Comecemos com um exercício: pense nos Óscares. Há algum prémio para diretores de casting? Não. Agora os créditos de um filme, aquelas letrinhas pequenas que explicam quem fez o quê num filme. Aparece sempre “casting de” (“casting by”), e é essa a única referência à pessoa responsável por ter escolhido — ou ajudado a escolher — os atores que vemos no ecrã. Antes, durante ou depois do filme. Monika Mikkelsen é uma dessas pessoas e cumpre a função num dos grandes estúdios de Hollywood: é diretora de casting da Paramount Pictures e há 30 anos que corre em busca de novos e velhos talentos.
Monika é também uma das juradas do Passaporte, evento criado por Patrícia Vasconcelos que pretende exportar atores portugueses (Nuno Lopes em “WhiteLines” ou Lídia Franco em “6 Underground” são alguns exemplos). A edição deste ano começou na passada quarta-feira e continua até ao próximo domingo. Há workshops, reuniões com diretores de casting internacionais — ao vivo e à distância por causa da Covid — e a esperança de ser uma das próximas caras de uma grande produção da HBO ou da Netflix.
Nesta longa conversa com o Observador, a californiana com descendência dinamarquesa confessa a ignorância que tinha em relação a Portugal, país que julgava só ter Joaquim de Almeida para apresentar e pouco mais. Mudou de opinião assim que começou a traçar o perfil de alguns nomes bem conhecidos, como Alba Batista, que diz ter a mesma “vibe” de Alicia Vikander, “mas mais fresca”; ou de Welquet Bungué, “lindo e muito engraçado”. Ah, e Rita Blanco, uma “gema” que podia muito bem entrar no próximo “World War Z” com Brad Pitt: “A Rita traz algo único de um tempo que quase já não existe. Tem uma vibe dos anos 70. Sinto tanta falta disso. As coisas mudam, estamos todos esmagados aqui porque temos o pior Presidente da história. Estamos a viver num regime neonazi. Sinto falta dos dias em que Jimmy Carter era Presidente. A Rita devolve-me esse tempo”.
[ouça Rita Blanco em entrevista à Rádio Observador sobre o Passaporte 2020:]
Tempos, de facto, bem diferentes. É que Monika organiza currículos, fotografias, clips de atuações e cassetes há 30 anos. Foi despedida duas vezes por Steven Seagal quando tinha apenas 18 anos e meteu na cabeça que tinha de se mudar para Hollywood para conhecer Nicolas Cage, por quem tinha uma enorme paixão depois de ter visto “Valley Girl” (1983). E conseguiu, mesmo que muitos considerem esta profissão uma arte menor. Dá para conhecer grandes atores, mas também serve para simplesmente não se ser convidado para a estreia do filme em que se trabalhou. É que assim que Monika consegue os atores, diz adeus ao projeto: “A relação com o filme acaba. É muito triste, esse é mais um problema da Academia, porque não fazemos parte da rodagem, não estamos lá todos os dias”.
Entretanto o mundo mudou, largámos o VHS e a internet tornou todo o trabalho de uma diretora de casting bem mais fácil — e talvez melhor aceite, pelo que admite nesta entrevista. E a pandemia ajudou os atores: agora podem fazer as audições em casa, sem o caos de uma sala de espera cheia de nervos. O que ainda não sabemos se vai mudar é Donald Trump enquanto Presidente dos EUA, o que representa para Monika “o fim do mundo”. Até porque Joe Biden pode não ser a salvação. A norte-americana preferia que Hillary Clinton tivesse ganhado há 4 anos, mas isso não aconteceu porque os norte-americanos “têm muito medo das mulheres”. “Se um alien com tentáculos a sair pelo rabo se candidatasse à presidência ganharia antes de uma mulher”.
Em Portugal tivemos durante muitos anos só o Joaquim de Almeida em Hollywood…
Era o representante de Portugal.
