As gémeas P. e L. tinham 20 meses quando foram diagnosticadas com a Perturbação do Espectro de Autismo, ambas com necessidade de “apoio substancial”. Com um programa de intervenção de dois anos, impulsionado pelos seus pais e que juntou uma equipa de especialistas multidisciplinar, foi possível fazer “regredir” os sintomas associados a esta perturbação de forma muito significativa, descrevem os autores de um artigo publicado recentemente. Se as melhorias dos sintomas são descritas como uma “espécie de milagre” — nas palavras de um pediatra que acompanhou de perto as crianças –, multiplicam-se as críticas às fragilidades do artigo, com especialistas a alertar que não se pode tirar “conclusões” e que “contribui pouco” para modificar normas já existentes de tratamento.
O artigo foi publicado no final de abril deste ano no Journal of Personalized Medicine e descreve uma intervenção junto de duas gémeas norte-americanas que se focou nos fatores ambientais, no estilo de vida e alimentação personalizada às características e sintomas das duas crianças. Esta semana começou a ser noticiado por alguns meios de comunicação britânicos e desencadeou uma resposta muito crítica, com associações a descrever as notícias como “insultuosas” e a questionar alguns dos métodos descritos no artigo sobre o acompanhamento das crianças.
“Há notícias sobre um estudo que alega que o autismo pode ser ‘revertido’. Isto é profundamente insultuoso para as mais de 700 mil pessoas autistas no Reino Unido”, criticou por estes dias a britânica National Autistic Society — algumas associações são muito vocais contra a ideia de que o autismo pode ser revertido. A associação também critica o que descreve como intervenções “questionáveis“. “O autismo não pode ser ‘curado’ ou ‘revertido’. Imagine ver manchetes a dizer que uma parte essencial da sua identidade pode ser ‘revertida’. Linguagem como esta faz-nos retroceder e mostra o quão longe ainda temos que ir para construir uma sociedade adaptada a pessoas autistas”, sublinha a associação numa publicação na rede social X.
There are some articles in the news today about research that claims autism can be ‘reversed’.
This is deeply insulting to the more than 700,000 autistic people in the UK. We are completely baffled why this has even been published by UK papers. This is a case study of a single… pic.twitter.com/ztmqv7ugad
— National Autistic Society (@Autism) July 21, 2024
Ao Observador, Chris D’Adamo, um dos autores que assina o artigo e investigador da Universidade de Maryland (EUA), diz que usaram uma abordagem terapêutica para dar resposta à “carga total de fatores de stress” — alimentos ultra-processados, tóxicos ambientais, uso excessivo de medicamentos, exposição excessiva a campos eletromagnéticos — por meio de modificações no estilo de vida e no ambiente, algo que, diz, “já ajudou muitas pessoas a melhorar os sintomas do autismo”. “Nem todas as crianças vão melhorar tanto quanto estas gémeas, mas é provável que haja pelo menos algum grau de melhoria quando o estilo de vida e o ambiente forem melhorados com o apoio de uma equipa multidisciplinar”, defende.
Especialistas ouvidos pelo Observador que não estiveram envolvidos na publicação do artigo mostram-se céticos e apontam várias limitações ao caso apresentado. “É a descrição de dois casos clínicos, portanto, não nos permite tirar conclusões de que o que ali foi feito deva ser extrapolado para outros casos de autismo”, considera Tiago Proença dos Santos, neuropediatra do Hospital de Santa Maria. A neuropediatra Cristina Martins Halpern, do Hospital Dona Estefânia, tem uma interpretação semelhante. “Não tem praticamente nenhuma validade a nível de uma decisão terapêutica, uma decisão clínica de instituir um tratamento a uma criança”, afirma, acrescentando que estes casos descritivos “contribuem pouco” para modificar normas já existentes de tratamento.
