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A sala 4 do Jardim de Infância Santo Condestável é a que está mais cheia. Ainda assim, nunca teve tão poucas crianças. Não chegam a uma dezena — quando deveriam ser mais do dobro. Lá dentro, sentadas numa roda, contam o que fizeram no fim de semana. “Eu dormi no quarto da minha mana”, começa por contar uma delas, acrescentando logo de seguida: “Dormi com ela as férias todas”. A frase arranca uma gargalhada à educadora, que se apressa a explicar: “Não foram férias. Foi assim uma pausa especial por causa desse malandreco desse vírus”.
As crianças sabem que vírus é este que a educadora Ana Patrícia fala e que “há diferenças” neste regresso às aulas, mas “não têm muita noção do que se está a passar”, diz o diretor do Agrupamento de Escolas Manuel da Maia, em Lisboa, Luís Mocho. É também essa a perceção de Ana Patrícia: “Não têm noção do efeito do vírus. Tanto que vieram logo agarrar-me, quiseram logo afeto. Mas sabem que se passa alguma coisa. Assim que chegaram, perguntaram-me por que é que eu tinha máscara. Eu expliquei. Também expliquei por que é que a sala estava assim. Houve alguns que disseram logo: ‘É por causa do vírus não é?'”.
Sim, é por causa do vírus que mais de metade dos brinquedos das cinco salas do Jardim de Infância estão tapados com plásticos. Numa delas, onde à educadora só fazem companhia seis crianças, é exatamente sobre isso que se fala. “Agora percebo como é que uma professora do 1.º ciclo se sente. Não há brinquedos nenhuns”, desafaba em conversa com uma funcionária. Ou melhor, haver há, estão é camuflados. “Tivemos de tirar mais de metade do material das salas e tapar tudo, porque depois teria de ser tudo desinfetado se houvesse contacto com as crianças”, explica ao Observador a coordenadora da escola, Sandra Pinto.
Em casa desde 16 de março, data em que o Governo suspendeu todas as atividades letivas presenciais para travar a propragação da Covid-19, as crianças em idade pré-escolar regressaram esta segunda-feira às escolas — juntando-se às creches e escolas secundárias que retomaram atividades no dia 18 de maio. O regresso foi a meio-gás. O Jardim de Infância Santo Condestável tem 120 crianças divididas por cinco turmas. De manhã, enquanto observava a entrada das crianças na escola, a coordenadora Sandra Pinto adiantava ao Observador que eram esperados apenas 50 alunos. Mas, contas feitas, só 27 é que apareceram. “Muitos têm filhos mais velhos sem aulas, do 1.º ciclo, e acabaram por decidir ficar em casa”, explica. “Outros têm receio”, completa o diretor, desabafando: “Está calmíssimo para o que costuma estar”.
Não houve tanta correria, nem o barulho tão característico de um reencontro entre crianças que tiveram uma ‘espécie’ de um verão inteiro sem se ver — houve no entanto, aquelas que não resistiram a dar uma corrida para chegar rápido aos braços das funcionárias e educadoras e lhes dar um abraço.
As crianças que apareceram esta segunda-feira tiveram de ser deixadas à porta. “Os pais não passam da entrada. É um procedimento diferente. Muitas vezes iam até à sala levá-los”, explica o diretor do agrupamento. Uma delas não quer sequer sair do colo da mãe. Ainda assim, este regresso foi diferente até nisso. Não houve as birras habituais daqueles que, ao fim de umas longas férias de verão, não se querem despedir dos pais. “É diferente. Agora eles tiveram fechados em casa. Já estavam a sentir falta disto. E, em setembro, vêm das férias”, diz o diretor do agrupamento.
“Ai que este menino trouxe um boneco de casa”. Crianças trocam de sapatos antes de entrar no Jardim de Infância
Apesar de o vírus aparentemente lhes passar ao lado, as consequências que ele trouxe para o dia-a-dia das crianças do pré-escolar não deixam de lhes causar estranheza. Entram no corredores com os olhos perdidos, sem perceber bem por que razão têm mesmo de entrar só por aquela porta e sair só pela outra. Ou por que razão agora têm de entrar em fila, uma turma de cada vez, e não com a correria habitual. “Está feito um circuito de entradas e saídas e sempre com espaçamento”, explica a coordenadora. Também não percebem muito bem o porquê das máscaras. “Alguns tiveram mais receio da máscara. Tivemos de as tirar só para verem que éramos mesmo nós”, explica a educadora Ana Patrícia ao Observador. Ainda assim, o diretor do agrupamento está convencido que as crianças “facilmente” se “habituam” a estas regras, “como se fossem jogos”.
