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A pergunta é: o que distingue a roupa de mulher e a roupa de homem? Calças e saias não são de certeza. Historicamente, a moda nem sempre se guiou assim tanto pelo género, mas durante séculos o guarda-roupa ocidental foi sendo adaptado aos papéis que homens e mulheres desempenhavam na sociedade e esses já sabemos quais eram. Se no século XX, a mulher reclamou o direito de vestir uma série de coisas, no século XXI a humanidade parece caminhar para um futuro em que todos vestimos o mesmo. Gabardinas pretas até aos pés? Macacões azuis? Não nos parece.
Provavelmente, só numa sociedade com plena igualdade de género (ou seja, em que o género não interfira em grande coisa) é que será possível fundir guarda-roupas. Enquanto isso, designers de moda, ativistas e grandes multinacionais vão tendo as suas investidas. Moda sem género não é roupa que, pela neutralidade do design, pode ser usada por homens e mulheres, é a liberdade de cada um poder usar aquilo que bem entender, sem ser alvo de juízos normativos. Parece utópico? Bem, já se vêem homens saírem à rua de saia, por isso já não falta tudo.
Uma breve aula de história
Bem, na realidade não pode ser assim tão breve, até porque é preciso retroceder uns bons séculos (milénios até) para perceber que o género nem sempre foi o principal fator de diferenciação do vestuário. Na Antiga Grécia, as túnicas usadas por homens e mulheres distinguiam-se essencialmente pelo comprimento. Eles usavam-nas mais curtas, elas uns palmos mais abaixo e cintadas com a ajuda de alguns acessórios bonitos. Sempre que fazia mais frio, a capa de lã era uma peça a que bem mais tarde, já no século XX, viríamos a chamar de unissexo. As semelhanças entre estas e as togas romanas são flagrantes. O critério para poder usá-las não era o género, mas sim a condição social. Só os homens e mulheres ditos livres saiam à rua com elas. Parece que também só as classes mais altas podiam usar certos tipos de tecido, entre eles o veludo. Aos menos afortunados restava a lã e o linho.
A evolução da túnica foi acentuando as diferenças entre o vestuário masculino e o feminino. A dos homens foi encolhendo até assumir uma forma semelhante à de uma camisa, a das mulheres manteve-se longa ditando até onde deveriam ir as saias e vestidos. A certa altura da história ocidental, houve um problema para resolver. As calças eram compostas por duas peças (mais ou menos como duas longas mangas), o que deixava uma certa zona do corpo a descoberto. Veio a coquilha (os ingleses chama-lhe codpiece) e o órgão genital masculino ficou finalmente arrumado, com a particularidade da peça poder insinuar ou falsear os atributos de quem a usasse. A este ponto, um período que ocupa o final da Idade Média e o início do Renascimento, as silhuetas de homens e mulheres eram já completamente distintas.
E como em quase todas os episódios da história da moda, lá vamos nós dar à era vitoriana. Depois de uma época em que homens e mulheres partilharam as mais elaboradas formas de apresentação em público, entre elas, perucas, pó-de-arroz, saltos altos e brocados (alguém se lembra da corte de Luís XIV, o roy soleil?) e a moda masculina das elites se efeminou, pelo menos à luz dos códigos de vestuário do século XX, a rigidez britânica entrou em ação, já no século XIX. O guarda-roupa masculino perdeu as cores garridas e os tecidos faustosos de outros tempos e a Revolução Industrial desencadeou a ditadura do fato de três peças, a partir de então produzido em fábricas e ao alcance de quase todos os homens. A Europa despediu-se de Versalhes e deu as boas-vindas ao visual do executivo.
Enquanto isso, a silhueta da mulher foi sofrendo a compressão do espartilho. Depois da madeira e das barbas de baleia, veio a estrutura em aço e com ela os primeiros alertas de médicos para os malefícios da peça para a saúde. Costelas partidas, malformações nos ossos e deslocação de órgãos, mas… cinturas cada vez mais finas. Enquanto o vestuário do homem se foi adaptando a uma vida ativa fora de casa e à hegemonia dentro da sociedade, o da mulher foi sendo aperfeiçoado para ficar bem nas pinturas a óleo. No século XVIII, Maria Antonieta é a protagonista de uma pequena libertação (das poucas em séculos de história). A peça ficou conhecida como chemise à la reine e a sua leveza proporcionou um raro momento de alívio para o busto feminino. Mais uma vez, foi na Inglaterra vitoriana que a moda se radicalizou, com relatos de cinturas que mal passavam dos 40 centímetros.
