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Na Quinta da Marinha, os alunos chegam a partir das 8h30. Como em qualquer escola montessoriana, há várias idades diferentes nas salas de aulas, e não há turmas ou anos de escolaridade tal como os conhecemos na escola pública portuguesa
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Na Quinta da Marinha, os alunos chegam a partir das 8h30. Como em qualquer escola montessoriana, há várias idades diferentes nas salas de aulas, e não há turmas ou anos de escolaridade tal como os conhecemos na escola pública portuguesa

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

Na Quinta da Marinha, os alunos chegam a partir das 8h30. Como em qualquer escola montessoriana, há várias idades diferentes nas salas de aulas, e não há turmas ou anos de escolaridade tal como os conhecemos na escola pública portuguesa

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

Montessori em português? A escola onde as crianças gerem o seu tempo pode chegar em dois anos

Turmas com várias idades, liberdade para escolher e partilhar e uma escola que ensina a vida prática. Há quem queira ver o método Montessori em Portugal daqui a dois anos.

Os miúdos do 1.º ciclo chegam de manhã e sabem exatamente o que têm de fazer. Na semana anterior combinaram com a professora as tarefas a desenvolver ao longo de cinco dias e, agora, cada um decide o que quer realizar primeiro. Certo é que, quando chegar a sexta-feira, tudo o que está escrito no caderno preto terá de estar feito, mas ao ritmo de cada um. Na sala de aula, onde a par da matemática se ensina a limpar vidros e a preparar almoços, a liberdade de movimentos é total. Não é preciso pedir para ir à casa de banho, ou para beber água, porque ensinar as crianças a tomarem decisões faz parte do currículo. Mas há regras. Muitas regras, ditas sempre num tom de voz baixo e calmo, porque, dizem-nos, a maneira de falar com as crianças também influencia a sua aprendizagem. Esta é também uma sala de aula sem papel nem caneta, sem manuais escolares, sem testes de avaliação, sem campainhas e sem separação por idades, onde as crianças dos 6 aos 9 anos aprendem juntas. O método, que parece inovador, tem 100 anos, mas nunca entrou nas escolas públicas portuguesas, ao contrário de outros países. Por cá, existe apenas em escolas internacionais, como a Kairos Montessori, em Cascais. Mas essa realidade pode estar prestes a mudar.

É que daqui a dois anos, Rosana Fernandes quer ter em funcionamento uma escola primária Montessori. O sonho não seria impossível se Rosana estivesse disposta a ter uma escola internacional. Mas não. O caminho que quer seguir é o de ter um estabelecimento cem por cento português, que siga o currículo nacional e cumpra todos os requisitos do Ministério da Educação. Enquanto esse dia não chega, tem um espaço que recebe crianças dos 18 meses aos 6 anos, a Escola Montessori do Porto. Como não desiste da ideia de alargar a escola ao ensino obrigatório, está a adaptar os currículos portugueses ao método criado pela italiana Maria Montessori (1870 — 1952), algo que no Reino Unido, por exemplo, já foi feito. Conta demorar ainda dois anos até concluir a tarefa.

“Estamos na fase de adaptar o currículo português para Montessori. Aquilo que temos visto noutras escolas é que têm de seguir o currículo britânico, porque esse já está preparado. Não é esse o percurso que queremos. Queremos ter um mapeamento entre aquilo que é Montessori e aquilo que é o ensino português. Temos ideia de que o faremos em dois anos e, provavelmente, vamos ser pioneiros nesse trabalho”, conta Rosana.

Em Cascais, na Quinta da Marinha, a escola de Candida Wigan funciona até ao equivalente ao 6.º ano de escolaridade, recebendo alunos até aos 12 anos. A diferença? É que a Kairos Montessori é uma escola internacional, aquilo que Rosana Fernandes não pretende que a sua venha a ser. A funcionar desde o ano letivo 2017/2018, a Kairos segue o currículo internacional de Cambridge. Para todos os efeitos legais, e para o Ministério da Educação, é isso que conta: segue o currículo britânico, é uma escola inglesa e tem licença para dar aulas em Portugal, tal como tantas outras escolas internacionais.

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Neste caso, o facto de seguir a pedagogia Montessori não interfere em nada no que toca ao cumprimento da legislação portuguesa. Mas para ter carimbo de escola cem por cento montessoriana, através do reconhecimento da Associação Internacional Montessori (AMI), tem de se obedecer a determinados critérios. E é este casamento entre ambas as exigências que torna difícil ter uma escola portuguesa montessoriana.

