Catarina é militante na clandestinidade de um partido político, está grávida e o seu companheiro foi preso por razões políticas. No dia 25 de Abril de 1974, ao escutar na rádio o que se passava no centro de Lisboa, dirige-se para o Largo do Carmo, onde se junta à multidão que ali se formara, junto dos militares. A ditadura que dura há mais de quatro décadas está por um fio. Entoam-se cânticos efusivos: “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!”. A partir deste dia, que se tornou na mais importante data da história recente do país, a vida de Catarina – como a de tantas outras pessoas – irá mudar decisivamente. E esta história anónima, que reflete também a condição de militante num partido até então ilegal, é apenas uma entre as várias retratadas em Sempre, a nova série de ficção da RTP, realizada por Manuel Pureza, que irá estrear-se em junho.
Ainda Catarina: é a personagem interpretada por Gabriela Barros e deambula por entre a multidão. Estamos no set de filmagens de uma cena focada precisamente nos acontecimentos que tiveram lugar no Largo da Carmo, na qual se cruzam algumas das personagens e das histórias que esta série de seis episódios vai contar. “No caso de Catarina, ela veio até aqui um pouco como toda a gente, sem saber exatamente o que se estava a passar, veio ter com alguns dos seus camaradas”, começa por contextualizar a atriz.
O momento é marcado por uma alegria contagiante e coletiva, onde um elenco de várias gerações dá corpo e voz às experiências vividas pelas pessoas que ali estiveram de facto, ansiosamente à espera que Marcello Caetano fosse deposto. “Cruzam-se aqui muitas memórias que ouvimos ao longo dos anos, de familiares e amigos, e continua a ser importante relembrar e contar algumas destas histórias comuns que também fazem a história da revolução”, acrescenta Gabriela Barros.
Ao contrário de outros retratos que já foram criados sobre a revolução portuguesa, a nova série foca-se no lado anónimo e nas vidas comuns que fizeram parte do acontecimento. “Esta é a data mais importante na história do país e a verdade é que ainda não se tinha feito uma ficção sobre aquilo que se passou, não assim. Por mais pozinhos que se façam nas recriações históricas, nunca tivemos uma série que falasse sobre as pessoas comuns e sentíamos que era importante saber como é que foi vivido este acontecimento para alguém que nos é semelhante”, explica o realizador. Os detalhes de época – desde logo o guarda-roupa, a chaimite à porta do quartel do Carmo e os cravos vermelhos – transportam-nos momentaneamente para aquele dia, mesmo que todas as caras sejam anónimas. Não caindo na tentação de a tornar uma série de cunho histórico, explica o realizador, Sempre foi uma carta branca para se ficcionar a partir dos factos reais.
“Permitiram-nos propor e confiaram na ideia. Temos esta noção de que o 25 de Abril foi feito apenas por militares e determinados heróis, como se fosse algo muito externo ao povo. Aqui optámos por esta tónica de falarmos das pessoas comuns”, salienta Manuel Pureza. Em cada um dos episódios conta-se então uma história fechada, mas as diferentes personagens vão aparecendo e vão cruzando-se entre si. Para chegar a este puzzle, foram recolhidos testemunhos e reunida uma equipa de consultores, na qual se inclui o fotógrafo Alfredo Cunha, o Coronel Nuno Andrade, o General Pezarat Correia, mas também o historiador Fernando Rosas, o professor e ex-deputado José Manuel Pureza e o investigador Miguel Cardina. Todo o material serviu depois para a composição dos guiões escritos por David Neto, Luís Filipe Borges e Luís Lobão.
Estudantes vingados, um padre revolucionário e um cantor de regresso a Portugal
Embora não haja figuras históricas presentes na narrativa, a série conta com a inspiração de várias pessoas reais que ajudam a moldar e a criar um enredo que é facilmente reconhecível ao espectador. No caso de Catarina, a personagem não se inspira numa só pessoa, mas nas muitas mulheres e homens que passaram anos na clandestinidade por motivos de militância política ou associativa. Mas há mais retratos-tipo a destacar. O ator Rui Pedro Silva, por seu lado, interpreta um jovem jornalista estagiário do Rádio Clube Português, que vai surgindo nos diferentes episódios. De gravador na mão, o intuito desta personagem é o de retratar aquilo que foi vivido pelos muitos profissionais da comunicação social que, ao longo daqueles dias e noites, foram dando conta da evolução dos acontecimentos.