Mas o acentuar da dicotomia entre roupa masculina e feminina não ficou pelo ocidente. Através do colonialismo e da disseminação da cultura ocidental, os europeus influenciaram os códigos de vestuário um pouco por todo o mundo. No Japão, os homens começaram, gradualmente, a usar o fato para trabalhar. O quimono passou a ser usado apenas dentro de casa até que acabou por se tornar numa roupa quase exclusivamente feminina. O mesmo aconteceu na Indonésia com o sarong, uma espécie de páreo usado por homens e mulheres.
E quando não passava pela cabeça de ninguém que um ser vivo, além do homem, pudesse vestir calças, a norte-americana Amelia Bloomer fê-lo e, até hoje, o mundo nunca mais voltou a ser o mesmo. Embora em 1848, as bloomers, descritas pelas reformistas da época como tendo deixado as “mulheres fisicamente e espiritualmente livres da argola pesada [saia]”, fossem uma espécie de culotes compridos, abalonados e visíveis apenas dos joelhos para baixo, era só uma questão de tempo até as mulheres vestirem as calças por inteiro.
Daí em diante, a mulher ocidental só desbravou terreno. À medida que foi conquistando a liberdade de mostrar mais pele, fartou-se de somar peças no guarda-roupa: o soutien, o tailleur, o fato de banho, o biquíni, a minissaia e o smoking (mais o de Yves Saint Laurent do que o de Marlene Dietrich no filme Marrocos). Ainda assim, os avanços não aconteceram ao mesmo ritmo em todo o ocidente. “Em Portugal, antes do 25 de abril, as mulheres da função pública não podiam usar calças para ir trabalhar”, recorda Cristina Duarte, investigadora da Universidade Nova de Lisboa e membro da equipa Faces de Eva do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais. Olhando para o século XX, fica mais do que claro que a conquista de direitos por parte das mulheres anda de mãos dadas com a moda. Afinal, não estamos só a falar de roupa, pois não?
“O vestuário é um bom barómetro daquilo que é a igualdade e a desigualdade de género. Os homens continuam a ter uma determinada imagem dentro da roupa e as mulheres também. É claro que as mulheres são muito mais camaleónicas mas porque a performance de género ao longo da história lhes permitiu desenvolver isso. É como se elas tivessem sempre bem na sua própria pele, enquanto os homens, na realidade, têm sempre um fato que os defende”, continua a socióloga.
Nos anos 60, uma minoria mostrou vontade de voltar a aproximar os dois géneros. O movimento hippie nascia nos Estados Unidos e o mundo ouvia falar pela primeira vez no conceito unissexo. As calças de cintura descaída, as túnicas, as cores vibrantes do tie dye e os cabelos compridos não tinham um género em particular. O pensamento binário era outro e girava em torno de pessoas e da natureza. Nos anos 80, as atenções viraram-se para os b-boys e b-girls. Ao mesmo tempo que nascia o hip hop, homens e mulheres podiam perfeitamente sair à rua com o mesmo fato de treino. Mais do que as diferenças de género, estavam unidos por um fenómeno cultural emergente. O que é que os hippies e a malta do Bronx tinham em comum? Ambos viviam à margem do sistema e pegaram no que tinham à mão para criarem um estilo novo. Nas palavras do antropólogo Claude Lévi-Strauss, o que os movimentos fizeram foi, nada mais, nada menos do que uma “bricolage”.
Nos anos 90, passa a haver um novo conceito em cima da mesa. Ao contrário do unissexo, a androginia pôs a tónica nos corpos e não na roupa. É a geração Calvin Klein e Kate Moss, desprovida de curvas, surge como uma figura híbrida entre as supermodelos da época e um rapazinho na flor da adolescência. Há um clique e o mundo percebe que afinal os jeans e briefs são todos iguais. Num tom diferente, artistas já o tinham feito nas décadas anteriores. Afinal, ninguém tinha ficado indiferente à fluidez de género de Grace Jones de David Bowie.
Cortes há muitos, mas algum tem género?
