Criador de moda, fotógrafo, coordenador, diretor-criativo, professor, editor e curador. Miguel Flor é o rapaz dos sete ofícios, mas também poderia ser dos oito, nove ou dez. Há poucas águas que não tenha ainda testado no mundo da moda, desde que começou a estagiar com Maria Gambina há cerca de 30 anos, era só um miúdo saído da faculdade. Vestiu muitos fatos, mas há um que talvez lhe assente melhor do que os outros: “Se hoje me perguntam ‘o que é que fazes?’, eu digo que sou fotógrafo.”
No dia em que faz 50 anos, vai apresentar às 22h30 o desfile Miguel Flor Archives na ModaLisboa, 26 anos depois de ter pisado aquele palco pela primeira vez, quando ganhou o primeiro prémio no concurso Sangue Novo. “Achei que era simpático ser eu a oferecer uma prenda às pessoas, ter o prazer de, no meu dia de aniversário, partilhar uma coisa que é importante para mim.” Calha a 7 de outubro, data em que vai também inaugurar na Fábrica da Musa a exposição do seu projeto fotográfico Boys Appetite. “São uma série de comemorações seguidas. No fundo, é um 3 em 1: o desfile, a exposição e o meu aniversário.”
A última vez que apresentou na ModaLisboa foi em 2003, ano em que decidiu fazer uma pausa na criação de roupa. A pausa dura até hoje. Pelo meio, foi professor, criou o projeto Bloom para o Portugal Fashion — que introduz novos talentos num grande palco da moda nacional — lançou um livro com a Stolen Books, desenhou para outros criadores, ligou-se ao festival Walk&Talk, nos Açores, para o qual faz curadoria há 9 anos, e reimaginou a revista Prinçipal, da qual é atualmente diretor-criativo.
Como é voltar aos desfiles passados quase 20 anos?
Há um misto de emoções entre o nervoso, que é característico desta entrada de palco, até à emoção de voltar a pegar nestas peças, que nunca fugiram muito dos meus olhos porque o espólio está no meu estúdio e esbarro com ele várias vezes. Vou pegar no estilo, adaptá-lo e remisturá-lo, como se fosse uma música dos The Cure ou dos The Smiths. Por isso, não quis fazê-lo sozinho, não quis que fosse apenas com o meu olhar. Convidei o João Melo Costa, que é hoje o diretor da Modatex do Porto e trabalhou comigo quando eu fazia o Bloom; e o Filipe Augusto, que trabalha comigo em muitos projetos. Fazia sentido trazer aquela que eu considero ser uma nova geração para fazer o styling e repensar a forma de vestir essas peças.
E como foi esse trabalho?
Foi emocionante, foi divertido e empolgante, porque há aqui uma nova forma de ver as peças, de as conjugar, que me atrai bastante. Nos meus press releases, dizia sempre que as minhas coleções eram intemporais, porque nunca me segui por uma tendência. Fazia um bocadinho aquilo que me apetecia, que era fruto do que bebia. É engraçado vê-las hoje e fazer um check nessa intemporalidade: realmente elas funcionam todas, 20 anos depois. É engraçado confirmar a perspetiva que tinha nessa altura.
Nasceu em Trás-os-Montes.
Sim, em Vila Flor. Por isso é que sou Miguel Flor, foi o nome que criei quando me formei na escola. Os professores diziam “devemos criar uma marca” e o meu nome de família é extremamente comum, achei que não ia ficar nas cabeças das pessoas, que não ia funcionar graficamente. Precisava de um nome que funcionasse além-fronteiras e fui roubar o Flor à terra onde nasci. Quando as pessoas me apresentam e dizem “é o Miguel”, eu refiro sempre “Flor”, quase como “Bond, James Bond”. Gosto muito dessa ideia das pessoas terem nomes únicos. Tem a ver com a ideia que eu tenho do meu trabalho, de ser muito individual, direcionado e identificativo.
Como é que se expressava essa individualidade quando era criança, em Vila Flor?
Sem querer ser lamechas, a minha mãe é professora primária e eu ia muitas vezes para a escola com ela quando havia reuniões de professores. De repente, aquele quadro imenso era mais do que a simples folha de papel A4 ou A5. Era um mundo de oportunidades para desenhar. A minha mãe lembra-se de eu desenhar figuras humanas e de ir muito aos detalhes. As botas eram de pele de cobra, por exemplo. Depois, brincava com carrinhos e tinha casas de Lego’s, mas como essas não me chegavam, construía casas em papel ou em cartão. Muita gente achava que eu ia ser arquiteto. Viajava imenso na minha cabeça. O meu pai tinha um stand de automóveis e às vezes os carros não cabiam todos lá, então guardava-os na garagem dos meus avós, que tinha espaço para uns 8 carros. Viajava sozinho dentro dos carros, com a mão no volante, a fingir que conduzia para não sei onde. Acho que é essa minha parte nómada da infância que me faz pensar sempre à frente. Havia muita criatividade no meio dessas brincadeiras. Também gostava de ver cinema independente na RTP2. Percebi cedo que tinha de fazer algo relacionado com artes e portanto fui direitinho para Lisboa estudar para a António Arroio.