A equipa da Escola Montessori do Porto. Na fila da frente, do lado direito, está Rosana Fernandes, uma das fundadoras

As guias, nome dado a educadoras e professoras, têm de ter formação Montessori para a escola ser acreditada. Aí reside o verdadeiro problema, acredita Maria Antónia Boyen, fundadora do Atelier Montessori, em Lisboa, e da Escola Montessori São Lourenço. Os cursos acreditados pela AMI não são reconhecidos em Portugal e quem faça o curso no estrangeiro, que dura cerca de ano e meio, quando regressa ao país não tem qualquer equiparação curricular. “Ou as educadoras têm dupla formação ou temos pessoal a duplicar”, conta. Este último é o seu caso. Para poder receber as crianças, tem educadoras formadas em Portugal e que, oficialmente, são as responsáveis pelas salas. Na verdade, são as guias Montessori, acreditadas pela AMI, quem garantem que o método italiano é seguido com rigor e são elas as soberanas dentro da escola.

Se Rosana Fernandes sonha com currículos adaptados e uma escola Montessori para crianças, Maria Antónia Boyen deseja ver nascer em Portugal uma escola superior que forme guias, sem as quais continuará a ser muito difícil manter aberta uma escola montessorina: “Uma escola internacional não tem esse problema, desde que se legalize ao abrigo de um método que o Estado português reconheça como método de ensino válido, como um Cambridge. Não é porque o método esteja reconhecido. É porque na burocracia dos papéis se legaliza a escola debaixo do chapéu Cambridge.”

E por que motivo há essa resistência à pedagogia Montessori? “No Ministério, quando perguntamos por que o método não é reconhecido, devolvem-nos a questão assim: não é uma questão de reconhecimento. E, de facto, não é. Não há um não reconhecimento, há ignorância da credibilidade, da validade científica. O que eu digo é que não há que ter medo”, sustenta Maria Antónia Boyen.

“Estamos na fase de adaptar o currículo português para Montessori. Aquilo que temos visto noutras escolas é que têm de seguir o currículo britânico, porque esse já está preparado. Não é esse o percurso que queremos fazer. Queremos ter um mapeamento entre aquilo que é Montessori e aquilo que é o ensino português. Temos ideia de que o faremos em dois anos e, provavelmente, vamos ser pioneiros nesse trabalho.”
Rosana Fernandes, Escola Montessori do Porto, Senhora da Hora, Matosinhos

O que é ser Montessori? O dia das crianças na Quinta da Marinha

Na Quinta da Marinha, os alunos chegam a partir das 8h30. Como em qualquer escola montessoriana, há várias idades diferentes nas salas de aulas, e não há turmas ou anos de escolaridade tal como os conhecemos na escola pública portuguesa. Na Casa das Crianças — Maria Montessori chamou-lhe Casa dei Bambini — estão os alunos dos 3 aos 6 anos. Na Elementary, há duas faixas etárias: dos 6 aos 9 anos, e dos 9 aos 12.

“A criança mais nova tem sempre um modelo ao olhar para a mais velha e essa, em vez de ser uma criança altamente competitiva, tem compaixão e ajuda o próximo. Tem sempre a oportunidade de ser um pequeno professor”, explica Candida.

Casa e Elementary são espaços autónomos, rodeados de um imenso espaço verde, mas em tudo semelhantes. Aliás, poucas variações se encontram quando se visita diferentes escolas montessorianas. As paredes são brancas, o mobiliário é claro e tudo é feito à escala dos alunos. O material pedagógico é de boa qualidade e visualmente apelativo. “Pensamos muito em tudo o que entra na sala de aula, sempre à procura da maravilha e da surpresa que a criança encontra no material. As professoras passam semanas à procura do material ideal para determinada atividade. Os materiais são bons, são coisas bem feitas”, explica Candida.

Nas escolas Montessori também há um silêncio, diferente daquele que ouvimos noutras escolas, e que não é imposto pelo adulto, típico de quem está concentrado numa tarefa.

“Quando as crianças chegam ficam no corredor a jogar xadrez, cartas, ou a ler. Às 9h00 reúnem-se, fazem um círculo, rezam, falam sobre qualquer coisa importante e depois vão trabalhar. Os professores estão presentes como guias. Vão clarificando alguma coisa que seja preciso, dão uma lição, mas não se dá aula. Ao meio-dia, começam eles próprios a preparar o almoço. Há um grupo que prepara as mesas — nada é de plástico, tudo se pode partir, por isso aprendem a tomar conta das coisas — e, no final da refeição, limpam. Depois vão lá para fora brincar”, conta Candida Wigan. À tarde têm aulas de português, de catequese, de música e de desporto.