“O Manuel é um jornalista muito jovem, que vai entrevistando pessoas e que sonha com um novo amanhã. Representa grande parte da população e é uma espécie de porta-voz, que relata o que sente com uma certa ingenuidade”, descreve o ator. Além desta personagem, há também três estudantes de direito, interpretados por Joana Borja (Juliana), João Arrais (Rodolfo) e David Esteves (Teotónio), que naquele dia se encontram no Carmo para celebrar a revolução, depois do acontecimento da morte de José Ribeiro Santos, assassinado pela PIDE, em 1972. “De alguma forma estamos a vingar essa morte com o culminar da revolução”, diz Joana Borja.
A série, dizem, foi também uma forma de conheceram algumas histórias que marcaram o país durante o Estado Novo e conhecerem a realidade que era vivida nas universidades portuguesas. “No nosso caso, ainda temos familiares vivos que nos puderam explicar e retratar aquilo que viveram durante o fascismo e a importância trágica do acontecimento da morte do Ribeiro Santos, que marca um pouco o início da revolução”, salienta João Arrais.
A juntar a estes retratos, está também um padre, interpretado por João Vicente, e que relembra os muitos católicos que também tomaram a sua posição contra o regime ditatorial. “O país era profundamente católico a nível político, mas também há este lado das muitas pessoas que lutaram pela liberdade”, sintetiza o ator. Recorda-se, por exemplo, a figura do padre Alberto Neto que se destacou como educador e pelo seu papel no movimento católico progressista contra a Guerra Colonial e a ditadura. “A religião foi importante no Estado Novo, mas há também muitos homens e mulheres que eram religiosos e que, mesmo nas suas contradições, fizeram parte desta mudança”, completa João Vicente, recordando os acontecimentos vividos na Capela do Rato, em 1972.
Do outro lado do Largo do Carmo encontra-se César, interpretado por Diogo Martins, um cantor, exilado em França, e que regressou a Portugal para viver a Revolução de Abril. “Ele representa a classe de artistas, não representa ninguém em concreto”, sublinha o ator, que partilha a sua narrativa episódica com São José, uma jovem mulher, feminista, interpretada por Rita Rocha Silva. São ambos, refletem os atores, retratos daqueles que tantas vezes foram censurados quanto perseguidos, não esquecendo o papel das artes, em especial da canção, que tiveram de igual forma um poder determinante na força coletiva que a revolução gerou junto de povo.
A madrugada que se esperava
Por entre a azáfama que se vive em mais um dia de filmagens (que se iniciaram em janeiro e que irão continuar até início de março), todos os detalhes importam, desde o som até à estética que vai emparelhar com os guiões dos episódios. A três mãos – cada guionista ficou com duas histórias –, desenvolveu-se uma série repleta de vidas que se encontram naquela madrugada do dia 25 de Abril, a mais esperada – parafraseando o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen. Foi essa junção de elementos que abriu caminho para a escrita, como explica Luís Lobão ao Observador.
“Quando iniciámos este processo, chegámos à conclusão que já estava tudo muito feito sobre os heróis de Abril e foi aí que pensámos em centrar as nossas atenções naquilo que foi a experiência das pessoas à volta deste dia”, relata. A série que teve como primeiro título ‘Dez Milhões de Histórias’ serve, completa Luís Filipe Borges, como uma forma de ajudar a preservar a memória, daí a importância de mantê-la factual. “Fomos fiéis à cronologia histórica e várias destas histórias são inspiradas em fontes reais, mas o que realmente importava era retratar um pouco da vida destas muitas personagens que aqui se encontram”.
Como forma também de celebrar os 50 anos do 25 de Abril, Manuel Pureza espera que as pessoas ao verem a série não se esqueçam da importância do acontecimento e no impacto que este evento histórico continua a ter na atualidade. “Quando nos esquecermos disto é grave, ao ponto de acharmos que não aconteceu, mas de facto aconteceu. Há pessoas vivas que foram torturadas e perseguidas e, por isso mesmo, não deixa de ser importante lembrarmo-nos que apesar de todos os defeitos, aquilo que conquistámos é o que nos permite estarmos a criar algo como esta série, que fala de liberdade”, conclui.
De regresso ao Carmo e a esta madrugada, “onde emergimos da noite e do silêncio”, as narrativas que compõem Sempre funcionam como eco para falar de uma revolução que, afinal de contas, encontrou nas ruas e nas vidas comuns um afeto coletivo que este é recordado e celebrado de forma especial.