Como foi a António Arroio? Foi lá que percebeu que o caminho era a moda?
Comecei por estudar Design e Arquitetura, que na altura chamava-se Área E. E percebi que as pessoas mais funny, com quem eu mais gostava de estar, eram as de têxtil. Então repeti o 10.º ano com disciplinas de têxtil e entrei nessa turma. Depois, fui para o Porto estudar na Academia de Moda, que era uma escola privada com uma série de professores jovens, muito open minded e com um forte cunho de criatividade. Nunca pensei muito no lado da indústria, pensei sempre que queria ser um criador de moda.
E acabou mesmo por ganhar o Sangue Novo.
Depois de terminar o curso, estagiei com a Maria Gambina e fui muitas vezes com ela à ModaLisboa. Ela própria tinha ganho o Sangue Novo. Entretanto, houve um período em que a ModaLisboa esteve off e, quando voltou, resolvi participar também e ganhei o primeiro prémio, com uma coleção que fiz especificamente para ganhar o primeiro prémio.
E que, de certa forma, foi a sua primeira coleção.
Sim. A primeira, na verdade, foi a de final de curso. Mas o prémio da ModaLisboa foi o pontapé de saída, porque me levou a Paris para estagiar no Studio Peclers, onde estive três meses. Depois, concorri para estagiar na Maison Magiela, que era um dos designers mais vanguardistas e mais interessantes da altura. Havia muitas pessoas a querer o mesmo estágio, mas eu fui a uma entrevista e fiquei. Acho que o consegui também por ser português, é interessante. O Margiela era muito agregador de pessoas de outras culturas e países. Interessava-lhe ter uma entourage mais diversa. Estamos em 1997 e existia pouca informação sobre criadores portugueses. Claro que havia a Fátima Lopes, a Ana Salazar, mas eu fui o primeiro português a pedir um estágio ao Margiela. Depois do estágio, convidaram-me a ficar e ainda fiquei um ano ou dois.
O que aprendeu na Maison Margiela?
Foi uma fase incrível, a trabalhar mesmo com o Martin [Margiela] e com a equipa dele. Foi quando ele começou a desenhar para a Hermès e menswear. Houve muita coisa a acontecer no período em que estive lá.
Por que voltou?
Quis voltar porque tinha imensas saudades de Portugal, do mar, do estilo de vida. Era difícil viver em Paris, eu não ganhava muito dinheiro. Queria muito fazer um projeto meu e, por isso, nada melhor do que vir fazê-lo com a indústria portuguesa, que já era bastante forte. Cheguei de Paris e ter trabalhado com o Margiela não me valeu de nada, porque ninguém o conhecia cá.
Criou a sua marca, apresentou na ModaLisboa e chegou até a apresentar em Paris.
Contactei a ModaLisboa a dizer que queria participar. Eles abriram logo um espaço no calendário para mim. Nessa altura, havia prémios e eu ganhei logo o prémio de coleção masculina em duas estações. Foi fantástico ter uma marca própria, fazer exatamente o que me apetecia e apresentar. Depois, consegui um assessor de imprensa em Paris e fiz uma apresentação com a ajuda do AICEP, difícil, pequena e que só aconteceu uma vez. Na segunda vez, queriam que eu participasse no conjunto de designers que compunham a plataforma Portugal Fashion. Eu não gostava da forma como eles apresentavam em Paris, era na semana de senhora e eu apresentava na semana de homem, não era de todo compatível e portanto não fiz, não me deixei levar pelo AICEP, de só me apoiar se eu participasse num certame como o Portugal Fashion. Isso, para mim, é a completa falta de visão e de estratégia das organizações portuguesas, que não conseguem perceber onde é que os designers se situam para poderem responder às suas necessidades. Preferem juntá-los todos e há coisas que, na moda, não funcionam.
Como é que isso afetou a marca?