O tema da moda sem género tem ocupado muito boa gente. Falamos de jornalistas e críticos, de investigadores na área da sociologia, mas também dos próprios criativos. Como sempre , o futuro fica nas mãos de uma nova geração, neste caso, de designers de moda. Para Inês Torcato, de 27 anos, a distinção sempre foi isso mesmo: uma questão de corte. Ainda assim, há dois anos a desfilar na passerelle do Portugal Fashion, a jovem criadora arranjou forma de contornar o suposto fosso que separa os dois guarda-roupas. Fala da mistura de materiais, da combinação de fazendas e tecidos típicos de alfaiataria com malhas e nylon. Na prática, por coleção, Inês desenha várias peças comuns aos dois corpos e outras quantas que duplica apenas com pequenos ajustes.
Em janeiro, apresentou a coleção do próximo inverno em Roma e a poucos minutos do início do desfile, houve surpresas de última hora. “Vesti muitas peças que tinha pensado para homens em mulheres. Basicamente, troquei tudo, porque é indiferente e porque ficava mesmo bem. Não quero rotular as peças, mas o facto é que sempre as tinha imaginado num homem e, por sinal, eram cintadas”, conta Inês.
Desde cedo que Inês Torcato quis trabalhar em coleções mistas, mas com uma grande base comum. “Senti sempre uma necessidade de ter a mesma linguagem em ambas as linhas, até porque acho que há essa falha nas grandes marcas — tudo o que é feminino é muito feminino. Eu própria visto muita roupa de homem. Hoje, faço peças que podem ser usadas por homens ou mulheres e é indiferente. Se bem que, olhando para o conceito de roupa sem género, as silhuetas acabam por ser muito mais masculinas do que femininas”, explica.
Uma coisa é certa: desenhar roupa minimal, oversized e com um toque desportivo é a forma mais fácil de mostrar que os vestuários masculino e feminino têm um ponto de encontro, mas não é a única. Cristina Duarte (que também conta ter vestido camisas do pai e corrido a Feira da Ladra à procura de casacos masculinos) passa a bola para o lado dos homens, até porque as mulheres, bem mais maleáveis na forma como se apresentam no espaço público, já vestiram tudo. “Não se espera que um homem esteja de vestido em público. Mas porque não, não é? E mesmo de saia. Porque ainda é alvo de muita coisa e porque tudo vai desembocar na questão da segurança. Podem adequar-se a um código de vestuário ou romper com ele. Agora, será que os homens se sentem livres de o fazer?”, reflete a socióloga.
Cristina vai mais fundo na questão e remete esta discrepância nas possibilidades do vestir de homens e mulheres para o plano do domínio do espaço público. “Há um domínio que é transmitido mas que não passa pela forma de estar e de vestir, enquanto no caso delas passa, sobretudo porque a imagem das mulheres continua a ser muito escrutinada. Há mais sofisticação, não no sentido de luxo, mas no de ensaiar melhores respostas para se apresentarem em público e para despertarem aprovação”, conclui.
“É difícil para um homem vestir roupa feminina, mas à mulher, o vestuário masculino transmite força”. Quem o diz é Hugo Costa, designer de moda cujo o estilo tem vingado nas semanas de moda de Paris. Com a chegada às passerelles e aos showrooms internacionais, a marca foi imediatamente encaixada na categoria de menswear, embora, ainda nos tempos de faculdade, Hugo tivesse uma visão muito pouco binária do que a moda poderia ser. “Desde o início que a minha estética é andrógina. O meu processo nunca foi direcionado para o género, mas para uma silhueta”, esclarece. Entretanto, as vendas encarregaram-se de atestar comercialmente o posicionamento do designer. Embora seja uma “marca de moda masculina”, metade dos clientes de Hugo Costa são mulheres.
À exceção das apresentações em Paris, os desfiles são sempre diversificados no que toca aos manequins. Homens e mulheres vestem os mesmos casacos, blazers, camisas e calças, imagem que se vai repetir em março, quando o criador desfilar a sua próxima coleção no Porto. Há menos sportwear e mais elementos do vestuário clássico, mas não é por isso que roupa passa a ter género.
Azul para os meninos e cor-de-rosa para as meninas. A sério?
