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De olhos colados ao chão, Márcia Bernardo ouviu a leitura do acórdão sem olhar para o juiz uma única vez. Mesmo quando o magistrado reprovava a forma como viu uma menina de nove anos, sua enteada, ser morta à sua frente, pelo próprio pai e na sua própria casa, sem nada fazer para o evitar. E como ajudou a esconder o corpo de Valentina Bernardo numa zona de mato e colaborou na simulação do seu desaparecimento.
Em total contraste, Sandro Bernardo não desviou o olhar do juiz. Não desviou o olhar na parte inicial, quando o magistrado começava por elencar a “brutalidade” das agressões que infligiu na filha para a levar a revelar os supostos abusos sexuais de que estaria a ser alvo, “esquecendo-se que seria ela a vítima”, apontou o juiz-presidente; nem na parte final, quando o tribunal anunciou que iria aplicar-lhe a pena máxima prevista em Portugal.
O coletivo de juízes concluiu que os dois arguidos estão unidos pelo crime que cometeram, mas separados pelo papel que cada um desempenhou na morte de Valentina, em maio do ano passado, na Atouguia da Baleia. “Sandro agiu por ação e Márcia por omissão”, considerou o juiz. O pai da criança foi condenado por homicídio qualificado, por ser o responsável pelas agressões que levaram à sua morte. A madrasta foi condenada em coautoria pelo mesmo crime, mas por nada ter feito para impedir a violência e, consequentemente, a sua morte.
Mas também os separa a postura que ambos tiveram ao longo do julgamento: Márcia Bernardo confessou a sua intervenção no crime e mostrou-se arrependida; pelo contrário, Sandro Bernardo não só expressou, nas palavras do tribunal, uma “total ausência de autocensura”, como apresentou versões contraditórias, com o objetivo de se “livrar da responsabilidade pela morte da filha”.
Agora, separa-os também a pena de prisão que lhes foi aplicada pelo Tribunal de Leiria. Sandro Bernardo foi condenado a 25 anos de prisão por homicídio qualificado, profanação de cadáver, abuso e simulação de perigo e violência doméstica. A madrasta de Valentina foi condenada a 18 anos e nove meses de prisão, pelos mesmos crimes, exceto o de violência doméstica.
Pai de Valentina condenado à pena máxima. Madrasta condenada a 18 anos e nove meses
As primeiras agressões de Sandro, cinco dias antes da morte, e o comentário da madrasta que provocou mais violência
Valentina estava há um mês e meio na casa do pai na Atouguia da Baleia quando foi agredida pela primeira vez, concluiu o tribunal. Embora vivesse com a mãe no Bombarral, tinha ido para lá “passar uma temporada”, já que estava sem aulas devido à pandemia da Covid-19. No dia 1 de maio, pela manhã, Sandro confrontou a filha com uns “papelinhos” de natureza sexual que teria trocado com colegas de escola. Depois de Valentina ter admitido ao pai que tinha sido ela a escrever os tais “papelinhos”, o arguido ameaçou-a com violência: “Colocou uma colher de pau em cima da mesa da cozinha e disse à filha que batia com ela se a mesma não falasse”. Depois, deu-lhe “diversas palmadas, com muita força”, nas pernas.
Sandro acabou por ir para o seu quarto, deixando Valentina a fazer os trabalhos da escola na cozinha, com a madrasta. Segundo o acórdão, Márcia não agrediu a criança — nem neste dia, nem noutro qualquer —, mas voltou a chamar o marido porque a menina “tinha algo mais para lhe dizer” — o que acabaria por levar a mais violência. É que Valentina terá contado aí que o seu padrinho “lhe dava presentes” e que tinha práticas sexuais com ela — embora a autópsia não tenha revelado a existência de contacto ou abusos sexuais. Seguiram-se novas agressões: Sandro deu várias palmadas à filha, nas pernas, “com muita força” e “bateu-lhe nas mãos com a colher de pau”.
Asfixia, pancadas na cabeça e uma queimadura. Sandro fez “tudo isto” na presença de Márcia
Cinco dias mais tarde, pelas 9h00 da manhã de 6 de maio, Sandro quis voltar a confrontar a filha sobre o mesmo assunto. Chamou-a, levou-a para a casa de banho, despiu-a e colocou-a na banheira, deixando-a apenas com uma t-shirt vestida. Para o tribunal, “o arguido agiu com o propósito de levar a filha revelar os supostos abusos sexuais, esquecendo-se que seria ela a vítima”. Os juízes concluíram que o pai da criança fez “tudo isto” que se seguiu na presença de Márcia — que, mais uma vez, nada fez para impedir o que aí vinha.