Prejudicou-me, porque eu não tinha muito dinheiro. Em Portugal, ninguém investe em moda e isso também me fez cair a mim. Na altura, eu vendia em 5 lojas fantásticas em que estava ao lado de designers como Helmut Lang, Vivienne Westwood, Comme des Garçons, em Paris, Tóquio, Milão, Londres. Mas eram poucas lojas, ou seja, o meu volume de encomendas era pouco, o que fazia com que a indústria, que não estava na altura preparada para clientes com menores produções, não conseguisse responder. Respondia às Inditexes e falhava-me, eu era sempre o último a receber as peças, o que significa que era o último a entregar, por isso as lojas pediam-me descontos. Toda essa mecânica fez-me desistir. Na altura queria só fazer uma pausa, nunca pensei em desistir realmente, mas a pausa veio até hoje. Quando caí, percebi que precisava de outras coisas na minha vida. Podia voltar, mas se calhar perdia essas coisas. Em Portugal, as pessoas têm medo de arriscar, por isso nunca saem da cepa torta
Há medo de ter uma visão alternativa?
Nem digo alternativa, acho que é preciso ter uma visão. Tem que se ter um olhar global que, aqui, acaba por ser sempre mais periférico. Mas claro que há marcas de designers portugueses que conquistaram lá fora, como o Filipe Oliveira Baptista, os Marques’Almeida, mas precisaram de ir para fora. Falta qualquer coisa, falta uma Loweve portuguesa. E essa falta é também uma falta de referências para as novas gerações.
Nessa perspetiva, acabou por se tornar alguém muito ligado ao ensino, a dar a mão a quem está a entrar na área.
É uma necessidade enorme que eu próprio tenho de continuar jovem e updated. A minha entourage tem de ser de malta jovem, porque é através deles que eu me renasço, que me revitalizo e que não envelheço. É uma troca total do meu savoir-faire em confrontação com aquilo que, às vezes, é falta de experiência, mas que é criatividade, contemporaneidade. Há aqui uma coisa muito simples, que é uma troca de informação, uma partilha muito justa. Eu preciso deles e eles de mim. É super interessante para mim estar nesse papel de curadoria, de mentoria. Agora vais-me perguntar se eu vou voltar a fazer roupa?
O Miguel deu a entender que é uma porta que está aberta.
Eu não sei, porque eu gosto muito do que estou a fazer. Por um lado, sinto a necessidade de fazer um trabalho próprio e de assinar enquanto designer, mas também gosto muito deste meu papel.
O que faz, na verdade, toca um bocadinho em todas as áreas da moda.
Da moda e não só, porque muitas vezes trabalho com fotógrafos de arte e trago-os para fotografar moda. A mim apetece-me nunca fechar os círculos mas abri-los, pelo contrário. Quero continuar a dar palco a esse tipo de fusões. Se me perguntam “o que é que fazes?”, eu digo que sou fotógrafo. Desenvolvi uma linha que já é identificativa. As marcas já vêm ter comigo, porque me identificam num certo estilo e porque querem adaptá-lo às suas campanhas. É um lugar de liberdade, por assim dizer. Fazer coleções quer dizer estar dependente e a fotografia tem algo que me liberta. Posso ir para a rua, fotografo o que me apetece e faço-o sozinho. Isso para mim é super importante, é um grito de liberdade. Um fôlego.
Então de todas as coisas que faz, sente que fotógrafo é aquela que o representa mais?
Talvez. A fotografia e a direção criativa andam em paralelo, porque gosto da ideia de trabalhar imagens, de trabalhar com pessoas. Faço curadoria de uma residência de artesanato nos Açores há 9 anos, com o festival Walk&Talk, e é incrível. São 15 dias de residência em que chamo designers de produto para trabalharem com artesãos locais. Para mim, é super interessante eu de alguma forma poder saltar de ambiente de trabalho. E isso é bom, porque eu sou um tipo que se aborrece facilmente. Mas isso acontece com toda a gente, com este frenesim das redes sociais. Eu lembro-me de, há muitos anos, ouvir um álbum o verão todo. Agora ouço dois dias.
Há muito mais coisas a chegarem-nos.
Não te contentas e é horrível. Às vezes tens mesmo de desligar. Eu não acho que hoje seja melhor. Há coisas melhores e piores, mas este é o presente e o futuro, por isso tens de te adaptar.
Como é que a Prinçipal surge na sua vida?
Eu trabalhei com o Manuel Teixeira quando ele era diretor do Portugal Fashion. Foi nesse período que fui convidado a desenhar a plataforma de novos designers a que chamei Bloom. Ele esteve lá 4 ou 5 anos e depois saiu. No dia em que eu saí, ele convidou-me para fazer este projeto. Era uma revista que já existia, que tinha outro nome e que ele precisava de redesenhar para que tivesse uma outra linguagem. Convidou-me e eu aceitei automaticamente. A primeira edição foi feita num mês. Com a entourage que tenho, consigo agregar as pessoas de forma a fazer coisas. Tem graça. Quando ele me convidou, eu e o João Cruz — que é hoje o art director da Prinçipal e o meu partner in crime — estávamos a desenhar uma revista. Já tínhamos tido várias reuniões e definido um conceito, faltava-nos um nome. Eu coleciono revistas. Gosto muito do papel, de folhear, gosto mais do que do digital. Quando o Manuel Teixeira me convida através do CENIT, aceitei logo. Esse projeto era, na minha cabeça, desenhado para poder haver um diálogo entre a indústria e as marcas. A ideia era trazer as empresas também [para a revista], mapear Portugal para mostrar quem são as empresas, os designers e onde é que estão. A ideia é que possam viver em conjunto, mas sem as casar. Comecei a ir às empresas e a perceber que também havia beleza nelas. Beleza arquitetónica, know-howórias, tecnologia, sustentabilidade. Quando começamos a fotografar, percebemos que a empresas também podem ter esse lado mais artístico, como a moda. Fizemos até uma campanha onde os modelos estavam na confeção.