“Quando uma mulher está grávida e alguém pergunta se é menino ou menina, isso já vem com toda uma tese dentro, uma construção social para o que é ser menino ou menina”, afirma a socióloga Cristina Duarte. Falemos do raciocínio clássico do azul e cor-de-rosa, também ele exemplo da arbitrariedade dos códigos de vestuário em sociedade. Não é preciso ir muito longe, basta recordar que no início do século XX a lógica era inversa. Regra geral, eram os meninos a usar cor-de-rosa, por ser um tom mais forte, derivado do vermelho, enquanto as meninas ficavam com as roupas azuis, dada a suavidade da cor.
Num ponto, todos estamos de acordo: alcançar uma sociedade sem desigualdades de género passa por educar as gerações mais novas nesse sentido. E nessa tarefa, desmistificar o que meninos e meninas podem ou não vestir é um passo essencial. Em setembro de 2017, a John Lewis deixou as redes sociais em alvoroço ao lançar uma linha de roupa de criança de género neutro. O que para uns foi um passo adiante no sistema binário que rege a sociedade, para outros não passou de uma perversão dos códigos de vestuário estabelecidos. Na realidade, a cadeia de lojas britânica só sugeria que meninos e meninas usassem as mesmas cores e estampados, dinossauros, no caso da primeira coleção. A iniciativa foi sobretudo simbólica, que é como quem diz ao nível da etiqueta. “Não queremos reforçar os estereótipos de género com as nossas coleções. Em vez disso, queremos providenciar uma maior variedade para os nossos clientes, para que os pais ou as crianças possam escolher o que querem vestir”, afirmou na altura a responsável pela moda infantil da John Lewis, citada pelo Independent.
Azul para os meninos e cor-de-rosa para as meninas? Nem sempre foi assim
“Até mais ou menos aos três anos, a criança não faz uma diferenciação de género. Mesmo depois, pode não vê-la como uma questão pessoal”, explica Inês Afonso Marques, psicóloga clínica e coordenadora da equipa infantojuvenil da Oficina de Psicologia. A roupa é só um dos fatores implicados na construção da identidade de género de uma criança. Contam também os brinquedos, a decoração do quarto, entre outros. Com o passar do tempo, essa noção de diferenciação vem à tona. “Mas essa diferenciação não pode ser imposta, tem de ser uma escolha”, continua a psicóloga. Inês garante ainda que nunca foi provada nenhuma correlação entre as roupas e brincadeiras da infância e a orientação sexual de um indivíduo quando adulto, embora pelo seu consultório passem pessoas com esse tipo de preconceito.
Segundo a psicóloga, experimentar papéis é essencial para a construção da identidade, mas socialmente nem sempre o que foge à norma suscita as melhores reações, aliás, quase nunca. “Quando uma criança afirma a sua identidade através da roupa e ela foge ao que é mais comum, fica mais exposta aos comentários dos pares”, conclui. Atenuar a diferenciação que existe no vestuário infantil (como fez a John Lewis) pode ser o caminho para mudar mentalidades também na crianças, um grupo que não está alheio à recente onda de ativismos a que temos vindo a assistir.
Recuemos duas semanas, até à Semana da Moda de Nova Iorque, quando o desfile da marca Gypsy Sport contou com um modelo muito especial. Com apenas 10 anos, Desmond Napoles é ativista LGBTI e (aprenda que este conceito é novo) drag kid e percorreu a passerelle com a naturalidade de um manequim profissional. No Instagram, já ultrapassou os 34 000 seguidores, à conta de visuais extravagantes, sessões de automaquilhagem e de uma persona glamorosa que parece estar destinada a entrar na indústria da moda.
O estranho caso de Alejandro Gómez Palomo
Alguém disse que agora a bola estava do lado dos homens? Pois, muito bem, apresentamos-lhe Alejandro Gómez Palomo, um designer de moda para quem o conceito de ausência de género seguiu na direção oposta à dos demais ou, pelo menos, à da maioria. “Estética e sexualmente, nunca senti que houvesse uma distinção clara entre masculinidade e feminilidade”, afirmou numa entrevista à revista Dazzed. Em vez de transformar o guarda-roupa unissexo num armário repleto de peças neutras, largas e minimais, a Palomo Spain, marca criada pelo designer espanhol pouco tempo depois de ter concluído o curso na London College of Fashion, em 2015, escolheu as silhuetas cintadas, os drapeados, as sedas e os cetins, os decotes e as rachas, os brocados e os acessórios extravagantes.