Como são uma escola Cambridge, é importante que os alunos cumpram os objetivos do currículo. A forma de lá chegar é que é distinta da habitual. “À sexta-feira, as crianças fazem um plano semanal com o professor para a semana seguinte e uma avaliação da semana que acabou. De terça a sexta trabalham o seu plano semanal e o objetivo é acabar. Algumas crianças precisam de ser mais motivadas, outras trabalham sem parar.”

Não é o lado mais conhecido de Maria Montessori, mas a italiana era cristã católica. Na Kairos, a catequese também é montessoriana

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

É graças a esse planeamento, que ganha forma num pequeno livro individual, que cada estudante sabe o que tem de fazer, seja na leitura, na escrita ou na matemática, assim que chega à sala de aula. “A criança tem lições antes e tem de as praticar. Depois há de ter lições novas. Se há uma que não percebeu, volta à professora ou tem a ajuda de um colega. Sabe que no seu livrinho tem as tarefas e sabe que tem de fazê-las durante a semana, pela ordem que quiser. Tem é de acabar. Assim, aprendem a gerir o seu tempo e isso é muito importante: são produtivos. A grande dificuldade de uma criança que não é Montessori desde os 3 anos é saber gerir o tempo. Não sabem o que fazer, ficam nervosos, não sabem como seguir de uma tarefa  para a outra, mas todas têm capacidade de fazê-lo.”

Trabalhos de casa também não há, exceto a obrigação de ler todos os dias quando chegam a casa, esclarece Candida Wigan.

Portuguesa, arquiteta de profissão, Candida viveu durante muitos anos em Londres. Foi lá que os seus quatro filhos, de 9, 7, 5 e 3 anos, entraram para escolas montessorianas, percurso que o seu marido, britânico, também tinha feito até aos seis. Quando voltaram para Portugal, as crianças foram colocadas um ano acima do que seria esperado.

“Houve uma série de problemas sociais. As crianças estavam academicamente prontas para estar um ano à frente, mas não estavam emocionalmente prontas para estar com 25 crianças mais velhas. Começámos a ver falta de interesse na aprendizagem. Ao mesmo tempo, houve o problema da catequese: o meu filho deixou de querer ir”, conta Candida.

A solução passou por organizar um curso de catequese Montessori na paróquia de Cascais e foi ali que acabou a ter uma conversa “muito existencial” com a senhora que veio para o conduzir. Tinha sido professora durante 30 anos e tinha montado três colégios, dois na Alemanha e um no México.

“Eu guiava para o colégio todos os dias a pensar que não acreditava em nada do que estava a fazer — cheguei a pensar em ensino doméstico, mas pus a ideia de parte. E ela disse-me: ‘Comece uma escola. Comece pequeno, uma turma, uma professora.’ E começámos. Com 12 crianças, uma professora que veio de Washington e uma assistente. Acabámos o ano com 20 crianças”, relembra Candida.

“Para nós a religião é importante. Maria Montessori era católica e isso na Europa é tabu. Nos EUA há muitas escolas Montessori católicas. Na Europa e em Portugal, não. A razão porque ela criou este método foi por respeito às crianças como seres espirituais. Para nós era importante que essa componente fosse dada da mesma maneira: como escolha, não obrigatória.”
Candida Wigan, escola Kairos Montessori, Quinta da Marinha, Cascais

Ao contrário do sonho de Rosana Fernandes, para Candida Wigan era fundamental que a escola fosse internacional. Não era o único ponto importante: queria uma escola acessível, que não fosse só para famílias ricas, que fosse para famílias numerosas e para estrangeiros que criassem raízes em Portugal. Também queria uma escola católica, que tivesse bolsas de estudo, para dar educação internacional a crianças que nunca a poderiam ter.

“Para nós a religião é importante. Maria Montessori era católica e isso na Europa é tabu. Nos EUA há muitas escolas Montessori católicas. Na Europa e em Portugal, não. A razão porque ela criou este método foi por respeito às crianças como seres espirituais. Para nós era importante que essa componente fosse dada da mesma maneira: como escolha, não obrigatória.”

Assim, para além das salas habituais, na Kairos há também um espaço dedicado à catequese e que só se distingue dos outros espaços pelas imagens de Jesus Cristo que estão nas paredes.

Para terminar a lista daquilo que seria a sua escola ideal, Candida Wigan queria pais participativos e — fundamental — que fosse uma escola na natureza. “Ficámos chocados quando chegámos a Portugal e vimos as praias vazias. O meu filho voltava branco da escola, sem estar sujo. Porquê?, pensava eu. Agora chegam pretos, encardidos de terra.”