O diagnóstico e uma terapia focada no estilo de vida, alimentação e exposição
Em 2021, as gémeas — identificadas como P. e L. por uma questão de privacidade — foram diagnosticadas com a Perturbação do Espectro do Autismo. Esta manifesta-se na infância e caracteriza-se por dificuldades na comunicação e interação social. “São crianças que têm dificuldade em perceber o que os outros querem e relacionar-se com os outros“, enquadra Tiago Proença dos Santos. Evitar o contacto visual e ter comportamentos, interesses ou atividades repetitivas estão entre os sinais. “Tenho um paciente que sabe todas as pistas de esqui da Europa e que não faz esqui; outro sabe todas as estações de comboio”, exemplifica.
O que é a Perturbação do Espectro do Autismo?
↓ Mostrar
↑ Esconder
O autismo é uma perturbação que se manifesta na infância e que se caracteriza por dificuldades na comunicação e interação social e por comportamentos, interesses ou atividades repetitivos e estereotipados.
Os sintomas de autismo estão presentes desde cedo durante o desenvolvimento das crianças, mas, muitas vezes, só são valorizados quando determinadas capacidades, como a linguagem, não se desenvolvem no momento esperado, pode ler-se numa página do Serviço Nacional de Saúde sobre o autismo.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), aproximadamente uma em cada 100 crianças no mundo são diagnosticadas com a Perturbação do Espectro do Autismo (PEA).
A origem da PEA ainda não é bem compreendida e há muito que ainda não se conhece sobre esta perturbação. Os estudos mais recentes indicam que os genes são uma parte do problema, mas não explicam todas as situações, sendo que os fatores do ambiente também podem ter influência.
No caso das gémeas, o diagnóstico foi feito aos 20 meses, algo que não é incomum, já que sintomas como atrasos na fala ou dificuldades de contacto social podem ser observados logo entre os 18 e 24 meses. Segundo o artigo, as gémeas tinham uma comunicação verbal e não verbal limitada, comportamentos repetitivos e problemas gastrointestinais. Perante o diagnóstico, apontado como “severo”, iniciou-se uma intervenção terapêutica, impulsionada pelos pais, que envolveu uma série de clínicos.
A abordagem, adaptada às duas crianças, passou por mudanças de estilo de vida e da alimentação e cuidados com exposições ambientais. O primeiro passo foi a terapia ABA [Análise Comportamental Aplicada] — baseada na identificação do porquê de se agir de certo modo e como o ambiente em redor afeta as ações. As crianças também tiveram sessões de terapia da fala e acompanhamento de uma terapeuta ocupacional.
Os pais das crianças introduziram um programa rigoroso de dieta: retiraram da alimentação proteínas como o glúten e a caseína (a última está em alimentos como o leite), priorizaram alimentos orgânicos, de origem local, e cortaram com corantes artificiais e alimentos ultra-processados. As crianças também receberam suplementos diários: ómega3, multi-vitaminas e vitamina D. Além disso, a família fez por reduzir substâncias tóxicas no ambiente a que as crianças estavam expostas, melhorando a qualidade do ar na sua casa e minimizando a exposição a possíveis tóxicos.
Autores descrevem “melhorias muito significativas” no espaço de dois anos
Face a esta intervenção, que se prolongou durante dois anos, a equipa de Chris D’Adamo descreveu “melhorias muito significativas” em ambas as crianças. Referem que houve uma redução numa escala utilizada por vezes para olhar para o espectro de autismo (a Autism Treatment Evaluation Checklist, em inglês ATEC): numa das gémeas de 76 para 32 e noutra de 43 para 4.
O progresso de uma das crianças, a gémea P., é descrito como particularmente significativo e, nas palavras de um pediatra que a acompanhou, como uma “espécie de milagre”. Os autores referem mesmo que no caso desta menina os sintomas associados à Perturbação do Espectro do Autismo “foram revertidos ao ponto de ser indistinguível de crianças que nunca tiveram histórico de sintomas de autismo”.