Recordemos uma das imagens mais populares no Instagram, em 2017. Na hora de mostrar os gémeos Sir Carter e Rumi ao mundo, Beyoncé vestiu uma criação de Palomo Spain que, neste contexto, quase poderia ter sido uma opção de styling de Botticelli quando pintou “O Nascimento de Vénus”. Em novembro, a escolha de Rita Ora para os EMAs recaiu sobre o mesmo designer. Mas na passerelle de Palomo só há homens e as peças, por muito femininas que sejam, foram feitas para o corpo deles. Através do styling, dos cabelos e da maquilhagem, o criador sublinha um statement. Na verdade, algumas peças, se isoladas, não vão diferir muito de roupas que o comum (homem) mortal já veste. A arte do cross-dressing pode ser muito antiga, mas o que vemos no trabalho de Palomo é a moda a desafiar os códigos de vestuário vigentes e a libertar-se de todos os rótulos de género.
Mas Palomo não é o único nome nesta frente de efeminação do vestuário masculino. Marcas de autor como a Avoc, a Loverboy e a Bode estão a espalhar a mensagem da moda sem género pelas principais semanas da moda. “A ideia por detrás da Avoc é ir além do género e das condições sociais, mas não lhe chamamos unissexo. Não acreditamos numa coleção que sirva a homens e mulheres. A nossa abordagem baseia-se numa única coleção criada em torno da mesma estética, linguagem e direção criativa”, explicou Bastien Laurent, um dos fundadores da francesa Avoc, ao Business of Fashion.
Nem todas as linguagens e estilos levam a moda sem género aos níveis de exuberância da Palomo Spain. Se baixarmos a fasquia, encontramos, nos últimos anos, várias subtilezas na forma como gigantes da moda começaram a meter vestuário masculino e feminino no mesmo saco. Basta olhar para a Gucci de Alessandro Michele. Em 2016, a casa italiana anunciou a fusão dos dois géneros quebrando a tradição de mostrar menswear e womenswear em calendários diferentes. A decisão é para lá de compreensível se pensarmos que a coleção é a mesma, desenhada pelo mesmo diretor criativo e, em várias peças, transversal ao dois géneros. O mesmo passo já tinha sido tomado por marcas como Burberry, Tommy Hilfiger e Tom Ford. Sabemos que as modas vêm e vão, mas esta tomada de posição parece ser das tais que dificilmente sofrerão retrocessos.
Além das marcas, também as celebridades parecem dar sinais, não de quererem sair do armário, mas de abri-lo a novas peças. Quem é que não se lembra de Jaden Smith de saia na campanha da Louis Vuitton, há dois anos? Ou da excentricidade de Jared Leto a desafiar a ditadura do smoking na red carpet? Então, talvez os saltos altos, as blusas pussy bow e os padrões florais são as peças unissexo de amanhã e o caso de Alejandro Gómez Palomo não é assim tão estranho.
“O homem começou a deixar de ter paranóia e já não tem tantos problemas com a ideia de parecer feminino. Há tanta coisa que pode ser vestida por homens e mulheres… calças são calças, t-shirts são t-shirts, bombers, casacos, camisas. O problema é a mentalidade das pessoas. O vestido é, supostamente, de mulher, mas o homem já veste uma camisa comprida”, defende Xana Guerra, consultora de moda, stylist e fundadora da Pulp Fashion. Xana veste homens há quase 30 anos e não tem dúvidas de que nos últimos tempos a imagem masculina deu um salto… para melhor.
Ainda assim, há vícios difíceis de mudar de um dia para o outro. “Enquanto a mulher acha sempre que veste um tamanho mais pequeno, o homem diz sempre que veste um L ou um XL. Eles vestem coisas maiores só para parecerem mais homens, é uma questão cultural. Mas está a mudar, graças a Deus. Felizmente, também já perceberam que ficam muito melhor num fato mais estreito, do que num em que pareçam um saco de batatas”, continua. As cores não têm género, as malhas são iguais para todos e Xana Guerra é a primeira a falar das peças que tem do guarda-roupa compradas na secção de homem. Em Portugal, já se sabe, demora tudo mais um bocadinho e a sofisticação masculina ao vestir não é exceção.
