Anthony Bourdain, o famoso chefe transformado em pop star televisiva, protagonista de programas de sucesso como “No Reservations” ou “Parts Unknown” e autor de livros fundamentais sobre os meandros do mundo da cozinha (Cozinha Confidencial, por exemplo) suicidou-se num hotel em Kaysersberg, em França, a 8 de junho de 2018. Na altura, estabeleceu-se um recorde de buscas no Google por duas palavras: “Bourdain” e “suicídio”. Muita tinta correu, com um polémico documentário “Roadrunner: A Film About Anthony Bourdain” pelo meio,
Entre programas, dizia várias vezes que “seria formidável extinguir-se em Espanha com um grande naco de carne de porco na boca ou no Chateu Marmont como John Belushi”. Quando a vida azedava, chegava mesmo a ameaçar “frequentemente” enforcar-se no varão da cortina da banheira. Nos últimos anos, já tinha parado de consumir drogas, mas o consumo de álcool nunca o largou. Aumentou. Nunca parou de comunicar com a sua ex-mulher, Ottavia Bourdain (de quem nunca se divorciou). Trocou as últimas (e frias) mensagens em vida com Asia Argento, com quem tinha uma relação tóxica — e que muitos acreditam ter sido uma das razões para tamanho desfecho trágico –, afastou-se da filha Arianne, fartou-se dos fãs, do trabalho e da fama. Tornou-se naquilo que mais odiava na sua mãe: um bully.
Na noite anterior à sua morte, tinha visitado um restaurante Michelin com o seu grande amigo e chef Ripert, acabando a noite a ser aplaudido num jardim de cerveja. Estava aparentemente bem. Mas na vida de Bourdain nem tudo foi claramente aquilo que parecia. A história de uma figura pública que revolucionou os programas de culinária e garantiu um lugar na história como um dos melhores storytellers da sua geração é posta a nu na polémica biografia não autorizada de Charles Leerhsen: Miserável no Paraíso — A Vida de Anthony Bourdain, editada pela Minotauro e disponível agora em Portugal.
Alguns dos jornais mais respeitados do mundo criticaram duramente o jornalista e autor norte-americano. A sua obra tinha um único objetivo, segundo o The Guardian: “Prestar o desserviço ao legado de Bourdain”. Afinal, Leershen tinha tido acesso a material sensível e confidencial, desde emails a mensagens de telefone, entre Bourdain e o seu núcleo mais próximo de pessoas, como Asia Argento. Conteúdo vindo diretamente de objetos pessoais da estrela de “Parts Unknown”. O irmão do chef, Christopher Bourdain, acusou publicamente o autor de difamação. A agente de Bourdain e nome forte do mundo da literatura e da culinária, Kim Witherspoon, tentou controlar o fluxo de informação para que a história que Leershen queria contar não destapasse panos mais obscuros. Vários chefs recusaram-se a falar com ele. O escritor não desistiu. A sua investigação durou três anos, fez cerca de 80 entrevistas e tem agora mais de 300 páginas da sua autoria para responder, ou tentar responder, à pergunta: o que é que leva um homem que tem o melhor emprego do mundo a ficar tão infeliz ao ponto de se suicidar?