Sim, durante muito tempo. É curioso porque havia a ideia de que não haveria mais ninguém como ele. Agora temos Nuno Lopes ou Alba Batista em grandes produções da Netflix, entre outros. Acha que, sendo que só agora é que estamos a entrar nestas grandes produções, um país pequeno como o nosso pode ambicionar que seja normal ter atores nesta indústria?
Joaquim de Almeida é um exemplo muito específico de um ator de cinema muito ambicioso, talentoso e incrivelmente bonito. Era uma criatura de outro mundo. Como saiu do país, disse “olá mundo, aqui estou, vou fazer com que isto resulte”. Foi um pioneiro para qualquer ator vindo de um país onde o produto principal é outro que não o cinema.
Televisão, por exemplo.
Sim, mas a vossa televisão é para os portugueses. Até a Globo, no Brasil, não tem legendas em inglês. Defendem que é para os brasileiros. E nós ficamos: OK. Houve um festival internacional, o Subtitle Film festival, que é especificamente para atores que não falam inglês, onde só convidam diretores de casting. Não sei porquê, mas foi uma ideia brilhante. Uma espécie de versão de campo de férias onde todos fomos para uma pequena vila na Irlanda, vimos filmes com atores da Roménia, Rússia ou de Portugal. Foi feito por um curador que valoriza mesmo o cinema, o Richard Cook. Nós, feito idiotas, fomos todos. Não havia imprensa nem publicidade.
Uma coisa de um para um.
Sim. O Richard convidou a Patrícia Vasconcelos, que pensou que esta seria uma forma de os atores portugueses serem vistos. Falou com o governo português e decidiu que tinha de fazer um evento semelhante. E, por isso, todos os diretores de casting pensaram: ah, Portugal é um país!
Não somos Espanha.
Quando não sabemos algo, não queremos ofender. Eu não sabia falar russo, fiquei na dúvida, mas depois percebi que os atores são muito bonitos, vêm de uma tradição de formação teatral. Mas agora tenho alguém que posso contactar e me ensina. O mesmo para Portugal. Não fazia ideia. Pensava que só existia o Joaquim de Almeida, que o país era uma “vila de 12 pessoas”, só havia ele. A Patrícia criou o “Passaporte” e abriu o mundo. Nós, como diretores de casting, somos como quem vai às compras. Sou enviada para estas bonitas lojas, para descobrir estas bonitas coisas. Depois mostro e há uma escolha. Por isso, quanto mais souber, melhor serei no meu trabalho. Quando vou a Portugal, vivo um mundo cosmopolita que não é nada espanhol. Vocês não são hispânicos, há variedade de cores de pele, etnicidade, de pessoas que viajam e falam bem inglês. A nível do sotaque, pode soar a russo, espanhol, depende do bairro onde estás. Para mim, como trabalho para a Paramount Pictures, se estiver a ser rodado um filme que se passa no México mas que é filmado na Alemanha, e preciso de atores europeus, mas que saibam fazer de russos… Portugal é a resposta certa. Estão a caminho de Hollywood. E o cinema que fazem aqui é criativo, inventivo, é livre. Com a Patrícia há uma tradição na escola, nos atores que escolhe, são qualificados e falam inglês. Querem viajar.
Sempre tivemos um pouco esse estigma: o ator português tem de fazer de latino. Parece-me que agora há a vontade de mudar isso.
Sim, seguir em frente. Por exemplo, temos a Alba Batista, o Nuno Lopes ou o Welquet Bungué, lindo e muito engraçado. São muito interessantes. Abrem a mente das audiências. Nós mostramo-los e os realizadores respondem positivamente. Tenho de dizer que nos EUA, o realizador pode ser de um país, a produção é em Los Angeles ou Nova Iorque, pode ser um programa de televisão cofinanciado por outros seis países. Temos de ter todo o conhecimento. Comecei em 1988, quando havia cassetes de vídeo, recebíamos várias da Europa que depois tínhamos de passar para VHS e, no fim desse processo todo, muitas vezes não conseguíamos colocar o ator.