Na Kairos, este ano letivo deu-se a expansão para a turma dos 9 aos 12 anos, mas com as mesmas crianças que já frequentavam a escola. “Temos algumas que vão entrar com 8 ou 9 anos, mas poucas. É muito importante numa escola Montessori ter o que se chama uma base de crianças normalizadas: crianças que saibam trabalhar dentro do sistema, trabalhadores independentes, que sabem começar e acabar. Pode-se inserir devagar algumas crianças, mas não se pode aceitar 50 crianças novas numa turma. Não vai ser Montessori.”

O Material Dourado (cubo dourado à direita) serve para ensinar o sistema decimal: uma conta representa o 1, uma barra o 10, uma placa o 100, o cubo inteiro o 1000

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

Descobrir a casa para depois explorar o mundo (com lições cósmicas)

Na Senhora da Hora, em Matosinhos, o dia começa tão cedo quanto em Cascais. As crianças, dos 18 meses (em regime de atelier) aos seis anos, chegam à Escola Montessori do Porto quando no relógio passa meia hora das oito da manhã.

“Tiram os sapatos, vão entrando no ambiente e dentro daquilo que já lhes foi apresentado pelos guias. As crianças são livres de escolher os materiais que querem explorar nesse dia e, a partir daí, também se trabalha o sentido de arrumação — elas sabem que para ir para um novo trabalho têm de arrumar o anterior. Há liberdade, mas com claros limites. Sabem que a liberdade deles termina quando começa a do outro. Se alguém quiser fazer aquele trabalho e estiver desarrumado, não vai conseguir. E este sentido de arrumação e de respeito pelo outro começa logo aos 18 meses”, conta Rosana Fernandes, que recebe 30 crianças na escola que abriu em setembro de 2018.

Outro sentimento trabalhado é o da partilha, explica Rosana. “Há o trabalho comunitário: cortam fruta com o sentimento de colocar na mesa de partilha, para que todos possam usufruir daquele resultado que, neste caso, é a banana descascada. Apesar de haver estes momentos, são livres de comer e beber à hora que quiserem. Da mesma maneira, são livres de circular entre o espaço interior e exterior. Por volta do meio-dia fazemos o almoço, eles servem-se com a quantidade que pretendem comer, percebem se houve desperdício no final da refeição, ganham essa consciência, e ajudam a limpar a cozinha.”

Todas estas tarefas, cortar a fruta, ajudar a preparar as refeições, limpar e arrumar o espaço, fazem parte daquilo que neste método de ensino é conhecido como a vida prática, e que é uma área curricular da sala de aula Montessori. Verter líquidos para um copo, abotoar um botão, usar uma pinça, abrir e fechar frascos, dobrar panos em triângulos ou quadrados, limpar vidros — tudo são competências práticas que desenvolvem a motricidade fina e que as crianças irão usar mais tarde quando iniciarem a aprendizagem abstrata.

“Pensamos muito em tudo o que entra na sala de aula, sempre à procura da maravilha e da surpresa que a criança encontra no material, as professoras passam semanas à procura do material ideal para aquela atividade. Usamos muito sementes, que vêm do jardim. Os materiais são bons, são coisas bem feitas.”
Candida Wigan, escola Kairos Montessori, Quinta da Marinha, Cascais

“A Casa di Bambini é como se fosse uma casa, prepara a criança para ser autónoma no mundo de hoje, para se conseguir vestir, comer, escrever, saber os números, comunicar, respeitar, trabalhar autonomamente e tudo isto acontece num espaço feito à escala das crianças”, explica Candida Wigan. Por isso mesmo, em qualquer sala de aula que se entre, a divisão do espaço estará sempre feita em cinco áreas: sensorial, cultural, linguagem, matemática e vida prática.

A sensorial, explica Candida, prepara as crianças para a matemática com a ajuda dos materiais criados por Maria Montessori, como a torre cor de rosa ou as barras vermelhas. A torre cor de rosa, uma peça icónica e das mais conhecidas do método, é composta por vários cubos. Como tudo o que é Montessori, tem objetivos diretos e indiretos. Ao empilhar os cubos, a criança tem de treinar a discriminação visual, a coordenação e a precisão. Indiretamente, está a preparar-se, sem se aperceber, para mais tarde saber o que são raízes cúbicas. Outra característica deste e de outros materiais é que são autocorretivos: se a criança não seguir a ordem certa dos cubos, percebe imediatamente que a torre não está bem feita. Já as barras vermelhas, dez blocos que variam entre os 10 centímetros e os 100, ajudam a perceber as variações de comprimento. Se uma barra for colocada na posição errada é imediatamente percetível.