Para tentar perceber, Charles Leerhsen seguiu o miúdo de Nova Jersey, a juventude em Vassar, o espírito de revoltado, as drogas, o suave mas asfixiante núcleo familiar, a sua paixão acidental pelo processo televisivo e a sua profunda romantização das relações que manteve com diferentes mulheres ao longo da vida. De como depois do seu ensaio na New Yorker em 1999 foi catapultado para o pequeno ecrã, vendeu milhares e milhares de livros, viajou mais de 200 dias por ano, da Ásia até Portugal, a conhecer não só a cultura, mas sobretudo as pessoas reais. Um famoso tardio aos 40 anos, que sabia os efeitos da fama, mas que não a recusou, deu-lhe a volta. À sua maneira. Foi em busca da imperfeição do ser humano no seu estado mais puro. A versão não autorizada da vida. No fim, todo esse imaginário construído ao redor da marca Bourdain, conta o biógrafo, caiu numa redoma do inferno. Quer em relação à família, às mulheres, mas também à equipa com quem trabalhava. Porquê? Exaustão, fadiga extrema, dependência e, até certo ponto, a sua obsessão por Asia Argento. “A história de Bourdain é de alguém que se tornou famoso tarde. Percebeu o que acontecia às celebridades e não queria ser assim. No fim, transformou-se nesse homem. Nos últimos dias de vida, sentiu que era um monstro. Mas toda a gente tem um lado negro. Tenho mais respeito por ele agora. Lutou contra si mesmo. Não sobreviveu, mas deu uma boa luta”, garante Charles Leerhsen ao Observador.
Porque é que acha que o seu livro foi tão criticado? Por espelhar um lado mais obscuro de Anthony Bourdain ou por partilhar material confidencial e sensível?
As críticas mais duras foram uma minoria, devo dizer. Dentro de quem criticava havia um sentimento muito protetor. Não queriam que ninguém escrevesse um livro sobre o Bourdain. Encontrei duas razões para isso: quem genuinamente o amava, essas pessoas eram sinceras, estavam a ser, de facto, protetoras, mas depois também houve quem quisesse ser visto publicamente como defensor. É preciso dizer que, ao escrever este livro, não o quis nem estava a atacar. Estava a escrever uma biografia. A maior parte das pessoas perceberam. Uma figura pública está sujeita a que escrevam sobre a sua vida. Horas depois dele se suicidar, houve um recorde de pesquisas no Google pelas palavras “suicídio” e “Bourdain”. Muita gente estava curiosa para perceber porque é que o homem que tinha o melhor emprego do mundo se tinha suicidado. Como é que esta contradição aparente podia ser resolvida? Essa foi a minha motivação, um impulso de preencher esse vazio, mais do que continuar a preencher o ciclo noticioso sobre a sua vida.
Depois desta biografia não autorizada, consegue perceber porque é que este desfecho trágico aconteceu? Se é que é possível perceber.
Acho que o percebo melhor. Não sei se alguém consegue dizer, com certeza absoluta, o porquê de alguém ter terminar com a própria vida. No caso dele, tínhamos várias pistas, tendências que podíamos traçar até ao período em que era criança. Estava desesperado. Desespero extremo. Claro que toda a gente já esteve desesperada, ainda assim, poucas dão o passo de terminar a vida. É algo muito privado e momentâneo. Uma solução definitiva para um problema temporário. Na minha biografia falei muito da sua juventude, era um rapaz muito romântico. Tinha grandes noções de romantismo, criava grandes gestos a mulheres, por exemplo. Era, por outro lado, muito impulsivo. Estes dois fatores costumam andar de mão dada. Depois tinha o problema da dependência de drogas, que ultrapassou, e o álcool que nunca ultrapassou. Foi bebendo cada vez mais até ao fim. A fadiga dele, viajava pelo mundo durante cerca de 350 dias ao ano. Todos nós já viajamos, parece maravilhoso no abstrato quando planeamos, mas quando vamos, é cansativo e frustrante, especialmente nos dias de hoje. Ele estava na estrada, a lidar com atrasos, exausto, com fadiga mental. O alcoolismo aumenta tudo isto: torna-te cansado. Estava a ir ao limite, a exigir demasiado de si, a consumir grandes quantidades de álcool. Quem nunca tentou construir um boneco que recebeu no Natal, vai para a cama, estás cansado de não conseguir mas na manhã seguinte consegues perceber? Bourdain nunca chegou a esse ponto. Estava enrolado numa teia de aranha de romantismo. Não conseguia desatar o grande nó em que a sua vida se tinha tornado. E isso contribuiu para o desespero.