O Jardim de Infância Santo Condestável é uma das três escolas do Agrupamento Manuel da Maia que esta segunda-feira abriu portas. Todas elas têm também 1.º ciclo, mas para já regressou apenas o pré-escolar. Neste Dia da Criança, a reabertura foi feita de olhos postos naquilo que as escolas do ensino secundário e as creches já tinham feito. “Os procedimentos são muito parecidos”, diz o diretor Luís Mocho. São parecidos, mas nem tudo é igual. Além de desinfetar as mãos, ali, as crianças trocam de sapatos à entrada. “Têm uns sapatos para andar na escola. Quando chegam aqui, trocam, colocamos os que traziam de casa em sacos de plástico com o nome e dividimos por cestos, um de cada turma. Depois, no final do dia, faz-se o procedimento contrário. É para evitar que os sapatos que vêm lá de fora contaminem aqui o ambiente”, acrescenta ainda o responsável.
Além dos sapatos, mochilas e outros objetos vão para uma sala específica apelidada de “zona dos sujos”, explica a coordenadora, interrompida pelo grito de felicidade de uma criança que corre para os braços de uma funcionária. “Reconhece as pessoas mesmo de máscara”, nota o diretor, também interrompido pelo grito, desta vez, da funcionária. “Ai meu Deus. Ai que este menino trouxe um boneco de casa. Põe aqui depressa”, diz a funcionária, ao mesmo tempo que abre o bolso da sua bata para que a criança coloque ali o brinquedo. “Não podem, não podem trazer nada”, explica a coordenadora Sandra Pinto.
Apesar de o número de crianças ser bem reduzido, o “trabalho acaba por ser mais”, diz a coordenadora, para explicar o porquê de o número de funcionárias se manter o mesmo — uma para cada uma das cinco turmas, além das educadoras. “Temos muitas mais desinfeções a fazer. Cada vez que um vai à casa de banho, temos de desinfetar a casa de banho”, acrescenta.
E como manter o distanciamento? “É um bocadinho difícil com estas idades”, diz a coordenadora. E, na verdade, não é a prioridade. “Iria ser muito estranho [manter as crianças distantes umas das outras]. Seria uma aprendizagem ao contrário”, defende o diretor. Aquilo que se faz é desfasar os intervalos e a hora de almoço: assim, saem apenas duas turmas à vez e as educadoras tentam que cada grupo ocupe apenas uma zona no pátio — que antes juntavam 120 crianças e agora parece grande de mais. No final, uma funcionária desinfetada tudo o que é escorrega e outros brinquedos.
A PSP trouxe o Falco para lembrar as crianças de lavar as mãos
O Dia Mundial da Criança foi assinalado pelo regresso à escola, mas também pela visita do Falco, a mascote da Polícia de Segurança Pública (PSP). “O Comando Metropolitano de Lisboa quis assinalar o regresso às aulas, neste dia que coincidiu com o Dia da Criança. Além de ser o regresso, é o dia delas”, explica ao Observador o chefe João Cunha. Por volta das 11h00, as crianças foram surpreendidas pela sirene da polícia e pelo Falco, que fez uma série de perguntas:
— Sabem lavar bem as mãos?
— Sim!
— É para lavar poucas vezes ou muitas vezes?
— Muitas!
Foi uma visita curta e os agentes da PSP ficaram-se pelo pátio — a ideia era mesmo essa. “Não entramos dentro das instalações. Só mesmo quando é necessário“, aponta João Cunha, acrescentando: “Cumprindo todas as regras impostas pela DGS, fizemos esta atividade, dizendo que o Falco está presente e vai continuar a protegê-los e que protegeu a sua escola durante o período que estiveram em casa”.
Estas ações não são novidade. “Tentamos sempre ter ações preventivas de segurança rodoviária, situações de bullying, contacto com estranhos. Mas, nesta altura, também transmitimos as regras de segurança e higiene. E claro: outro objetivo é aproximar-nos da comunidade mais jovem para que no futuro tenham uma relação com a polícia mais próxima”, acrescenta.
Terminada a visita, o Falco foi-se embora não sem antes deixar uma mensagem: “Vamos ficar todos bem”.