Identidade, o dress code do século XXI
Vamos pôr a coisa nestes termos: porquê fazer compras numa única secção, se pode ter a loja toda? Há anos que Ângelo Campota tem essa sensação. Desde criança que procurou ser diferente, apresentar-se de forma diferente perante os outros (caso queiramos dar um tom sociológico à questão), em parte por ter um irmão gémeo e pela insistência da mãe em vestir os dois de igual. Na adolescência, já o roupeiro era composto essencialmente por peças em segunda mão e por outras que ia pescando no guarda-roupa da mãe. Hoje, com 35 anos, 70% do que veste foi desenhado, produzido e posto à venda para ser vestido por mulheres. “Quando entrava a uma loja convencional, simplesmente não me revia nos padrões da roupa masculina”, conta.
Falta de cor? De estampados extravagantes? De lantejoulas e berloques? Nada disso. Ângelo reduziu todo o seu closet a uma única cor, o preto. E não, não precisa que uma loja ou marca desenvolva uma linha de roupa unissexo. Escolhe e compra em função do próprio gosto e com uma atenção redobrada aos tecidos e acabamentos. O resultado final é um visual low profile à base de silhuetas oversized e peças de designers portugueses e internacionais. “Se quisesse que a minha imagem tivesse uma intervenção política chamaria mais a atenção”, admite.
Entrar numa loja e ser tudo unissexo — para ele, o mundo ideal seria assim, mesmo nas lojas onde nunca entra. Não que tenha pudores em fazer compras na secção de mulher, mas pelos olhares e juízos de valor de que se apercebia quando saía à rua, ainda na época pré-negro. Afinal, a questão não está tanto do lado das marcas e lojas, embora caiba a elas dar o primeiro passo, mas sim de quem vê a moda como algo cheio de caixas etiquetadas com quem pode usar o quê.
Uma lógica que Filipe Sambado tem vindo a desafiar. “Tenho muitas malhas, uns cinco pares de calças, uma saia, uns quantos vestidos, t-shirts, camisas, collants, botas, ténis, calções, meias, etc… Tenho peças mais cintadas, outras largas, crop tops, alguns cardigans em desuso, roupas mais brilhantes, muitos padrões, cores lisas, pelo, fishnet…”, enumera. Depois de devidamente apresentados ao closet, passemos à discografia de um dos mais promissores cantores e compositores do momento.
Deixem-me lá não ser gay eu sou só muito vaidosa
Tu vens lascivo para mim mas eu estou só curiosa
E se eu parecer uma mulher o que é que isso quer dizer?
Visto sempre o que eu quiser
Dê lá por onde der
São versos de Deixem lá, canção que, como todas as outras, Filipe canta e toca com as unhas pintadas, daqueles luxos que não dispensa nem por nada. “Nem tudo o que visto agora vestiria há um tempo atrás. Ainda preciso de respirar fundo para ir do Intendente à Interpress [no Bairro Alto] com uma saia de pregas. É algo que está intrinsecamente ligado à minha construção pessoal”, conta. Apesar do discurso elaborado, o músico pensa bem menos no assunto do que aparenta. Raramente vai às compras, herda peças de família e resgata outras quantas do armário da namorada. Lida bem com os rótulos, embora não entenda a maior parte. “A Aurora Pinho explicou-me que sou queer. Se isso é sinal de bicheza ou não, estou-me nas tintas”, conclui.
Estará a identidade individual a sobrepor-se ao género? É que nem Ângelo nem Filipe instrumentalizam a moda para alcançar uma conquista social. Eles simplesmente deixaram de vê-la como um universo compartimentado, olhando para uma blusa, para um par de calças ou para um casaco como aquilo que essas peças realmente são, uma blusa, um par de calças e um casaco, acima das distinções de género e alheias aos códigos de vestuário tacitamente aceites.
A moda ao serviço dos ativismos
“A moda não é só uma consequência, ela pode ser, de facto, uma forma de romper”, afirma Cristina Duarte. “Enquanto objetivo, a moda sem género depende mais de um fator individual do que de um fator de grupo, mas a adesão a qualquer fenómeno da moda é social, portanto, lá está outra vez o grupo”, completa. E se uns se vestem de determinada forma, somente submetidos a um gosto ou a uma sensibilidade estética fora da caixa, outros usam a roupa, cartão-de-visita eficaz, para marcar uma posição. Entramos no domínio político.