Um homem perturbado.
Perturbado com o amor, ia com tudo em tudo o que se metia. Muito do que descrevo pode ser visto como de alguém que tinha um comportamento adolescente. Há mulheres que cito, a Paula Froechlich, que namorou com ele, que me disseram: “não te enganes, o Anthony era um adolescente perpétuo”. Nunca cresceu em alguns aspetos da sua vida, sempre envolvido em relações muito intensas. Com a mãe dele foi complicado, era uma bully, fazia bullying ao pai, viu isso a acontecer diante dos seus olhos. Odiava. Estavam a viver acima das possibilidades, havia muito stress à mistura. O pai, apesar de ter boa educação e ser inteligente, nunca conseguiu ter trabalhos que dessem dinheiro. E teve vários. A mãe nunca o deixou esquecer isso. De perceber que ele não era um bom ganha pão. Isso irritava muito o Bourdain. A primeira mulher com quem se juntou, foi all in até o amor se esgotar. Ultrapassou, nunca voltou. Quando conhece a Ottavia, a segunda mulher, também foi muito intenso. Depois conhece a Asia Argento. Diz, a certa altura, à Ottavia: “eu pensava em ti desta forma”. Que coisa tão pouco cool de se dizer. Eles relacionavam-se, mantiveram contacto até ao fim, o Bourdain pedia-lhe conselhos. Por outro lado, odiou a mãe até ao fim. Nunca percebeu verdadeiramente a natureza das mulheres. Mas meteu na cabeça que não podia viver sem a Asia. Quando se chega a esse ponto, OK, podemos dizê-lo, escrevemos uma música sobre esse tema, mas se o dizemos mesmo a sério, é uma situação má. Ele convenceu-se disso aos 60 anos. De que não podia viver sem outro individuo. Quanto mais a perseguia, mais ela o afastava. A Asia gostava cada vez menos dele por não a deixar em paz. Ele sabia-o, vemos isso quando partilho os emails e as mensagens. Estava a destruir a relação com a sua obsessão. Mas não conseguia parar. Antes da minha investigação, não sabia disto. Só descobri com essa material.
Quando se mergulha num episódio trágico e se descobre um lado mais negro, é impossível não se sentir assustado de alguma forma porque há uma desilusão misturada. Certo?
Devo dizer-lhe que a parte mais assustadora, como repórter, foi que ninguém queria falar comigo, dos mais próximos. A agente dele, Kemberly Withesrpoon, silenciou toda a gente por razoes económicas. Queriam controlar o flow de informação. Lidar com o lado mais negro do Bourdain? Muito pouco. Preservar a imagem, vender livros e quem sabe, outros produtos até ao fim. Ela tem muito poder no mundo editorial e da cozinha. É agente de grandes chefes, quem queria escrever livros ou memórias e cair nas boas graças, tinham medo. Chegaram a dizer a todo o staff de diferentes chefs para não falarem comigo. Fui persistente, mantive-me no jogo, continuei a perguntar, descobri amigos do secundário, falei com quem pude. Quando o muro de silêncio se parte, descobri amigos dele muito interessantes. Ela não podia dizer-me com quem eu podia ou não falar. Ninguém o podia fazer. É muito pouco Bourdain colocar produtos que limpem a imagem dele no mercado, que não sejam autênticos. Que tenham uma realidade limpinha. Houve gente que se cansou dessa versão dos acontecimentos e começou a falar comigo. Queriam que a verdade fosse contada. Como ele estava a magoar a filha ao manter a distância, porque a Asia não queria que ela publicasse imagens dos dois. Não queria que ele estivesse com a ex-mulher, a Ottavia. Mas a Asia podia continuar a estar com quem quisesse.
Não hesitou em continuar a escrever mesmo com esses coletes de forças.