Primeiro, começou por ameaçá-la: sabia que a filha “detestava água quente” e, por isso, disse-lhe que, se não lhe contasse tudo, deitava-lhe água quente para cima. Uma ameaça que viria a concretizar face ao silêncio da criança: pegou no chuveiro, “colocou-lhe água a ferver na região genital e inguinal”, queimando-a. Só parou quando a criança “implorou para ele parar”.
Mas a criança continuava em silêncio sobre os supostos abusos. E as agressões intensificaram-se. Sandro começou a dar-lhe “vários murros” na cara, tórax, costas e pernas e acabou mesmo por “apertar o pescoço” à criança. A menina começou a gritar, provocando no pai uma reação pior: Sandro deu-lhe uma pancada na cabeça com tanta força que lhe “provocou uma hemorragia interna” e fez com que Valentina “caísse na banheira”. “Tudo na presença da arguida”, como evidencia o acórdão que condenou os dois arguidos.
Valentina foi deixada no sofá a morrer. Madrasta “nada fez para chamar ajuda e socorrer a menor”
Caída devido à pancada, Valentina foi levantada da banheira por Sandro, mas começou a “abrir muito os olhos”, a fletir “um pouco as pernas, começando a desfalecer” e a ter convulsões. O pai ainda lhe deu bofetadas na cara, para tentar que reagisse, mas a menina não teve qualquer reação. Márcia percebeu que a enteada “tinha os olhos abertos e que estava a olhar fixamente para ela”, realça o acórdão. Mas também aqui nada fez para a tentar socorrer.
O casal optou por não chamar ajuda.Pegaram em Valentina e levaram-na para a cozinha. Depois de sete a oito minutos de convulsões, a criança acabou por ficar inanimada. Aqui, ambos perceberam que Valentina podia morrer. E optaram, mais uma vez, por não pedir ajuda: deixaram a criança no sofá até às 22h00 daquele dia — durante cerca de 13 horas. Durante o dia, Márcia foi várias vezes junto da enteada ver se ela ainda respirava. Numa delas, tapou-a com um cobertor. “Apesar disso, nada fez para chamar ajuda e socorrer a menor”, lembra o acórdão.
Aliás, Sandro e Márcia chegaram a sair de casa, ao longo do dia e por diversas vezes, para fazer compras. Numa dessas saídas, receberam uma chamada de Raúl — filho apenas de Márcia e, por isso, ‘irmão de criação’ de Valentina — a pedir-lhe que viesse para casa o mais rápido possível: Valentina tinha acabado de morrer.
Sandro levou o corpo da filha para o mato. Márcia ficou no carro à sua espera
A opção tomada foi a de esconder o cadáver da criança e encobrir os seus atos — o que fizeram só depois das 22h00, quando os três filhos dos arguidos já estavam a dormir. Foi Márcia quem foi buscar um pijama, que vestiu à criança com a ajuda de Sandro. Depois, o pai pegou no corpo da filha ao colo, saiu de casa e desceu as escadas.
A madrasta, que seguia à sua frente, abriu a porta de trás do carro para que Sandro pudesse ali colocar o corpo da filha. O arguido entrou no veículo, sentando-se no banco ao lado do condutor, e Márcia foi a conduzir. Fizeram um caminho de nove quilómetros e quatrocentos metros, desde a sua casa até uma floresta em Ferrel, onde viriam a deixar o cadáver. Lá chegados, a madrasta de Valentina permaneceu no carro. Foi Sandro quem saiu, pegou no corpo de Valentina ao colo e levou-o para o interior da floresta.
No dia seguinte participaram o desaparecimento da menina à polícia. As “exaustivas buscas” envolveram mais de 400 pessoas e duraram quatro dias, escreve a acusação — o que levou o tribunal a condená-los também a pagar uma indemnização de cerca de 1.785 euros ao Estado português, nomeadamente à GNR, devido aos “vários recursos humanos e materiais” que foram empenhados num falso desaparecimento.
A menor acabaria por ser encontrada quando o pai, já depois de a Polícia Judiciária ter suspeitas sobre a existência de um crime e da sua autoria, deu a indicação de onde estava o seu corpo. O caso gerou um “revolta social” que o tribunal reconheceu como natural “quando alguém mata”. E quando “alguém mata” a “própria filha”, o “sentimento de rejeição geral é ainda maior”. Ainda assim, reconhecendo que “a vida humana não tem preço”, nas palavras do juiz, “não cabe ao tribunal fazer eco dessa rejeição” e, por isso, afirmou: “Só resta esperar que os arguidos aproveitem o tempo, que é muito, para refletir”.