Em outubro de 2016, Lucy Rycroft-Smith, professora de matemática e escritora freelancer britânica, decidiu desafiar as fronteiras entre o que uma mulher e um homem devem vestir. Basicamente, durante um mês, usou fato todos os dias. Não um fato de corte feminino e sofisticado, com um blazer cintado, saia lápis ou um par de calças que lhe realçasse as curvas, um fato de homem, composto por três peças. “Estar formal, para uma mulher, geralmente envolve mostrar mais pele, usar roupa mais justa e delineadora, saltos mais altos, collants, cintas, joias e penteados complicados. Uma lista de coisas que me fazem sentir fisicamente desconfortável e constrangida”, escreveu.
A investida, assumidamente feminista, veio a público através de um texto escrito na primeira pessoa e publicado em janeiro do ano passado. Lucy fez uma espécie de diário e, mais importantes que as conclusões finais, foram as sensações que foi experienciando pelo caminho. “A simples matemática das combinações mostra-me que já não estou presa àquela espiral alucinante de possíveis outfits, mas convenientemente limitada a muito menos elementos: três fatos, cinco camisas e uma mão cheia de gravatas (eu disse-vos que era matemática). Isso faz-me ganhar tempo para coisas muito mais divertidas como comer e dormir”, escreveu a professora ao quarto dia.
“Começo a sentir que é ok ser grande, larga e maciça. Isto é a antítese de todas as mensagens que, todos os dias, as mulheres recebem sobre os seus corpos”, afirmou ao décimo dia. Na hora de ir às compras, a experiência só aumentou de interesse. Primeiro, o quebra-cabeças de tamanhos, depois a real perceção da segmentação, em alguns casos, absurda do vestuário e, a médio prazo, o impacto de se sair à rua com um fato cinzento em relação a quando o fazia com um vestido vermelho. “Não vou parar até espalhar a mensagem. Nós temos escolha, homens e mulheres. Roupa com género é ridícula, desnecessária e completamente prejudicial. Recuso-me a ser cúmplice disto”, concluiu.
Homens de minissaia e mulheres de calças de fato às riscas — estas são duas das imagens mais marcantes da coleção primavera-verão 2018 desenhada por Charles Jeffrey para sua própria marca, a Loverboy. Mais do que neutralizar a roupa, tornando-a igualmente vestível para homens e mulheres, este designer escocês de 28 anos mistura tudo, as peças e os cortes tipicamente associados a cada um dos géneros, e o resultado é uma miscelânea de silhuetas absolutamente disruptiva.
Mas o génio criativo de Jeffrey vai muito além da democratização da saia de tule e do fato dito masculino. Em janeiro deste ano, em Londres, o desfile da coleção “Tantrum” (outono-inverno 2018/19) arrancou com homens e mulheres pintados de branco a invadirem a sala. Correram, gritaram, beberam vinho e importunaram os modelos. Segundo explicou ao The Guardian, o criador quis evocar a sensação de ter crescido gay. “É sobre aceitar a raiva e utilizá-la. Pela primeira vez, quis explorar esta emoção em particular. Tem sido sempre tão alegre e leve mas há um lado negro nisto [..], afirmou o designer, que fundou a própria marca em 2015.
Jeffrey fala da sua carreira como uma viagem pela sua própria identidade e dessa construção fazem parte, não só as roupas “diferentes” que já na adolescência “usava”, mas também a forma como as pessoas à volta reagiam a isso. Na mesma entrevista, conta quando foi gozado por dois rapazes no metro de Paris porque estava a usar uma saia Givenchy. A certa altura, disse-lhes que era um kilt, um traje tradicional do seu país. Num ápice, a peça deixou de estar associada à homossexualidade e passou a ser, na cabeça dos dois transeuntes, um símbolo de virilidade. “Assim que perceberam que era um kilt, a perceção deles mudou”, relatou. Mas conta também quando, na mesma cidade, foi interpelado na rua por uma rapariga a tremer. Ela entregou-lhe uma carta que, entre outras coisas, referia o facto de ter conseguido sair do armário graças ao seu trabalho como designer. “Na sociedade em que vivemos, é cada vez mais difícil os mais jovens terem uma voz. Imensa gente mostra isso através do que veste; é uma expressão deles próprios”, conclui.