Não tive nenhuma hesitação em escrever. Tentei escrever a história, a versão mais verdadeira. Não queria destrui-lo, diminui-lo, tirá-lo do pedestal. Acho que o livro não fala disso. Mostra a luta e as dificuldades dele, mostra como ele realmente era. Não queria prejudicar a sua reputação. Queria descobrir quem era este homem. Bourdain não queria a versão autorizada de nada na vida. Quando tinha de ir para outros países, evitava o turismo oficial, os guias turísticos, os canais de comunicações oficiais e os assessores oficiais. E com isto não estava a tentar prejudicar a reputação e a imagem do país, não. Só queria encontrar as pessoas reais, entrar em casas delas, ir a casamentos. Ver pessoas pelo que realmente eram. Nunca fingiu que era perfeito. Queria sempre ser engraçado. Era um comediante natural. No livro conto o episódio de quando que estava em Hong Kong, onde disse: “se não houvesse sangue no meu banco, seria uma manhã perfeita”. Estava sempre a mandar-se abaixo, a mostrar que era um ser humano. Quando uma das fontes me ofereceu este material, não hesitei em dizer que sim. Queria conhecer o homem real. São informações muito bonitas, não são embaraçosas, estamos a falar de conversas íntimas com a mulher e com a namorada, a decorrer ao mesmo tempo. E não conversas de bebés ou tontas, como se estivéssemos a falar entre namorados. Mesmo quando estavam irritados, não havia profanatismo. Pessoas inteligentes a tentarem perceber-se. Foi um privilégio que não podia negar aos meus leitores. Não quero saber o que as pessoas pensam. Não tinha falsas pretensões. Queria só que fosse o mais apurado possível.
Defende-se dizendo que limitou-se a seguir as regras do que muitos biógrafos já fizeram.
Os escritores usam cartas pessoais. Contém informação muito embaraçosa. Mas os biógrafos sempre gostaram desses materiais, porque fala sobre o que está mesmo a acontecer. Nunca ninguém diz que não se devia ter usado as cartas de Júlio César. Mas com Bourdain as pessoas disseram-no. Quem é que quer ler uma biografia autorizada? Prefiro ler o o comunicado de imprensa. Quero ler uma boa biografia, respeitadora.
Ainda assim, teve problemas com pessoas próximas de Bourdain. Quem foi mais problemático?
O irmão, Christopher Bourdain. Foi a única pessoa que se opôs a participar através de um intermediário. Perguntámos o que achava que estaria errado. Disse que tudo estava errado. Quando alguém diz isso, depois de insistirmos, e não consegue especificar um momento… O problema é que estava tudo muito correto, muito vivido. O Christopher não tem boa reputação entre a malta da produção do irmão e dos seus trabalhadores. Estava sempre a tentar ter um programa dele. Quando Bourdain começou a dizer que estava cansado nas ultimas temporadas, o irmão estava sempre lá, a pedir para ser contratado. Era embaraçoso. Ele não é carismático. Não é como o irmão. Nem o reputado chef Eric Ripert se recusou a falar comigo. Contou aquela história de estar, preocupado, no quarto de hotel ao lado de Bourdain e de se colocar à porta, a tentar ouvir o que ele estava a fazer, se estava a dormir ou não. Nunca tinha contado a ninguém. Ainda assim, o irmão nunca disse nada mais concreto. A única coisa foi que se tinham afastado só durante quatro anos, deixaram de se falar na última etapa da vida do Bourdain. Desejo-lhe tudo de bom, mas as suas objeções nunca me preocuparam muito.
E em relação à namorada, a Asia, que disse que só “Judas escreveria esta biografia”, responde-lhe, através de um jornal, diretamente a si. O que tem a dizer?