“É assim que começam a perceber o conceito de maior, menor, mais pesado, mais leve, e começam a entender as pequenas diferenças entre os objetos que as prepara para matemática e também para a leitura. Outro material são as quatro caixas de cor: a primeira tem quatro cores, a segunda tem 12, e por aí fora. Eles têm de agrupar as cores e isso prepara-os para a coordenação, a concentração, mas também para perceber diferenças mínimas entre as coisas”, sublinha Candida Wigan.

Com os materiais Montessori, diz, tudo é muito específico, começa-se sempre do concreto para o abstrato. Por serem autocorretivos permitem que as crianças sejam mais independentes: não é preciso que a guia lhes diga se o que fizeram está certo ou errado, eles percebem por si próprios e tentam de novo quando é necessário.

Quando acaba o ensino pré-escolar e começa o primário, a ideia passa a ser outra. “Chegados ao Elementary, a parte de vida prática é muito menor. A partir daqui, a ideia é explorar o mundo. Para isso, temos as cinco grandes lições — a que Maria Montessori chamou Educação Cósmica. A ideia é criar admiração pelo universo em que vivemos e aprender geografia, ciência, história…”, explica Candida.

A vida prática faz parte do currículo Montessori. Na escola de Maria Antónia Boyen, existe um recanto onde cada criança encontra um avental e material necessário para, por exemplo, limpar vidros

DR

Ao contrário do currículo tradicional, não há separação do conhecimento por disciplinas, tudo está interligado. Em cada uma das lições parte-se de um conjunto de histórias que levam as crianças a questionar o mundo e que pretendem despertar-lhes a curiosidade. Parte-se do todo para o específico começando, por exemplo, por se apresentar primeiro o Universo, depois os planetas e, só no fim, a Terra.

As cinco grandes lições são a história do Universo, a história da vida, a do homem, a da comunicação e a dos números. Na Kairos, no ano letivo passado, os alunos escolheram estudar o sistema solar, os vulcões e a estrutura da terra. “Ninguém quis estudar estrelas. Mas a lição está lá, está disponível, e em algum momento, entre os 6 e os 12 anos, eles vão estudar estrelas, não tem é de ser este ano”, esclarece a fundadora da Kairos.

“A escolha da criança é feita dentro de limites. É sempre preciso escolher entre A e B. Uma criança sem limites é uma criança desordenada e desequilibrada. Um bom guia Montessori é até uma pessoa bastante rígida, não é alguém que deixe fazer tudo — e isso era a minha perceção de Montessori, antes de conhecer o método”, explica Candida Wigan, para logo depois apontar as grandes vantagens que encontra. “Criamos crianças equilibradas e sedentas por informação. Crianças que questionam, que adoram aprender, adoram ler, são confiantes e respeitadoras do próximo. O lado emocional e académico estão equilibrados.”

Os três pilares: o ambiente preparado, o adulto preparado e a criança no centro da aprendizagem

Maria Montessori, uma das primeiras mulheres a formar-se médica em Itália, em 1896, dedicou-se à psiquiatria e trabalhou muito com crianças com necessidades educativas especiais. Foi com elas que percebeu que através de determinados materiais, que apelavam aos sentidos, conseguiam desenvolver-se e aprender tanto como as outras. Já nos anos 1900, virou-se para o estudo da pedagogia e como professora testaria a sua teoria de aprendizagem sensorial com crianças sem necessidades especiais na Casa di Bambini. A experiência foi um sucesso e dois anos depois, em 1909, escrevia O Método da Pedagogia Científica Aplicado à Educação Infantil no Lar das Crianças onde expõe o seu método pela primeira vez, o qual acabaria por correr mundo.

“No Ministério da Educação, quando perguntamos por que motivo o método não é reconhecido, devolvem-nos a questão assim: não é uma questão de reconhecimento. E, de facto, não é. Não há um não reconhecimento, há ignorância da credibilidade, da validade científica. O que eu digo é que não há que ter medo.”
Maria Antónia Boyen, Atelier Montessori, Lisboa

Hoje, para resumir o método Montessori, Rosana Fernandes começa por apontar os seus três pilares: “O adulto preparado, o ambiente preparado, e a criança no centro da aprendizagem.”