Numa resposta escrita ao Observador, Chris D’Adamo diz que são necessários mais estudos, mas que este “pode ser um sinal de esperança de que há mais a fazer para melhorar os sintomas associados ao autismo do que se poderia pensar”. “Através desta abordagem, testemunhamos a recuperação radical de uma das nossas filhas — que é hoje uma criança de quatro anos alegre, envolvente, espirituosa e extremamente brilhante. Continuamos firmes no apoio à nossa outra filha, cujo progresso também nos surpreende consistentemente e nos lembra que a recuperação é possível no ritmo individual de cada pessoa”, sublinham os pais das meninas, citados no artigo.
Apontadas críticas e fragilidades ao artigo
Muitas críticas têm surgido desde a divulgação do estudo. “Há tantas boas investigações a decorrer, mas são eclipsadas por tontarias e clickbaits irresponsáveis“, criticou Tim Nicholls, da associação britânica National Autistic Society, referindo-se ao artigo científico e à notícia publicada pelo jornal Telegraph, com o título “O autismo pode ser revertido, descobrem cientistas”. “É preciso falar melhor sobre investigações melhores quanto ao autismo. Trabalhamos com inúmeros académicos que fazem um ótimo trabalho. Gostaríamos muito de ver esses estudos a receber cobertura”, escreveu no X.
There is so much good research going on now, but it gets eclipsed by nonsense or irresponsible clickbait. We need to talk better about better autism research. We @Autism work with countless great academics doing great work. We'd love to see those studies getting coverage instead. https://t.co/pVaSSwtxht
— Tim Nicholls (@tim_nicholls) July 22, 2024
Em declarações ao Observador, o neuropediatra Tiago Proença dos Santos refere que o facto de as crianças terem melhorado não é suficiente para afirmar que se deveu à intervenção. Diz também que sendo apenas a descrição do caso das duas meninas, dificilmente se pode extrapolar para outros casos de autismo, lembrando que nas investigações científicas é sempre necessário olhar para grupos alargados e ter um braço de controlo que não recebe tratamento para haver termo de comparação.
“Este caso apresenta duas gémeas que são submetidas a uma série de medidas e há melhorias. Mas nós não sabemos se elas não iam melhorar independentemente das coisas que foram feitas“, refere. Nesse sentido, a neuropediatra Cristina Martins Halpern acrescenta que com a implementação de tantas medidas diferentes se torna impossível distinguir quais os fatores que poderão ter funcionado: “Quando as crianças sofrem intervenção, e essas crianças sofreram múltiplas intervenções, é impossível isolar uma só e saber o que foi eficaz.”
Os neuropediatras ouvidos pelo Observador também questionam algumas das intervenções feitas junto das gémeas, nomeadamente ao nível alimentar com a retirada do glúten e da caseína. Há casos isolados em que são relatadas melhorias nos sintomas do autismo com a retirada de certas proteínas das dietas, mas não há evidências suficientes para as recomendar às pessoas no espectro. “Nestas crianças em concreto, que têm diarreia e outros sintomas que se comprovou estarem associados à intolerância à lactose, faz sentido tirá-la. Na generalidade dos autistas não há evidência nenhuma de que tirar a lactose tenha qualquer relevância“, aponta Tiago Proença dos Santos.
O mesmo acontece com o glúten, diz o neuropediatra, lembrando o caso de um paciente com autismo que acompanhou e que era alérgico à proteína. “Quando eu reintroduzo o glúten na dieta dele, os sintomas core do autismo também pioram, ele fica com mais estereotipias, mais tendência para evitamento social, mas é uma exceção. Na generalidade dos doentes, o glúten não tem nada a ver com o autismo“, nota.