Quanto tempo demorava?
Pelo menos uma semana até os materiais serem todos vistos. Agora basta um click e está lá. O mundo abriu-se muito nos últimos oito anos. Na Berlinale, por exemplo, há sempre uma reunião com os diretores de casting internacionais, foi uma pequena mas boa curadoria que teve acesso a atores italianos, escandinavos, russos. O melhor dos melhores para trabalhar em filmes como o James Bond. Escolhe-se uma seleção específica de estrelas de cinema em Berlim. Por isso, quando o Richard Cook fez o festival na Irlanda para diretores de casting independentes, que trabalham em filmes mais pequenos, mas com uma base internacional, pensei: não vou ser snob sobre a televisão, a Netflix ou a Amazon são coisas reais. E de repente… puf! Depois veio a Patrícia, Deus a abençoe. Disse-me para vermos os atores portugueses. Conhecemos o Nuno Lopes e a Joana…
Joana Ribeiro.
Ela é muito boa. Depois há outra atriz que continuo a “perseguir”, a Jani Zhao, é fascinante. É asiática, uma portuguesa hipster, uma alma nova, não há nada de velho nela. E a Patrícia disse que havia mais assim.
Ficou surpreendida então?
Fui surpreendida pelo estilo no talento. Há sempre talento, só que é preciso encontrá-lo. O que me surpreendeu foi a minha ignorância e olhar para Portugal só através do Joaquim de Almeida. Lisboa parece a Checoslováquia. Quando era estudante nos anos 80, fiz um programa de troca de alunos e vivi na Alemanha. Conheci duas pessoas em Portugal que me fizeram lembrar esses estudantes alemães, foi uma loucura. Aprendi muito mais sobre a cultura portuguesa e a vibe que pode ser levada para um filme. É misteriosa e há pouco mistério no mundo. É excitante. Há toda uma comunidade de surfistas que veio para cá e fico: OK, agora percebo.
Quando é que veio a Portugal?
Em 2019. Conheci a Patrícia em 2017 no tal festival. Depois começamos a ter reuniões, um ano depois, ela convidou-me para ir aí e aceitei. Continuo a fazer audições com atores portugueses, mesmo que não saiba se lhes consigo arranjar trabalho. Isso é outra coisa que temos enquanto diretores de casting: somos stalkers de longo alcance. Esperamos, ficamos com todo o material. Dantes tinha um quarto cheio de documentos, imagens, currículos e números de telemóvel. Ficamos com toda esta informação. E um dia pensamos: isto é perfeito para a Alba Batista. Depois estamos numa missão em que existem tantas coisas que nos afastam do sonho de colocar um ator num determinado filme mas um dia terei sucesso.
Alba Batista: “Agora é a minha vez, daqui a uns tempos vai passar e está tudo bem”
Consegue explicar-me esse processo? Capta a Alba e depois?
Vejo um filme e descubro a Alba. Quem é? Ela parece que tem 15 anos, atirou-se de um prédio, OK. É gira. Consegue falar inglês? Quem é o agente? Tem uma demo reel [gravação que serve de amostra]? Vou para casa, escrevo as notas, sento-me e vou para o computador. Antes fazia chamadas, perguntava pela Alba, tentava conhecer os outros diretores de casting, porque somos assim, gostamos de fofocas. Somos uma comunidade pequena de caçadores malucos e ninguém quer saber o que nós queremos saber. Somos aborrecidos.
Não me parece um trabalho assim tão aborrecido.
Devia tentar ver televisão connosco. Sabemos quem é o vilão, porque foi o que recebeu mais. É aborrecido. Voltando ao meu trabalho: começo um documento com o nome dela, coloco clips do Youtube ou da demo reel, depois envio-lhe uma cena de uma audição. No caso da Alba, conheci-a no festival na Irlanda. Aí é possível ver o trabalho e conhecer os atores, não há mais nada à volta.