Moda sem género: futuro ou tendência?
Não é à toa que várias ficções futuristas o projetaram no grande ecrã. Dos casacos de couro e óculos escuros em Matrix aos macacões azuis em 1984, filme de 1956 que retrata uma sociedade do futuro marcada por um comunismo totalitário, esta visão não é de hoje. Ficção literária e cinematográfica à parte, a diluição das diferenças de género na roupa também já foi identificada no horizonte, mas num plano bem real. Em 2012, Li Edelkoort, perita na antecipação de tendências de moda e design, começava por falar num “novo sentimento de liberdade”, recente, mas a começar a modificar o cérebro. “Acredito realmente que o futuro será híbrido e que vamos deixar de responder a perguntas de ‘é isto ou é aquilo?’. É curto ou comprido? É os dois. É bom ou mau? É os dois. É homem ou mulher? É os dois. Penso que isto vai acontecer nos próximos 10 anos”, afirmou na mesma conferência.
Representante da agência de Edelkoort em Portugal, Daniela Pais ajuda-nos a perceber melhor o que está a acontecer. “Há 10 anos, a Li já falava de uma sociedade em que as coisas se misturam muito, em que deixamos de usar definições. Na altura, ainda não era uma tendência muito clara. Hoje, acho que não será um processo rápido, mas sim uma transformação pela qual a sociedade está a passar”, explica Daniela ao Observador. No que toca à moda, põe a responsabilidade nas pequenas marcas, mais do que nas grandes multinacionais. Cabe elas desenvolver novas formas de retalho, mas também reformatar a forma como consumimos moda e aqui a questão do género está incluída.
Vetements, Palm Angels, Craig Green, Off-White, Yeezy e J.W. Anderson — em 2015, a department store britânica Selfridges abriu uma secção dedicada a moda sem género e as marcas, ainda hoje presentes no espaço Agender, são das mais cool do momento. “Geralmente, a nova geração conhecedora de moda tende a fazer compras em lojas e secções destinadas ao género oposto”, afirmou Jack Cassidy, gerente de compras da secção masculina do Selfridges, ao The Guardian.
Mas a vontade de mostrar que as duas secções não são assim tão estanques já chegou à nossa porta. Em março de 2016, foi a vez da Zara. Em variedade de peças, a primeira coleção unissexo da marca espanhola deixou a desejar. A intenção esteve lá, mas não foi além de calças de ganga, calções, sweatshirts largas e numa gama de cores limitada a preto, branco e cinzento. Em novembro de 2017, a sugestão foi bem mais subtil. Na loja online, a marca apresentou o mesmo sobretudo em ambas as secções. Numa, era usado por uma mulher, na outra por um homem.
Em março do ano passado, a H&M chegou-se à frente, mas ficou-se pela ganga. A tão esperada coleção unissexo foi na verdade uma linha de calças, blusões e jardineiras de corte largo. Terá sido uma estratégia de marketing para associar a marca a um conceito em voga ou uma vontade genuína de atenuar a lógica binária quando se vai às compras?
“Eu acho que é o futuro”, afirma o designer Hugo Costa, mas com uma ressalva. Nesta, como noutras questões, é difícil antecipar o que vai acontecer na indústria da moda, quase como se fosse impossível prever tendências numa área que vive delas. “Basta olhar para o see now buy now. Ficou pelo caminho”, conclui.
Pegando na ideia do vestuário como barómetro da igualdade de género, proposta por Cristina Duarte, então a questão vai muito além do mero pronto-a-vestir. “Há muito trabalho a fazer, para ativistas e para menos ativistas. Em jogo, estão fatores como a segurança, os valores, a sexualidade e a orientação sexual e todos eles têm de ser trabalhados. Agora, o vestuário faz parte da comunicação entre as pessoas e elas são chamadas a intervir através da sua própria aparência”, esclarece. Para a socióloga, cabe aos designers trabalhar na linha da frente, mas também (e sobretudo) a quem se veste todos os dias para sair à rua. “A roupa é uma coisa sem vida. Pode ter uma história, mas somos nos que lha damos. E se a história que lhe queremos dar aponta para uma moda sem género, vamos lá fazer isso”.