Mostrou que é muito inteligente e letrada. Sim, certo, Judas escreveu a biografia. Mas ela falou comigo, respondeu-me, diria que sete ou oito vezes. E fê-lo até com alguma profundidade. Acabou por dizer que não queria que se usasse qualquer dessa informação, os advogados avisaram-me que poderia usar alguma. Talvez parafraseando, mas, lá está, citei-a a espaços. Nunca disse que me enganei. Que entendi mal a história de vida. Os fãs mais devotos do Bourdain odiavam-na. Acham que é responsável pela sua morte. Não acredito nisso. Podiam-se ter portado melhor um com o outro, mas não a vejo como a razão para ele se ter suicidado. Ele estava obcecado, mas não era culpa dela. É como no secundário: quero ser namorado daquela rapariga, queres estudar com ela, mas não quer dizer que vás ser namorado. A Asia podia mandá-lo para trás. Se ele entrou nessa espiral, não é culpa da Asia.
Um dos momentos mais felizes foi o episódio em que saboreou uma ostra em la Lestre sur Mer com a família. “O sorvo que fez dele uma superestrela”, diz no livro. Que outros momentos poderia destacar em que o viu verdadeiramente feliz? Em televisão, parecia que Bourdain cruzava os limites do que era realmente estar e ser feliz.
O último programa que fez, o “Parts Unknown”, consideram que é onde o vemos melhor. Acho que foi nos primeiros episódios. Não é que o programa fosse mau, mas começou a ficar deprimido, a ficar exacerbado por tudo, com álcool à mistura. No “No Reservation”, acho que o vemos no seu melhor, na verdade. Era sempre um comediante. Tinha de ser resmungão, chateado com pequeno detalhes na rodagem, não podia estar sempre feliz. Encontrava algo para se chatear ou criticar alguém na equipa como piada. Depois, no fim, no “Parts Unknown”, começou a ser bully. A história do Bourdain é de alguém que se tornou famoso tarde, aos 40 anos, floresceu tarde, o chamado late bloomer. Percebeu o que acontecia a alguém que se tornava numa celebridade e que não queria ser assim. Garantiu que não se tornaria nessa pessoa, que desistia se isso acontecesse.
Dizia até que não se importava de voltar atrás na carreira.
Que voltaria a fritar batatas, fazer bifes ou hambúrgueres. Depois foi apanhado pela televisão. No fim, de, facto, transformou-se nesse mesmo homem. Acho que foi pouco tempo depois, nos últimos dias de vida dele, que sentiu que era um monstro. As relações pessoais tornaram-se muito más, fazia muito bullying. Deu conta do que se tinha tornado. Foi mais um passo para o desespero, de que nunca conseguiria sair dessa encruzilhada. Relembro o caso do jovem de 17 anos que acusou a Asia de abuso sexual, pagou mais de 300 mil euros ao acusador, contratou um detetive privado para o seguir e conseguir material sujo para o silenciar no futuro como extorsão. Uma visão feia à Hollywood. Ele foi apanhado nesse esquema. Antes, quando era jovem, ainda se estava a tentar encontrar. Portanto acho que quando falámos do período mais negro, temos de olhar para o meio da vida dele. Quanto à sua melhor fase, mantenho: “No Reservations”. Ainda está a perceber o que era fazer televisão, era um pouco como os Beatles. De simples músicos a artistas. Bourdain e a sua equipa conseguiram fazer um maravilhoso programa de televisão que é bem mais difícil de fazer do que parece. Mostrar imagens de sítios exóticos e toda a gente vai ver. É o oposto. Não é como olhar para imagens de telemóvel. Ele percebeu, esse foi o milagre.
Tornou-se também obcecado com o processo televisivo. Chegou a dizer que a melhor forma de fazer televisão era não querer saber.
