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A 4 de Maio de 1821, uma tempestade abateu-se sobre a remota ilha de Santa Helena, um rochedo inóspito perdido no meio do Atlântico Sul, “arrancando pela raiz quase todas as árvores de Longwood”, a casa onde Napoleão vivia praticamente desde que chegara à ilha, em 1815. No dia 5, “aos onze minutos para as seis da tarde, entre o vendaval, a chuva e o tumulto das ondas, Napoleão entregou a Deus o mais poderoso sopro de vida que alguma vez animou a argila humana. As derradeiras palavras que saíram dos lábios do conquistador foram ‘Chefe… exército… chefe de exército’. O seu pensamento vagueava ainda no meio dos combates. Quando cerrou para sempre os olhos, a sua espada, que expirou com ele, estava deposta à sua esquerda, um crucifixo repousava sobre o seu peito: o símbolo de paz deposto sobre o coração de Napoleão acalmou as palpitações do seu coração, como um raio caído do céu amansa as vagas”.

O floreado relato que Chateaubriand faz da morte de Napoleão, em Mémoires d’outre-tombe (Memórias de além-túmulo), não é necessariamente fidedigno – Chateaubriand não estava em Longwood House em 1821 e as suas informações são, necessariamente, de segunda e terceira mão – mas revela claramente o intuito do autor de fazer de Napoleão um messias ou um herói, com o ribombar dos trovões a fornecer oportuno enquadramento para o desaparecimento de quem passara boa parte da vida envolto pelo fragor das batalhas.

Chateaubriand, que era um activo propagandista da fé cristã (daí a ênfase dada ao crucifixo na cena da morte) e um fervoroso adepto da monarquia Bourbon, fora, inesperadamente, convidado por Napoleão para desempenhar o cargo de secretário da legação francesa na Santa Sé (Napoleão há muito que se desligara da fé católica, mas, naquela altura, dava-lhe jeito o apoio da Igreja), mas demitira-se em 1804, em protesto por Napoleão ter feito executar um primo de Luís XVI, e tornara-se num seu aguerrido opositor, publicando um panfleto pró-Bourbon e anti-Napoleão e comparando este a Nero. Todavia, anos volvidos, sentiu-se compelido a celebrar Napoleão como um herói e a fazer dele uma figura “bigger than life”. A História tem algumas figuras controversas, mas talvez nenhuma iguala o poder de Napoleão para suscitar opiniões e sentimentos contraditórios, por vezes na mesma pessoa.

“O Primeiro-Cônsul atravessando os Alpes no Col du Grand-Saint-Bernard” (1800): Na qualidade de pintor oficial do imperador, Jacques-Louis David fez muitos retratos lisonjeiros de Napoleão, mas nenhum exibe uma aura heróica comparável à deste. As inscrições na rocha, com os nomes de Aníbal e Carlos Magno, equiparam Napoleão a dois outros caudilhos célebres que protagonizaram destemidas travessias dos Alpes

O caminho para o primeiro exílio

O exílio de Napoleão em Santa Helena foi o segundo que lhe foi imposto: antes, passara por um desterro, bem mais curto e suave, na ilha de Elba, a 20 quilómetros da costa italiana.

O caminho que levou Napoleão a Elba teve origem num erro de julgamento com analogias com o que Hitler cometeria 129 anos depois: em 1812, Napoleão tinha conseguido impor o seu poder praticamente sobre toda a Europa continental, mas não conseguira vergar a Grã-Bretanha, defendida pelo Canal da Mancha e pela poderosa Royal Navy. Reconhecendo-se incapaz de invadir as Ilhas Britânicas, decidiu sufocar o comércio britânico, através da imposição do Bloqueio Continental (que interditava a entrada de bens britânicos em território europeu), e abrir uma nova frente a leste, com a Rússia, atraiçoando a aliança que firmara com o czar Alexandre I. Também Hitler, após subjugar boa parte da Europa continental, concluíra não ser capaz de transpor o Canal da Mancha e decidira violar o pacto de não-agressão que firmara com a URSS. Como Stalin, também Alexandre I começou por ignorar as informações que davam conta da concentração de um vasto exército e de colossais depósitos de mantimentos e munições junto às fronteiras russas. E, tal como Hitler na fase inicial da Operação Barbarossa, também Napoleão se entusiasmou com a rapidez dos primeiros avanços em território russo.