É como uma página em branco.
Sim. Sentei-me com ela, perguntei-lhe tudo porque sou muito bisbilhoteira. Tens irmãos? Porque é que escolheste ser atriz? Tens medo de aranhas?
Como se fosse uma agente do FBI…
Exato. Depois, coloco-a em possíveis papéis de namorada. Está na idade de viver um romance ou de ter namorados. Ou a lutar contra isso. Depois mudo-a para papéis de mãe, será que quer ter filhos ou não, ou será que vai caçar os filhos porque os quer matar. Depois avó. Percorro este caminho de vida útil. A seguir, leio guiões, vejo os papéis. Por exemplo, a Lisa é uma empregada, tem duas cenas, serve o pequeno almoço na primeira e na segunda leva um tiro. Portanto, tenho de fazer uma lista de atores que conheço. Envio para os agentes e managers e proponho este papel, sendo que a atriz tem de estar confortável com sangue, de fazer algumas acrobacias e de saber servir as pessoas, mesmo podendo estar numa cadeira de rodas. Quero abrir a possibilidade o máximo possível. Depois sugiro a Alba. Imagine que ela é excelente, agora querem que a Lisa tenha a própria série de televisão. Vamos tentar um papel maior. E progride por aí.
Mas um realizador pode ligar à Monika e pedir-lhe um ator específico ou é a Monika que o propõe?
Ambos. Na Paramount é diferente, porque sou a supervisora desse departamento. Contratei a Patrícia para fazer os castings em Portugal por mim, faz-me um report todas as semanas. Eu sou a voz do estúdio. Cá, os realizadores e os produtores enviam-nos as suas escolhas principais. É diferente comparativamente a produções independentes.
Um tango com Adam Driver e uma estrela em Berlim: para onde vai Joana Ribeiro?
Então não trabalha só para a Paramount?
Agora sim, já fui independente. Estou na parte dos filmes de animação. É muito divertido. Conheço os realizadores no início, faço o casting, trabalho com o estúdio e pergunto: precisam de alguém famoso para este papel? Felizmente trabalho para um diretor que não quer saber de pessoas famosas. Quer que os atores sejam felizes, são filmes familiares. Os miúdos têm de ir para a sala, ver o filme e não sair magoados. Têm de se sentir seguros. Isso muda o processo, mas é fascinante à mesma.
Porque tem de descobrir a voz ideal que dê corpo a determinada personagem.
Sim. Escolho atores com formação específica. Se só usarem a voz, têm de criar algo só com isso. Só os atores com essa formação é que conseguem, falar através da barriga.
O último foi o “Sponge Bob”, certo?
Foi. É o melhor de sempre. Foi muito giro fazer o casting para o filme. No “Sponge Bob 2” há um ator que adoro, o Matt Berry, comediante de Londres, que tem um sotaque muito luxuoso, com algo de realeza. Foi tão divertido que o usámos no “Sponge Bob 3” num papel maior como Poseidon. Como estive envolvida no processo de escolha e gostei imenso de um programa onde o Matt esteve, o “Mighty Boosh”, decidi sugeri-lo. Quando chegámos ao terceiro filme as pessoas da Paramount disseram: o Matt é muito engraçado. Foi fantástico.
Mudando agora de assunto. Há um documentário na HBO, o “Casting By”, que fala na sua profissão e onde se percebe que foi, durante muito tempo, entendida como uma arte menor. Nem sequer tem direito a grandes prémios, como um Óscar. O que pensa disso?
