguinhas para violar miúdas, pessoas com quem já trabalhei, percebes? Não quero viver nessa realidade. Tento saber o mínimo possível das cusquices, dos teatros, porque depois não vou conseguir lidar com as pessoas da mesma maneira.

Miguel Bonneville, um cidadão mal informado.
Exacto. E depois isto torna-se uma aldeia, as pessoas sabem, só prejudica toda a gente, estou constantemente a ser vigiado e julgado, não há lugar para o erro. E isso é algo que sentia muito em relação ao meu trabalho e acho que tem a ver com as questões com a minha família, as pessoas fazerem um julgamento e não tentarem compreender. Ou seja, tu és assim, fazes as coisas assim, e não vou tentar perceber porque é que és assim e porque é que fazes as coisas assim. O exercício de nos pormos no lugar do outro faz-se muito pouco, como é que reagiria, como é que seria comigo, isso faz-me aproximar da realidade dos outros. Sempre foi muito importante dar o meu contexto: sou do Porto, venho de uma família burguesa, aconteceram-me uma série de coisas, andei num colégio, isso tudo informa o que estou a fazer.

Sente muito isso, em relação ao seu trabalho?
Sim, as pessoas dizem que o meu trabalho é hermético, ou que não se percebe, ou que é difícil. Tudo isso tem a ver com o interesse que as pessoas têm. Tenho um interesse pela Simone de Beauvoir e vou ler tudo sobre aquela pessoa.

E as pessoas não leem tudo sobre Miguel Bonneville.
Não, e se calhar não têm que ter esse interesse, mas a minha ideia é: estou a disponibilizar isto tudo, se achas que é hermético, não tens curiosidade em saber? Se não tens, tudo bem, cortas e não venhas ao próximo. E por isso o meu trabalho em série e por isso o meu trabalho está sempre atualizado, por isso dou entrevistas. Há sempre pistas.

É muito fácil dizer “não percebi nada”.
Epá sim, também não percebo nada de medicina, mas não fui estudar para ser médico. Com a arte há muita esta coisa: não percebi e não preciso de fazer trabalho nenhum. Não percebo nada de futebol porque não fui perceber as regras. Nem de xadrez, mas se quiser saber tenho que estudar. A mesma coisa com qualquer artista ou obra de arte. É isso, é esta coisa do perceber, de uma forma completamente escolar. Não quero perceber para no fim fazer um sumário.

"A humanidade não gosta de si própria, tudo aquilo que fizemos e que construímos é uma tentativa de superar aquilo que somos. Coisas tão básicas como o avião, também quero voar como o pássaro... básico. Ou submarinos. De ser mais, de ser tudo, de ser parte da natureza de uma forma total. Há sempre um descontentamento muito grande."

Parece que tem de existir uma estrutura clássica.
Sim, é preciso encaixar aquilo num sítio, ter um discurso sobre. Às vezes não. Às vezes não consigo explicar ou perceber, tem a ver com alguma reação que aquilo provocou. Vivemos uma época em que tem de ser tudo tão explicado, tudo sem mistério nenhum, não há espaço para viver uma obra. Há tanta claridade, tudo tão direito, tudo tão explicado, os museus põem as plaquinhas a dizer quem era o artista e o que quer dizer aquela obra. Isso para mim é altamente desinteressante. Não permite ir a outro sítio, perceber coisas sobre mim que se calhar não percebia. O pensamento deve ser estimulado.

No espectáculo, a Isabela Figueiredo, sobre o amor, diz: “Isso é tudo mentira, as pessoas só gostam de si próprias”.
Acho que as pessoas nem de si próprias gostam.

Acha?
Acho. A humanidade não gosta de si própria, tudo aquilo que fizemos e que construímos é uma tentativa de superar aquilo que somos. Coisas tão básicas como o avião, também quero voar como o pássaro… básico. Ou submarinos. De ser mais, de ser tudo, de ser parte da natureza de uma forma total. Há sempre um descontentamento muito grande.

Mas no amor…
No amor é toda a gente a tentar tapar buracos. Aquilo que não tivemos na infância, todas as falhas, é muito complexo.

Dizia há pouco que não via telejornais, é pessoa para acompanhar uma noite de eleições?
Não. Vou ver os resultados e depois desisto. Não é por não querer saber, mas é porque sei que não me vai fazer bem, sou muito nervoso. Toda a gente aparenta ser uma coisa que não é. Por isso é que tenho sempre medo de pessoas muito simpáticas.

Irrita-se com o excesso de simpatia?
Dá-me medo. Dá-me mesmo medo. Acho que há sempre ali qualquer coisa que não está bem, que não bateu certo, aquelas pessoas para quem está sempre tudo bem.

Apresenta “A Importância de Ser Georges Bataille” no São Luiz, em Maio. Porque quis fazer isto?
Acho que tem a ver com estas questões todas de que estivemos a falar, uma noção de transgressão, de perceber o que somos, o que significa este processo de esvaziamento e de procurar um lado sombrio e obscuro no meio desta coisa tão clara e excessivamente luminosa. Aquilo depois tem a ver com o dizia o Jung: “Se não procuras nos teus escombros, muito dificilmente vais chegar a qualquer sítio interessante”. Não era bem isto, mas é a minha apropriação. Adoro filosofia, mas o que me interessa não é o sistema, e ele tenta fugir um bocadinho a isso, tal como a Beauvoir. O Bataille tem um lado muito intrincado e poético de chegar às ideias, fascina-me entrar no universo de um autor que não compreendo totalmente e com o qual sinto uma ligação muito grande. Que me pode encaminhar, de quem posso ser…

Discípulo?
Sim, porque não? Mas mais nesta ideia de um ator que faz de Georges Bataille. Tenho pensado muito na importância do trabalho de ator, como é que a pessoa anda, fala, o que comia. Para mim, os espectáculos que faço são o ator, é a pesquisa de ator, como se o espectáculo fosse o ator, os espectáculo que faço são atores do método, mas eu não sou. Isso é que o me interessa, conhecer tudo, esta coisa do ator do método, pica-se com agulha para entrar em cena e sentir a nódoa negra. Há esse paralelismo, embora eu não seja o ator que o está a fazer, mas sim o espectáculo. Não vou fazer um trabalho global sobre o Bataille, não faz sentido, tem a ver com as minhas obsessões, com o corpo, com a sexualidade, como é que vivemos isso hoje, quais é que são os tabus. E é importante poder acrescentar alguma coisa a esta linhagem de pessoas que para mim foram tão importantes. De poder ser alguém ou alguma coisa que salva os outros do desespero.

Fotografias de André Carrilho

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