Pôr a criança no papel central implica partir da premissa que ela pode aprender sozinha, se lhe for dada oportunidade para isso. “Nunca ajude uma criança em algo que ela acredita que pode fazer sozinha”, dizia Montessori. Daí que o método aposte muito na autonomia e na liberdade de escolha, e em materiais autocorretivos, que evitam a intervenção do adulto — o seu papel é mais próximo de um observador, do que o de um professor tradicional. “Não lhes digam como fazer. Mostrem-lhes e não digam uma palavra”, dizia a italiana que acreditava que só assim a criança iria querer fazer por si própria.

Ainda hoje, numa sala Montessori, nenhum material é usado pelas crianças sem que primeiro as guias mostrem como ele se usa.

Ter o ambiente preparado, explica também Rosana, é ter todas as características para que as crianças possam ter liberdade, possam escolher e possam fazer a sua aprendizagem ao seu ritmo. Na Casa di Bambini, Montessori mandou cortar as pernas de mesas e cadeiras para que tudo estivesse à escala das crianças. Os materiais estavam ao alcance dos alunos para que a cada momento pudessem trabalhar de acordo com as suas preferência e sem ter de pedir autorização — algo que quem não é Montessori nem sempre percebe.

“Quando as crianças não são Montessori tem de haver um período de adaptação. Começa logo nas perguntas que nos fazem — ‘Posso comer?’, ‘Posso ir à casa de banho?’—, e ao que nós respondemos que não é necessário pedirem. ‘Se queres beber, tens aqui água, basta servires o teu copo.’ Algumas crianças têm dificuldade em escolher aquilo que querem, não estão habituadas a ter de decidir por elas e aqui promovemos esta consciência e este espírito crítico”, detalha Rosana.

Na trilogia que sustenta o método, o mais difícil é conseguir ter o adulto preparado, defende a fundadora da escola de Matosinhos. “A criança sente-se como peixe na água, um espaço Montessori é feito para elas, sentem uma grande motivação e interesse. Nós, adultos, é que temos de nos auto-regular para não fazer aquilo que culturalmente estamos habituados a fazer.” Foi isso que lhe aconteceu. Tal como Candida Wigan, também foi a maternidade que levou Rosana a querer fundar uma escola, depois de detetar na filha sinais de inadaptação à creche. Enquanto procurava soluções, foi a uma formação Montessori e conheceu a sua atual sócia, que já era guia acreditada. Juntas participaram na fundação da Associação Montessori Portuguesa em 2017 e, no ano seguinte, conseguiram que a associação fosse filiada da AMI. Em 2018, abriram a escola.

“Ter um adulto preparado significa estar ao serviço da criança e não o contrário. A criança está no centro da educação, não é o educador que lidera a missão de educar. Ao longo do nosso processo de transformação encontramos muitas barreiras, precisamos de ter esta auto consciência de saber que estamos ali para ajudar se eles precisarem. Não vamos intervir caso não seja necessário”, detalha Rosana.

No Atelier Montessori, em Lisboa, a sócia de Maria Antónia Boyen, Sofia Nascimento Rodrigues lembra que os pais muitas vezes fazem o oposto do que defende o método italiano. “De cada vez que substituímos a criança numa coisa que ela pode fazer sozinha, estamos a desrespeitá-la profundamente. Estamos a minimizar, a não acreditar que ela é capaz. Se não aguentamos esperar dez minutos para vê-la calçar uma meia isso é um problema nosso. Ela é capaz, nós é que não somos capazes de esperar. Mas para fazer isto é preciso mudar o mindset, não podemos viver na correria para sair de casa. É preciso saber contemplar. Esta coisa de estar permanentemente a cortar o ritmo à criança é contraproducente. Ninguém interrompe um adulto se ele estiver no meio de uma atividade, por que achamos que devemos fazê-lo a uma criança?”

As salas (esta é em Cascais) são semelhantes: cores claras, madeira, tudo ao alcance dos alunos. A divisão do espaço é feita em cinco áreas: sensorial, cultura, linguagem, matemática e vida prática

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

Escola dos adultos, escola dos pequenos

O Atelier Montessori nasceu com o regresso de Maria Antónia Boyen a Portugal, depois de dez anos passados no Brasil e no Peru, onde conheceu a metodologia e onde chegou a abrir escolas. Maria Antónia e Sofia não fogem à regra. Foi a maternidade e a insatisfação com o que o sistema tinha para oferecer aos seus filhos que as levou a dar o passo seguinte.

“Quando regressei em 2016 percebi que por cá não havia escolas nem dinamismo em torno da metodologia. Nos últimos três anos o movimento cresceu muito, mas naquela altura pouco havia. Isso fez-nos perceber que o que fazia sentido não era abrir uma escola, mas antes um atelier. As portas estão abertas e estão criadas condições para que adultos e crianças possam ter contacto com a metodologia, através de uma sessão ou de workshops”, explica Maria Antónia. Acima de tudo, as duas sócias assumiram o papel de transmitir a mensagem e dar a conhecer Montessori em Portugal.