É um documentário muito bom. Os realizadores entrevistaram-nos a todos, só alguns é que entraram, tudo bem. Percebo porque é que não temos um prémio da Academia, mas é tudo sobre o ego. O realizador gosta de dizer que chamou o Will Smith, por exemplo. Ele aceita. O que faz é criar uma fantasia necessária para o glamour dos filmes. Ninguém quer ouvir que a Paramount enviou um guião ao Will Smith a perguntar se aprovava ou não o realizador X. Que ele fará parte do filme porque é uma grande estrela de cinema. Depois reúnem-se, viaja, faz mais dois filmes, não diz nada, volta nove meses depois, nós fazemos uma lista com outros nomes. Começa-se a pensar: porque não uma mulher, como a Sandra Bullock? Depois há todo um processo que não é sexy e misterioso. Esta é uma arte muito específica, não somos secretários pessoais. Entregamos um serviço completo, é verdade. A visão é sempre do realizador, nós somos os soldados. Por isso não pensam em nós como tendo um talento próprio ou um dom. É preciso educar as pessoas para a nossa profissão. Acho que é isso que a Casting Society of America está a tentar fazer. Ou a CGD em Londres, por exemplo. Estamos a pedir lentamente algum reconhecimento, que já acontece nos prémios BAFTA. A Television Academy também tem. Temos esperança que a Academy of Motion Picture Arts and Sciences reconheça isso. É difícil. Relacionamo-nos com um filme através do ator, não queremos imaginar que ele foi escolhido a partir de um grupo, queremos que haja alguma magia. Há atores com personagens icónicas, como o Tom Cruise em “Missão Impossível”, e não queremos pensar que foi uma escolha de um em cinco. Isso retira o romance. É um processo.
[o trailer de “Casting By”:]
https://www.youtube.com/watch?v=HziqvHUJVOI
A indústria mudou muito? Será que também vai mudar muito com a Covid?
Haverá mudanças no público. Temos de pensar nele primeiro, porque é ele que compra os bilhetes. Se se sentem seguros na sala, a comer pipocas e a trazer as crianças para o cinema. O medo da Covid vai mudar a experiência de ir ao cinema, mas vai clarificar a discussão que é feita nos bastidores: de que o cinema está a morrer, de que é caro ir às salas. Adoro ir ao cinema, estar completamente dentro da história. Mas faço parte de um pequeno grupo de cinéfilos. É o medo de seis meses perante o desconhecido. Em relação à produção, penso que vai continuar na mesma. Queremos fazê-los e contar histórias. Aqui temos drive-ins, estamos a tentar mantê-los vivos. Temos de perceber como puxar as pessoas. Lembro-me de ser criança e de haver um homem que contava histórias num teatro. Já havia televisão e filmes, era a experiência mais incrível de sempre. Vamos sempre arranjar uma forma de experiência a história. É uma questão de ajuste.
Por causa de todas as restrições — evitar contactos, manter distâncias, usar máscara — teve de mudar a sua forma de trabalhar? Ou a internet manteve a dinâmica?
Muda, claro. É bizarro pensar em alguém a beijar outra pessoa neste momento. Sente-se que há um luto ao ver isso. O processo mudou porque agora encontro-me com os atores à distância. Depois partilhamos o ecrã, dois atores de cada lado a contracenar. Mas estão em casa. Estou a ajudar um grupo de pessoas para um filme rodado em Londres e decidiram que iam usar as reuniões de Zoom no filme. Agora faz-se assim. Quando comecei, tínhamos de meter os atores num avião, agora não. O realizador está aqui comigo, tu estás em Portugal e não tenho de te trazer para cá. Os computadores são bons o suficiente para ver como resultas numa câmara. Depois vê-se se há química e partimos por aí. Mas resulta melhor para os atores, porque ficavam muito nervosos na sala de espera a olhar para os outros atores, “iguais” a eles. Se fizermos um casting típico e estivermos à procura, por exemplo, de uma Shirley Temple, para contracenar com a mãe: todas as mães estão na sala de espera, os filhos nem querem saber, outros nem querem representar. Torna-se um caos, prejudica a performance. Em casa, os atores estão seguros, estão no seu ninho. Há menos nervos.