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Napoleão contempla Moscovo em chamas, em Setembro de 1812. Quadro de 1841 por Adam Albrecht

Porém, a vantagem dos franceses (chamemos-lhe assim, embora mais de metade das tropas não proviessem de França mas dos seus aliados) em termos de iniciativa e de número de soldados (pelo menos na fase inicial) face aos russos cedo se dissipou, não só devido à vastidão do território russo e à dificuldade em manter linhas de abastecimento cada vez mais longas, como devido à estratégia russa de evitar combates decisivos e de, na sua retirada, não deixar atrás de si nada que permitisse a subsistência dos invasores. Ao contrário de Hitler, Napoleão conseguiu entrar em Moscovo (a 14 de Setembro), mas de nada lhe serviu, pois os russos tinham evacuado a cidade e tinham-lhe ateado fogo, para que os invasores não encontrasse nela abrigo nem mantimentos. Quando sobre o exército francês, já de si em situação precária, se abateu um Inverno invulgarmente rigoroso, o que parecia ser um avanço triunfal converteu-se numa estrondosa derrota do exército francês. Tendo atingido o ponto extremo da penetração em Moscovo, Napoleão viu-se obrigado a retroceder para o ponto de partida, com as suas tropas exaustas e enregeladas a serem constantemente fustigadas pelos russos. Dos 450.000 homens que tinham entrado na Rússia em Junho, apenas 40.000 chegaram ao rio Berezina (no que é hoje a Bielo-Rússia), em Novembro, e apenas 27.000 o conseguiram atravessar. Para trás, deixava 380.000 mortos e 100.000 prisioneiros.

“A retirada de Napoleão da Rússia” (1851), por Adolph Northen

O saldo calamitoso da campanha russa estimulou as outras potências europeias a quebrar as alianças com a França e a constituir uma nova coligação – a sexta, desde o início da Revolução Francesa – contra a França. Em Novembro de 1813, após ter infligido uma pesada derrota aos franceses, na Batalha de Leipzig, a Sexta Coligação propôs a Napoleão condições assaz generosas: a França retomaria as “fronteiras naturais”, o que lhe concedia, ainda assim, generosas fatias de conquistas (Bélgica, Sabóia e Renânia), e Napoleão manter-se-ia como seu imperador. Napoleão, convencido de que o seu génio militar acabaria por prevalecer, protelou a resposta e a Sexta Coligação, com a paciência esgotada, apresentou uma nova proposta de paz: agora a França teria de recuar para as fronteiras pré-conflito e Napoleão teria de abdicar.

Napoleão ofereceu feroz resistência e ainda conseguiu averbar algumas vitórias no campo de batalha, mas a desproporção de forças era grande e o cerco dos exércitos da Coligação ao território francês foi apertando-se. Paris capitulou a 30 de Março de 1814, o exército russo entrou na capital e a 1 de Abril o czar Alexandre I discursou perante o Senado francês, pressionando-o para que depusesse Napoleão. A 2 de Abril, o senado cedeu e publicou o “Decreto de demissão do imperador”, ao mesmo tempo que convidava o Conde da Provença, irmão de Luís XVI, a assumir o trono, sob o nome de Luís XVIII.

Versão francesa de um cartoon de 1814 por George Cruikshank: Napoleão é sovado e esquartejado (no chão estão os membros amputados do seu império: Portugal, Espanha, Itália, Suíça…) pelos elementos da Sexta Coligação, enquanto a Holanda (extremo esquerdo, ao fundo) assiste com manifesto regozijo

A quem estranhe que um imperador seja demitido por decreto do Senado, há que esclarecer que, embora se tivesse feito coroar imperador em 1804 (com toda a pompa), Napoleão, que era um mestre do ardil e da manipulação, engendrara um subterfúgio legal que fazia com que a França continuasse, formalmente, a ser uma República. Assim, não podia ser acusado de ter traído e subvertido os princípios republicanos por que lutara no início da sua carreira – Napoleão não era “imperador de França” mas “imperador dos franceses”.

A 11 de Abril, os representantes da França, Áustria, Rússia e Prússia celebraram o Tratado de Fontainebleau, formalizando a deposição do “imperador dos franceses” e estabelecendo as condições do seu exílio na Ilha de Elba.

“O adeus de Napoleão à Guarda Imperial, no Pátio do Cavalo Branco, no Palácio de Fontainebleau, a 20 de Abril de 1814”, por Antoine Alphonse Montfort

O exílio em Elba

Atendendo à destruição que Napoleão semeara e às humilhações que infligira aos seus adversários, o Tratado de Fontainebleau era assaz benevolente: Napoleão e a sua esposa, Maria Luísa, conservariam os títulos de imperador e imperatriz, o Estado francês pagaria a Napoleão 2 milhões de francos por ano (como compensação por tomar posse da das propriedades que Napoleão acumulara durante os seus anos no poder, cujo valor estava estimado em 160 milhões), era-lhe conferida soberania sobre a ilha de Elba, que teria o estatuto de principado independente, e teria direito a levar consigo 600 dos seus guardas imperiais.

Napoleão, que, num primeiro momento perante a derrota, parece ter tentado o suicídio (com veneno) por duas vezes, a 7 e a 12 de Abril, acabou por resignar-se com o desmoronamento dos seus sonhos megalómanos: a 13 de Abril assinou o tratado e encaminhou-se para o exílio, onde iria reinar não sobre a Europa e 70 milhões de pessoas, mas sobre uma ilha de 229 Km2 e 12.000 habitantes.