Há pouco falava do gosto pelo papel. Foi por isso que sentiu necessidade de transformar o projeto Boys Appetite num livro?
Comecei a fotografar o Boys Appetite há muito tempo, mas só me apercebi em 2017. No fundo eu já fazia fotografias em que me interessava uma zona mais específica do corpo, mais erógena, como o pescoço, as costas, alguns movimentos, e não me interessava propriamente identificar as pessoas ou mostrar a cara delas, preferia sempre algo mais misterioso. Fugir um bocadinho desta ideia constante da selfie. Corro contas de Instagram inteiras do “eu, eu, eu, eu aqui, eu em frente ao espelho, a minha cara, a minha cara”. E quis fugir disso, quis mostrar outras coisas, que podes ter outra beleza, encontrá-la noutros detalhes. Que podes identificar pessoas com um sinal, com algo que te prende o olhar, com um movimento que te excita, que te traz algum frenesim. É nesse sentido e para esse género de objeto que a minha câmara se dirige. O Boys Appetite começou um bocadinho por aí. É tocar, mas não tocas. Tocar através da câmara ou através do olhar, prender através de um momento específico.
Que tipo de fotografia prefere?
Não sou um purista da fotografia, que é uma coisa que me chateia imenso. Se precisas de fazer analógico, porque precisas que tenha esta luz ou esta cor, tudo bem. Eu não preciso disso, preciso de captar um momento, que às vezes é tão rápido, e a câmara digital é a minha arma para o fazer. Viajo bastante com a câmara e é até mais nessas viagens que tiro as fotografias, ou em intervalos de fotografia de moda. Acabo por andar um bocadinho atrás dessa ideia do corpo, da anatomia, que me faz pulsar. Quando dobras o pescoço, aparece uma veia que é uma das veias em que se sente o coração melhor.
Porquê chamar-lhe Boys Appetite?
Chamei-lhe Boys Appetite por causa de um cartaz que vi numa rua em Berlim. O Instagram ajudou-me bastante, porque comecei a postar fotografias e a usar hashtag Boys Appetite e acho que foi algo que aconteceu naturalmente, percebes? De uma forma muito espontânea. Uma vez, fiz uma viagem de Tel Aviv para Jerusalém de autocarro e nesse percurso vi militares. Fiz uma fotografia e resolvi que ia ser a capa do livro. Lancei pela Stolen Books em janeiro de 2020. A pandemia não ajudou nada, porque falhámos uma série de feiras, mostras e lançamentos, que não aconteceram e que estão à espera de um segundo livro, que está na calha. Mas a Stolen Books entretanto fez algumas feiras lá fora e o livro é super bem recebido na Ásia, porque é um trabalho que vive ali num limite do erotismo para uma outra coisa qualquer, não é um livro que choque, mas é um livro que te convida a entrar.
Está aberto à interpretação.
Acho que é um bocadinho isso. Não choca, fica latente.
Que outros relatos chegam lá de fora?
Vou dar-te um exemplo. Já conheci alguns ucranianos e, através de posts e comentários, comecei a seguir alguns perfis mais ligados à comunidade LGBT e começaram a seguir-me outros. Neste momento de crise, é curioso poderes dar-lhes algo. Eu tenho enviado a estes rapazes PDFs do meu livro e conversado com eles. Como resposta, dizem-me que é super importante que falemos com eles, que lhes enviemos coisas para que possam continuar em contacto com o que se passa lá fora e se alhearem do que estão a passar. Funciona nesse prisma, mas depois a arte é importante em tudo.
Que papel é que a arte desempenha em momentos de crise?
Arte é cultura e tu não podes perdê-la. Muitas coisas surgiram como respostas artísticas à crise e é interessante ver as crises dessas perspetivas. Se já não podes fazer roupa porque não podes vender, porque ninguém está a comprar, porque não há dinheiro, podes fazer outras coisas. Podes “alimentar-te” e podes continuar “vivo” através da arte. É fundamental que não fique para trás.