Falemos do seu papel numa produção do filme. A Monika faz o casting, o realizador aceita as escolhas, e depois? Parte logo para outra produção? Ou acompanha o processo?
A relação com o filme acaba, sim. É muito triste, esse é mais um problema da Academia, porque não fazemos parte da rodagem todos os dias. Alguns realizadores querem-nos do início ao fim, sim. Mas somos esquecidos a certa altura. Não há nenhum prémio para um manager de locais, por exemplo. Encontra-se o sítio para filmar e segue-se em frente. Trabalhei muitos anos para o [músico] Rob Zombie, uma das pessoas com quem gostei mais de trabalhar na vida, falávamos todos os dias. Nunca queria estar com os atores porque ia mudar o guião. Depois começava a rodagem e pensava: tenho saudades do Rob. Quando íamos à estreia lembraram-se de me convidar, o que não acontece muitas vezes, e falei com ele. Não me conhecia. Ficou surpreendido porque só falávamos por telemóvel. Mas eu sabia, porque sou uma stalker maluca. Só que ele não fazia mesmo ideia.
Voltemos ao início. Como é que chegou a diretora de castings?
Tive muita sorte. Vim para a faculdade em Los Angeles e mudei-me com crianças de pais de Hollywood. O meu primeiro grupo de amigos tinha pais artistas, um tinha uma tia que era diretora de casting e outro tinha um pai que era famoso para mim nessa altura, por ter entrado sitcom “Sanford and Son”. Uma vez entrámos numa mercearia e vi o Danni DeVito. Perdi a cabeça. Pensei: Hollywood é como Maiorca. É uma ilha, os atores vão para lá, há cenários diferentes, como uma selva ou uma cidade, filmavam o filme e iam-se embora. Não fazia ideia que moravam em Los Angeles, que comiam comida como seres humanos. Fiquei chocada. Os meus colegas de quarto perceberam que eu tinha de ficar mais sábia, porque era ridículo. Fazia toda a contabilidade, organizava tudo, porque os diretores de casting são muito organizados, há muita obsessão no nosso trabalho. Tentei até fazer um mestrado em Matemática, mas não correu bem. E depois uma das minhas colegas sugeriu-me trabalhar com a tia, que trabalhava na área de castings.
Só porque era organizada?
Sim. Pensavam que ajudaria a ser menos fã, mas também organizar o trabalho da tia. Fui uma estagiária e isso, nos anos 80, queria dizer que podia ser estudante de faculdade e trabalhar de graça para ganhar experiência. E, oh meu deus, o meu primeiro estágio foi num filme com o Steven Seagal na Warner Brothers, sobre um cozinheiro da marinha [“A Força em Alerta”, de 1992]. Tinha de levar o almoço à tia, entregar guiões e organizar as coisas. Organizei tudo no escritório. Fazia todas as cópias de gravação para entregar.
[o trailer de “A Força em Alerta”:]
Que experiência.
Foi muito bom. O Steven Seagal despediu-me duas vezes, só que como trabalhava de graça continuei a aparecer. Da primeira vez ligou-me, mas como parecia um maluco ao telemóvel, desliguei por medo.
Que idade tinha?
17 ou 18 anos. Foi fantástico. Depois trabalhei no “The Golden Girls Empty Nests”, um spin-off icónico de uma sopa opera. Tive que organizar currículos e fotografias, por idade e por género. De repente, vejo o [rapper e ator] LL Cool J na sala de espera. Caiu-me tudo, adoro-o. Era o melhor trabalho de sempre. Nasci para servir, adoro fazer parte do objetivo de alguém. Era a profissão para mim. Venho de uma família dinamarquesa, queriam que tivesse estudado finanças para investir depois na Dinamarca. Não faziam ideia do que era trabalhar em casting, mas desde que não lhes pedisse dinheiro, estava tudo bem. Quando acabei a faculdade voltei para a Dinamarca, fiquei pouco tempo, e regressi aos EUA. Consegui um emprego com uma das pessoas com quem tinha estagiado. Esse foi o início e nunca mais parou.