“O atelier não chega a ser creche pelas limitações legais que existem. Só funcionamos das 9h30 ao meio-dia e meia, e isso é muito bem aceite pelas famílias porque são pessoas que não querem deixar os filhos até às 17h00 numa escola”, diz Maria Antónia Boyen. Para além desses ciclos de três horas, aos sábados há sessões para crianças acompanhadas pelos pais e workshops para adultos. Também têm formatos mais pequenos, quase mesas-redondas, muito apreciados pelas mães. “Acontece muito aparecerem pessoas que se identificam com a metodologia, mas não têm com quem falar, que leram um livro e querem saber mais. Ou que lidam com o conflito geracional, porque as avós não entendem o que estão a fazer com as crianças. Esta partilha é muito importante. Montessori é redondo. Não tem princípio, meio e fim de forma clara.”

Com o passar do tempo, conta Sofia Nascimento Rodrigues, aconteceu o que tanto desejavam: “Recebemos o sinal dos pais de que o atelier não chegava e foi assim que a Escola Montessori São Lourenço, dos 3 aos 6 anos, nasceu ali ao lado, e funciona até às 16h30.”

Tal como Rosana Fernandes, Sofia e Maria Antónia sonham ter uma escola primária Montessori e portuguesa. Como maior barreira apontam a falta de recursos humanos, mais do que a falta de adaptação de currículos. “O currículo Montessori é tão completo, tão detalhado, tão operativo… está tudo feito, é só fazer a correspondência. É preciso decidir fazer e não é impossível”, argumenta Sofia Nascimento Rodrigues.

Para Maria Antónia, este é o momento certo. “Era importante ter professores portugueses formados em Portugal e reconhecer as formações que são feitas no estrangeiro. Se queremos ter escolas Montessori, também vamos precisar de uma para adultos, será preciso formação massiva para poder alimentar as escolas.”

Por enquanto, o que existe em Portugal é uma formação curta, de duas semanas, de assistente de guia, e que não permite a quem faz o curso ser responsável por uma sala de aula. Para isso, segundo os critérios da AMI, é preciso ter o curso de guia — o mais próximo geograficamente que existe é lecionado em Espanha.

O Cubo do Binómio é um puzzle tridimensional: é preciso encaixar as peças de acordo com o seu tamanho e a cor

DR

Uma escola portuguesa, com certeza

Se tudo correr de feição, e forem ultrapassados todos os obstáculos, daqui a dois anos letivos a primeira escola portuguesa Montessori poderá estar a abrir portas. O que esperar desse espaço? Muito movimento e liberdade dos alunos, um currículo que respeita os interesses da criança, aprendizagem a ser feita através dos materiais criados pela pedagoga italiana e não através de manuais escolares. Haverá limites e regras impostas pelo adulto, mas que pretendem orientar e dar segurança, ordem e confiança à criança e não reprimi-la.

“Uma criança até aos 6 anos tem movimento numa creche, quando entra para o 1.º ano tem de estar sentada numa secretária. O que acontecerá numa escola Montessori do 1.º ciclo é que ela continuará a ter liberdade de movimentos e o ensino terá por base o seu interesse e a sua motivação. Por exemplo, se a criança no 1.º ano tiver interesse por letras fará o seu percurso pelas letras e não necessariamente pelos números”, esclarece Rosana, independentemente do que diga o currículo.

O objetivo é seguir a criança dentro do que é o seu interesse, respeitando o seu ritmo e a sua aprendizagem. E um ensino deste género não põe em causa as metas curriculares? “Não  queremos que ponha em risco. O ensino é holístico, há aprendizagens que vão conjugando a matemática, o português, o estudo do meio. E se não aprender no 1.º aprenderá no 2.º ano. Mais do que anos estáticos queremos ciclos que se abrem e que se fecham, em que a criança vai aprender de outra forma e vai chegar aos objetivos na mesma, mais tarde ou mais cedo.”

Manuais escolares é material que Rosana Fernandes acredita que não será necessário nas salas de aulas já que o material Montessori — “que promove as texturas, apela aos sentidos, sempre com uma carga lúdica”— será mais do que suficiente para conseguir fazer evoluir o conhecimento.