“Diria que o relevante é a modificação de hábitos educacionais e a estimulação, não são os suplementos de ómega 3, a vitamina D. Essas ainda não demonstraram de uma forma categórica que tenham um impacto positivo”, acrescenta. A este propósito, Cristina Martins Halpern lembra que há muitas investigações sobre o eixo intestino-cérebro, “uma área que tem tido uma expansão grande nos últimos anos”. “Alguns estudos que têm saído são relevantes, mas ainda não têm uma aplicação clínica validada, muito menos pediátrica”, sublinha.
Tiago Proença dos Santos também deixa um alerta face a um aspeto descrito no estudo, o de que os pais das crianças notaram pioria dos sintomas depois de receberem as vacinas recomendadas para a sua idade. Os autores referem a questão só de passagem, sem daí tirar conclusões, mas o médico deixa um alerta: “É uma absoluta mentira que haja qualquer correlação entre qualquer tipo de vacinas e a perturbação do espectro do autismo”. “O diagnóstico do autismo é geralmente feito entre 1 e 2 anos. Ora, como as vacinas são feitas entre os 12 e os 18 meses, estabelece-se essa ligação, mas é uma ligação que não faz sentido nenhum”, acrescenta. Ao longo dos anos já têm sido realizados inúmeros estudos que afastam qualquer associação entre vacinas e o autismo.
Questionado sobre as críticas ao estudo, Chris D’Adamo escuda-se na publicação do artigo num jornal científico e que passou pela revisão de pares, mas também seguiu as diretizes CARE — desenvolvidas por especialistas para aumentar a transparência e precisão de artigos. “Apesar de serem necessários estudos posteriores para determinar de forma mais conclusiva a eficácia desse tipo de abordagem, este relato de caso foi escrito de acordo com os mais altos padrões para esse tipo de investigação e alegar que ‘nenhuma conclusão’ pode ser tirada é uma declaração equivocada”, considera.
Que acompanhamento recebem habitualmente crianças com autismo?
O neuropediatra Tiago Proença dos Santos aponta que a melhoria descrita pelos autores é de facto significativa, mas sublinha que há muitos casos assim. “Acompanho dezenas, centenas de crianças com diagnóstico de um autismo grave e que, com uma intervenção adequada, têm uma melhoria tal como é descrita ali”, refere. “Diria que este artigo não diz nada de novo, que o autismo tem tratamento e que o tratamento passa por alterações comportamentais.”
Tipicamente, o acompanhamento de pacientes no espectro do autismo passa por uma intervenção multimodal. Uma vez feito o diagnóstico — às vezes, feito facilmente em consulta, outras vezes com recursos a testes psicológicos –, aconselha-se aos pacientes evitar o tempo de exposição a ecrãs, o início imediato de jardim de infância, quando ainda não estão inseridos em contexto escolar, e promover ao máximo o convívio com outras crianças. “Elas precisam de estar em contacto com outras crianças para as ajudar a fazer um mecanismo de imitação e porque, normalmente, no jardim de infância há mais regras que muitas vezes em contexto familiar é difícil ter”, nota Tiago Proença dos Santos.
Por vezes pode ser necessário recorrer a terapia ocupacional ou psicomotricidade, onde é feita uma intervenção sobre a capacidade de gestão do corpo e a promoção de competências sociais. Também pode haver um acompanhamento psicológico, através foco em mecanismos e jogos para treinar os tempos de atenção e as competências sociais. Em casos em que há problemas ao nível da linguagem, por vezes também há um acompanhamento de um terapeuta da fala.
No trabalho que faz no Hospital D. Estefânia, Cristina Martins Halpern diz que vê sempre melhorias: “Nas consultas, é raro os pais não trazerem pequenos sinais positivos, porque o bebé olha mais, porque está mais tranquilo ou já regula melhor as birras”. Tiago Proença dos Santos reforça esta ideia: “É óbvio que a intervenção sobre autismos graves às vezes resulta muito bem, depende da etiologia do autismo, que é uma doença que ainda não percebemos bem. Há outros miúdos [pelos quais] podemos fazer tudo e mais alguma coisa e melhoram muito pouco. Mas todos eles melhoram”.