Não havia nenhuma indicação do que ele queria ser na infância. E não querer saber era o segredo, sim, mas queria muito saber. Preocupava-se. Não queria fazer tudo à forma convencional, o lado bonito é que Bourdain queria-se afastar da fórmula tradicional de televisão. O que quer que pusesse em televisão, preocupava-se muito com o que colocava no ecrã. Não que estivesse a fazer algo que nunca ninguém tinha feito. De cortar o mato televisivo e trilhar o seu caminho. A qualidade é que importava. Para ele e para a sua equipa muito talentosa. Discutiam, descobriram-se em conjunto, como viajar, como sobreviver à volta do mundo. Como filmar um casamento, de não se colocarem câmaras ao alto porque as pessoas mais desfavorecidas podiam ficar intimidadas por estarem em países com menos acesso tecnológico. Pequenos detalhes desses. Tornaram-se muito orgulhosos do seu trabalho, passaram férias juntos, celebraram aniversários na estrada. Criou-se uma experiência de bonding durante 17 anos. Depois, virou-se contra eles. Bourdain tornou-se terrível para trabalhar, despediu um dos melhores amigos. Era um inferno trabalhar com ele, no fim. E ele sabia. Esses foram os dois murros que fizeram com que virasse a curva.
O Charles visitou o sítio onde Bourdain se suicidou. Não foi uma experiência perturbadora mesmo para um jornalista? Porque é que sentiu necessidade de o fazer?
Não devemos estar próximos para ser amigos ou manipular a história. Imagine que estava aqui a falar consigo e não tinha estado no hotel, dormido no quarto onde ele morreu. Tornei-me num estudante de Bourdain. Esse é o meu trabalho, tornar-me num estudante. Não me ponho no ranking de grandes biógrafos, mas eles ensinam que temos de calçar os sapatos dos nossos protagonistas e seguir os passos. Não podemos estar em casa a fazer telefonemas e passar o dia no Google. Claro que fazemos isso. Mas também ir aos locais. Pode nem sequer tirar notas. Pode nem se traduzir em dados, mas dá-te confiança como escritor para falar da vida de outra pessoa. Se visitarmos onde foram, se tocarmos onde eles tocaram. Depois acontece algo mágico. E está feito, mais ninguém dormiu no quarto onde ele dormiu. Não sei se consigo dizer o que tirei dessa experiência, de facto. Mas melhorou a minha abordagem.
Quanto tempo passou a investigar?
Cerca de três anos.
Depois desses três anos, li que não era um grande fã do Bourdain. Ou sequer fanático. Como é que o descreveria agora, depois de escrever este livro?
Os programas dele eram uma combinação de entretenimento e estímulo intelectual com comédia. Estou sempre pronto para os ver. Acho que estou mais impressionado do que nunca de que era um grande contador de histórias da sua geração e do século XXI. Era excitante ver um homem encontrar a razão pela qual foi colocado na Terra. Ele não era um grande chef, era só OK. Escreveu romances de mistério e ficção, também não era muito bom nisso. Só que deu-se o click, parte por acidente, parte intencional, e foi excitante vê-lo nesse caminho, de andar rumo ao Sol. No fim, andou demasiado perto.
No fim, fica com respeito por um homem complexo.
Sim, sem dúvida. Toda a gente tem um lado negro. Até tenho mais respeito, percebo pelo que passou, como se tornou num grande contador de histórias. Deu muito trabalho. E ver o que lutou contra si mesmo: a adição, os impulsos. Respeito, claro. Não sobreviveu, mas deu uma boa luta.
Esta não é a sua primeira biografia. Desenvolveu algum método novo? Fez cerca de 80 entrevistas…
Costumo escrever sobre figuras desportivas ou da pop culture, estive durante muito tempo interessado no século XX, de como o mundo estava a mudar. Desta vez estava a lidar com pessoas reais, pessoas vivas. Tive de perceber as suas motivações para não falarem. Ou para conversarem comigo. Algumas abriram-se. Algumas até acabaram por morrer durante estes três anos. Perdi-as como fontes. Tivemos grandes conversas onde o Bourdain era o ponto em comum. As pessoas tinham prazer nessas conversas. O meu método foi o mesmo: ter máximo de informação possível e depois como a tratar de uma forma interessante. São os dois passos óbvios. Claro que foi mais desafiante lidar com pessoas vivas.