Por isso mesmo, quando estiverem a aprender a ler e a escrever as crianças irão usar uma série de recursos que a italiana desenvolveu há quase 100 anos com o objetivo de tornar a aprendizagem mais concreta. Quando começa a ser introduzida a linguagem, por exemplo, são apresentadas placas de madeira com as letras em lixa — as vogais são azuis, as consoantes cor-de-rosa — que permitem que a criança  perceba através do tacto como se desenha todo o alfabeto. A divisão por cores não é inocente e também vai criando no aluno a ideia de que há duas famílias diferentes de letras.

“Na sala de aula Montessori não há papel e caneta, que é abstrato. A escrita é sensorial: primeiro as letras de lixa, depois escrever na areia. A seguir aparece o alfabeto móvel em que, literalmente, as crianças têm as letras nas mãos. Há também a associação de objetos a palavras tridimensionais: temos o objeto em si e temos um cartão com o nome do objeto escrito. Só depois se passa ao abstrato. Para aprender a fazer contas, temos as pérolas e elas enchem-lhes as mãos. Com o material dourado, elas sabem que uma conta é 1, uma barra é 10, uma placa é 100. O mil é o cubo, e podem pegar nele e sentir o peso. Isto foi pensado e repensado”, explica Maria Antónia Boyen.

“Educar é estabelecer limites. Às vezes, os pais procuram a ausência de limites e não é isso que encontram aqui. Há muitas regras em Montessori e o perfil da guia é de enorme austeridade. Mas é possível disciplinar de forma serena, sem gritos e sem castigos.”
Sofia Nascimento Rodrigues, Atelier Montessori, Lisboa

Tudo tem a ver como a forma como o cérebro humano funciona, acrescenta Sofia Nascimento Rodrigues. “Tem a ver com as ativações do nosso cérebro que se ativam muito mais se podermos começar pelas mãos. Esta ligação mão/cérebro foi percebida pela Maria Montessori e a ideia do tridimensional existe para todas as áreas de saber.”

Outra diferença entre uma sala de aulas tradicional, será a heterogeneidade de idades, já que as crianças dos 6 aos 9 anos estão juntas, explica Sofia. “Maria Montessori encontrou características comuns durante estes anos de desenvolvimento e encontrou benefícios nas diferenças que existem. Seguir a criança é o que explica o sucesso desta pedagogia. Quando se impõe os temas, os tempos, as formas e não se dá espaço à individualidade e à motivação interior tudo começa a ser um confronto. Temos de confiar mais na criança. Elas mostram-nos o caminho. E surpreendem-nos.”

Seguir a criança, continua Sofia Nascimento Rodrigues, não é sinónimo de não estabelecer limites: “Educar é estabelecer limites. Às vezes, os pais procuram a ausência de limites e não é isso que encontram aqui. Há muitas regras em Montessori e o perfil da guia é de enorme austeridade. Mas é possível disciplinar de forma serena, sem gritos e sem castigos.”

O truque está na comunicação, conta. O tom de voz tranquilo e baixo comum a todas as guias é um deles, assim como as palavras que se usam e o respeito que demonstram ter pelas crianças. “É importante a clareza com que se diz uma regra. Por vezes as crianças não cumprem apenas porque não perceberam. É preciso saber comunicar com poucas palavras, com tom baixo e tranquilo. E isto mimetiza-se.”

O tom de voz, garante Sofia, faz diferença na vida das crianças. “Aqui não há castigos, há consequências e isto não é uma questão de semântica. São consequências lógicas e reais, tem de haver relação causal, um nexo, com o que aconteceu. A criança não vai para o canto da sala porque tirou o material ao amigo. Há uma mesa da paz e há técnicas de resolução de conflitos. Se estiver a bater com o material, posso dizer-lhe: ‘Esse barulho está a perturbar os teus colegas. Se calhar vou tirar-to ou será que consegues não fazer barulho? Se voltares a fazê-lo, vou mesmo ter de tirar até seres capaz de não fazer barulho.’ Muitos problemas das famílias tem a ver com não se saber estabelecer limites sem ser pelo autoritarismo. Nós educamos como fomos educados. O adulto também precisa de ser compreendido.”

O silêncio é a diferença que mais espanta os pais e educadores que visitam o Atelier Montessori e a última grande diferença que se encontrará entre uma escola tradicional e uma que segue este método, seja portuguesa ou internacional, conclui Sofia Nascimento Rodrigues: “As escolas vêm aqui ver o silêncio — e ele não é artificial, é das crianças concentradas, acontece naturalmente. O ensino tradicional é muito responsável pelos défices de atenção dos alunos porque impõe uma certa atenção e não cuida dela enquanto competência natural da criança. A criança, se puder escolher no que se quer concentrar, se tiver um ambiente propício à concentração, concentra-se. E através da concentração vem o silêncio.”

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