Nasceu onde?
Em São Francisco. Quando acabei a faculdade a minha mãe voltou para Dinamarca com a minha irmã mais nova. Queria que voltasse, mas não, adoro a Califórnia, nunca vou sair.
Quando é que deu conta desse talento para a organização?
Em criança. Quando me candidatei à Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) não entrei, só à segunda. Recorri da decisão e entrei porque precisava de me mudar para lá. Quando tinha 13 anos vi um filme, o “Valley Girl”, com o Nicolas Cage [“A Rapariga de Los Angeles”, de 1983]. Ia encontrar-me com ele, apaixonar-me e íamos jantar no Dupars. Queria ir para Hollywood para conhecer o Nicolas Cage.
Chegou a conhecê-lo?
Sim, e ia vomitando. Trabalhei num filme, o “The Rock” [“O Rochedo”, 1996], quando estava a acabar a minha formação, ele era o protagonista. Foi rodado em São Francisco. Levei as cassetes a um realizador que estava a surgir, o Michael Bay. O meu trabalho era ir num barco para Alcatraz e entregar as cassetes. Foi muito bom porque foi um trabalho feito na minha terra natal, conheci o Nicolas Cage e a minha mãe veio de propósito para tentar conhecer o Sean Connery. Melhor emprego de sempre.
Mas quando é que começou a lidar com os atores?
Como assistente entras em contacto com os agentes, fazes listas, vês horários. Depois tornas-te “associate casting director”, que é o próximo nível. Depois começas a analisar os atores por tua conta, a ir a filmes, ver televisão e começas a tirar notas de qualquer ator que seja interessante para uma publicidade.
Está sempre a estudar.
Sim. Na faculdade, quando estava a fazer um dos estágios, havia uma comédia canadiana chamada “Kids in the Hall”. Ligamos-lhes, fingimos que éramos diretores de casting da Warner Brothers e dissemos que íamos até Toronto ver o programa. Eles organizaram todo. Só que como não consegui ir, o meu colega de casa foi por mim e fingiu que era eu. O stalking já tinha começado. Quando sou fã, tiro notas, sempre fui assim.
Deve ter muitas histórias para contar. Peço-lhe uma, que possa colocar em on, claro.
OK, uma em on. É importante relembrar atores como o Tom Cruise, que estão a maior parte do tempo a salvar o mundo nos ecrãs. Quando ele chegava à Paramount, toda a gente perdia a cabeça. Ele foi conhecer o presidente da divisão de cinema, tirou fotografias com ele, com a assistente e o realizador do filme em que ia entrar. No dia seguinte, chegou uma fotografia emoldurada do Tom Cruise com cada uma das assistentes. Foi um presente. É um momento que só faz sentido em Hollywood. Porque a verdade é que também estamos a treinar a próxima geração. Quero treinar diretores de casting que sejam caçadores verdadeiros. Há um ator de que sempre gostei desde miúdo, o Ethan Embry. Meti-o em todas as audições possíveis porque era muito apaixonado pelo cinema. Nos anos 90, meti-o num filme do Wim Wenders. O Ethan era muito fã do realizador, tanto que decidiu bater com a mão numa parede de cimento. Partiu-a, ficámos desesperados. Não conseguiu o papel. Sempre que o vejo, sinto-me responsável. Passaram 25 anos. É um grande trabalho se te preocupares com as pessoas. E é preciso mostrar todas as pessoas, não pode ser tudo só homens brancos.
E agora a indústria também tem essa pressão por causa de movimentos como o #metoo ou o Black Lives Matter.
