Entre os milhentos filmes que não foram rodados com os realizadores e os actores que estiveram ligados a eles antes daqueles que finalmente acabaram por os fazer, há um que poderia ter resultado muito diferente do que acabou por ser. É Rambo-A Fúria do Herói, que antes de ter ido parar às mãos de Ted Kotcheff e Sylvester Stallone, chegou a ser um projecto de Mike Nichols com… Dustin Hoffman.

Nichols chamava-se na verdade Mikhail Igor Peschowski. Nasceu em Berlim numa família de emigrantes russos, naturalizou-se americano aos 12 anos após chegar aos EUA em 1939 com os pais, e morreu esta semana, com 83 anos. E os media quase só tiveram palavras para a sua segunda longa-metragem, A Primeira Noite (1967).

Trailer de A Primeira Noite

É normal, até certo ponto, porque o filme, além de ter revelado Dustin Hoffman (imposto por Nichols contra a vontade dos produtores, que queriam Robert Redford no papel principal), anunciava o advento de uma nova geração de realizadores e actores americanos que canalizavam a inquietação social, a contestação e as novas sensibilidades artísticas dos anos 60, e usava canções de Simon e Garfunkel em vez de uma banda sonora convencional, o que o tornou num fenómeno pop.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas um ano antes, em 1966, acabadinho de chegar a Hollywood vindo da Broadway, Mike Nichols havia realizado Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, dirigindo com total autoridade o tempestuoso casal Richard Burton/Elizabeth Taylor. O filme foi nomeado para 13 Óscares, de que ganhou cinco, e pela crueza arrojada da linguagem das personagens, marcou o início da revisão das normas constrangedoras com que a Motion Picture Association of America (MPAA) regulava as profanidades e a representação do sexo e a violência no cinema americano, e classificava as fitas.

http://youtu.be/XWgIOb_U2Hc

Excerto de Quem tem Medo de Virginia Woolf?

Quando assinou Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, Nichols tinha já 35 anos e atrás de si uma carreira nos palcos, primeiro como cómico de stand up e improvisação em Chicago e Nova Iorque, fazendo um duo de riso supersónico com a actriz Elaine May, Nichols & May (eram conhecidos como “os humanos mais rápidos do mundo” e Woody Allen adorava-os), depois como encenador na Broadway, onde “descobriu” Robert Redford, em 1963, em Descalços no Parque e dirigiu vários já grandes nomes de Hollywood.

É verdade que Mike Nichols rodou mais de 20 filmes entre 1966 e 2007. Mas entre o início da década de 60 e 2012, o realizador de Artigo 22 levou ao palco ou produziu peças de Tchekhov, Tom Stoppard, David Rabe, Arthur Miller, Samuel Beckett ou Neil Simon, fez Shakespeare ao ar livre no Central Park e até o musical Spamalot dos Monty Python, chegando a ter em cena na Broadway quatro espectáculos ao mesmo tempo.

http://youtu.be/7vgQQnAHuvo

Mike Nichols e Elaine May num sketch, anos 50

Nichols é um dos apenas 12 nomes do mundo do espectáculo a ter ganho os seus quatro maiores prémios: Óscares (o de Melhor Realizador, precisamente por A Primeira Noite), Emmys, Tonys e até um Grammy, por um álbum de comédia com Elaine May.

A sua carreira de mais de meio século foi feita com um pé assente nos teatros de Nova Iorque e o outro nos sets de rodagem de Los Angeles, mantendo sempre vasos comunicantes entre palco e filmes. O que lhe permitiu trabalhar em ambos com várias gerações de actores e actrizes, desde Lilian Gish, George C. Scott, Gene Hackman, Jack Nicholson, Walter Matthau, Eli Wallach e Julie Christie, até Harrison Ford, Meryl Streep, Christopher Walken, Al Pacino, Jeremy Irons, Natalie Portman e Philip Seymour Hoffman.

Prémio de Carreira do American Film Institute, 2010 

 

Tal como nem todas as suas produções teatrais conheceram o sucesso, também nem todos os seus filmes são memoráveis. Além dos citados Quem Tem Medo de Virgina Woolf? e A Primeira Noite, Artigo 22 (1970),  Iniciação Carnal (1971), Uma Mulher de Sucesso (1988) ou Escândalos do Candidato (1998), Mike Nichols tem no seu currículo de realizador coisas tão embaraçosas ou desatadamente más como Operação Golfinho (1973), Uma Fortuna por Água Abaixo (1975), O Regresso de Henry (1991) ou Lobo (1994), este com Jack Nicholson a fazer de lobisomem (!).

Trailer de Uma Mulher de Sucesso 

“Mike Nichols é o único realizador que eu conheço que nos consegue persuadir a interpretar um papel do começo ao fim da rodagem”, disse Richard Burton depois de Quem Tem Medo de Virginia Woolf?. Este dom para atrair grandes actores a virem trabalhar com ele, o seu fino detector de novos talentos e a capacidade para tirar o melhor daqueles com quem trabalhava, fossem revelações ou consagrados, aliados ao facto de não ter um estilo cinematográfico reconhecível e de nunca se ter especializado num género (a haver um assunto regular na obra cinematográfica de Nichols, são os rituais de amor e desamor entre os homens e as mulheres, mostrados ora como tragédia, ora como comédia), levaram alguns a dizer que, como realizador, ele era mais um exímio produtor e um consumado director de actores do que outra coisa. Foi o caso do crítico e historiador inglês de cinema David Thomson, que lhe chamou “um fazedor de embrulhos”.

Embrulhos de muito bom gosto, que apetecia abrir pela garantia da qualidade do que lá estava dentro. Em sua defesa, podemos dizer que há no cinema muita gente que, a fazer embrulhos, não chega aos calcanhares de Mike Nichols.

Trailer de Jogos de Poder 

O seu último filme data de 2007, Jogos de Poder, com Tom Hanks, Julia Roberts e Philip Seymour Hoffman. Em 2012, ganhou o seu nono e último Tony, pela encenação de Morte de um Caixeiro Viajante. Quando morreu, Mike Nichols ia voltar à televisão e produzir e realizar, na HBO (para a qual tinha já filmado, em 2003, a peça Anjos na América, de Tony Kushner), uma adaptação da peça de Terrence McNally Master Class, sobre Maria Callas. E deixa-nos a imaginar como teria sido o seu Rambo com Dustin Hoffman em vez de Stallone.

5 fotos