Sim, encontraram a sua voz. A internet está madura, é uma ferramenta que pode ser usada para amplificar a tua voz. É um poder incrível, perigoso mas vital.
O que está a fazer este ano no Passaporte?
Sou membro do júri, vimos todos os atores e ajudamos a Patrícia a escolhê-los.
Ficou surpreendida com a “colheita”?
Há tantos bons atores…
Está a ser simpática porque sou português?
Não, nada disso. Alguns são mesmo muito bons. Há uma mulher, que deve ser famosa em Portugal, que me faz lembrar a minha avó.
Será a Rita Blanco?
Deixe-me ver [Monika vai aos seus ficheiros]. Penso que é a Rita, porque fiquei obcecada. Sim, é ela! É o tipo de atriz que queres a liderar um elenco. É uma capitã de equipa. Capta a tua atenção. E traz algo único de um tempo que quase já não existe. Tem uma vibe dos anos 70. Sinto tanta falta disso. As coisas mudam, estamos todos esmagados aqui porque temos o pior Presidente na história. Estamos a viver num regime neonazi. Sinto falta dos dias em que o Jimmy Carter era presidente. A Rita devolve-me esse tempo.
Acha que ela tem hipóteses de singrar, então?
Absolutamente. Eu teria colocado a Rita no “Word War Z II”, se a tivesse conhecido em outubro de 2019. Agora que a conheço, vou encontrar-lhe um trabalho.
É uma situação ainda estranha para nós, pensar que atores portugueses vão estar em grandes produções de uma forma normal.
Fizemos o mesmo com uma atriz brasileira no Star Trek. Porque trabalhava todos os dias nas novelas da Globo. Ela era tão grande que nem a conseguimos encaixar no filme. A Rita Blanco é uma gema. Seria perfeita no “WWZ II”.
Mais tarde, vai-se encontrar com os atores?
Sim, no próximo sábado. Como não consegui viajar para aí, vou dividir, à distância, com outros júris. Vamos reunir com os atores e fazer um seminário com os que não entraram no programa Passaporte. Queremos falar com os que quase chegaram à reta final. Porque, quando te estás a apresentar a um americano, é preciso fazê-lo de forma muito simples, tens de saber o que fizeste e assumir que eles não sabem mais nenhuma língua. Há racismo real neste país e é preciso trabalhar nisso. Somos os primos tontos do resto do mundo.
Acha que Trump vai ganhar outra vez?
Sim. O mundo vai acabar. Temos incêndios e terramotos aqui na Califórnia, temos uma pandemia mundial. É o fim dos dias. Somos formigas e há um pé gigante que nos vai pisar.
Há quatro anos toda a indústria de Hollywood colocou-se ao lado da Hillary Clinton, isso não a terá afetado?
Acho que é maior do que isso. Acredito genuinamente que os cidadãos americanos têm muito medo das mulheres. Se um alien com tentáculos a sair do rabo se candidatasse à presidência ganharia antes de uma mulher. O medo é tão grande e tão ridículo, mas percebo-o. Uma mulher pode decidir não ter aquele bebé. Fecha as pernas e vamos embora. Os homens acham as mulheres irresistivelmente atraentes, mas também assustadoras. Acho que a Hillary perdeu por ser mulher. Era a melhor escolha. Trump é um gigante bully. O cérebro dele não funciona bem.
Joe Biden não vai “salvar” a América, então.
Receio que não tenha a força de derrotar alguém tão cruel. O Donald Trump tira o pior das pessoas. Destaca tudo o que é mau. O Joe Biden arrisca o seu próprio bem estar ao entrar nesta corrida contra este monstro. É assustador. Tenho esperança, mas estou assustada.
Considerou emigrar?
Não. Sou uma filha do Ronald Reagan, do George Bush, do filho do George Bush. Vi a escuridão e experienciei-a.
O Ronald Reagan também foi ator…
Exato. Tal como o Arnold Schwarzenegger. Não votei nele.