A Palazzina dei Mulini, em Portoferraio, foi a principal residência de Napoleão durante a sua estadia na ilha de Elba

Desembarcou em Elba a 30 de Maio de 1814 e nos primeiros meses ocupou-se a instalar uma corte de uma dimensão e sumptuosidade desproporcionadas em relação à realidade local e em reorganizar o seu micro-reino, imiscuindo-se nos mais variados assuntos (hoje classificaríamos a sua actuação como “micromanagement”). Não tardou a fartar-se deste papel e a fechar-se no palacete em Portoferraio, a capital do principado, onde começou a alimentar a ideia de regressar ao poder em França. a verdade é que a conjuntura era favorável, já que os reinstalados Bourbon davam mostras de uma inépcia e de uma arrogância que faziam medrar o descontentamento em todos os estratos da sociedade e em todos os ramos de actividade, ao mesmo tempo que no Congresso de Viena, convocado para redesenhar a Europa pós-napoleónica, os aliados da Sexta Coligação se envolviam em azedas disputas.

Cartoon por George Cruikshank, publicado a 12 de Maio de 1814: O demónio tenta Napoleão, que está descorçoado com a pífia realidade do exílio em Elba, com a ideia do suicídio: “Se ainda vos resta uma centelha de coragem, tomai isto”. Napoleão: “Talvez o faça, se retirardes a pederneira”

No final de 1814, Napoleão também tinha razões para se inquietar no plano financeiro: o dinheiro que tinha trazido consigo tinha-se esgotado e o Estado francês recusava-se a pagar os 2 milhões de francos acordados, pelo que o imperador se via sem meios para pagar o seu pequeno exército pessoal. Não menos preocupantes para Napoleão eram os rumores de que a maioria das potências da Coligação veriam com bons olhos o seu afastamento para um local de exílio mais remoto. Joseph Fouché, que, em tempos fora um apoiante de Napoleão e desempenhara cargos proeminentes no seu governo mas fora lesto a mudar de campo quando percebera que a sua queda era inevitável, advertia que, em termos de segurança da Europa, Napoleão em Elba representava o mesmo que o Vesúvio para Nápoles; pelo seu lado, os Bourbon sugeriram à Grã-Bretanha que os Açores seriam um exílio mais seguro. Na verdade, nem os britânicos nem austríacos eram a favor da solução Elba, que tinha sido imposta pelo czar Alexandre I, e é possível que os primeiros tenham, deliberadamente, afrouxado a vigilância naval que deveria rodear Elba, de forma a incitar Napoleão a infringir as regras estipuladas para o seu exílio e a convencer Alexandre I a desterrá-lo para um local inacessível.

26 de Fevereiro de 1815, Elba: Napoleão embarca rumo a França. Quadro por Joseph Beaume, 1836

Os Cem Dias

Quer o relaxamento da vigilância naval britânica tenha sido deliberado ou não, o que é certo é que, a 26 de Fevereiro de 1815, Napoleão se esgueirou rumo a França, no brigue Inconstant, acompanhado por um milhar de soldados. Se o plano dos britânicos era deixar fugir Napoleão para o recapturar de imediato e remetê-lo para uma ilha distante, só pode dizer-se que subestimaram tragicamente as capacidades do corso.

A 1 de Março, Napoleão desembarcou em Golfe-Juan, perto de Antibes, e logo se pôs a caminho de Paris, tendo o cuidado de evitar as cidades que sabia terem simpatia pelos Bourbon. À partida, anunciou aos seus soldados que tencionava entrar em Paris dentro de 20 dias e sem disparar um tiro, uma proclamação aparentemente lunática, uma vez que a distância até à capital era grande e o seu contingente era minúsculo. Porém, o carisma, o destemor e a capacidade persuasiva de Napoleão, aliados a alguma sorte, à insatisfação e desorientação do exército francês e à volubilidade das massas, fizeram com que as guarnições das cidades por onde passava e as unidades enviadas pelos Bourbon para lhe cortar o passo se juntassem a ele, engrossando progressivamente o seu exército.

A reacção de França à marcha de Napoleão rumo a Paris é espelhada pelas sucessivas manchetes do jornal parisiense Le Moniteur:

O antropófago saiu do seu covil

O ogre corso desembarcou em Golfe-Juan

O tigre foi visto em Gap. Avançam tropas de todos os lados para deter a sua marcha. Terminará a sua miserável aventura como um delinquente nas montanhas

O monstro dormiu em Grenoble

O tirano passou por Lyon. Todos estão aterrorizados pelo seu aparecimento

O usurpador foi avistado a 60 léguas da capital

Bonaparte avança em marcha forçada, mas nunca entrará em Paris

Napoleão chegará amanhã às muralhas de Paris

O imperador chegou a Fontainebleau

Ontem à tarde, Sua Majestade Imperial fez a sua entrada nas Tuileries, rodeado pelos seus fiéis súbditos

Napoleão é aclamado pelo 5.º Regimento, perto de Grenoble, a 7 de Março de 1815: Quadro de 1818 por Charles de Steuben

O vaticínio de Napoleão cumpriu-se: a 20 de Março, após uma marcha de 20 dias (que os bonapartistas baptizariam como “O Voo da Águia”), entrou, sem qualquer derramamento de sangue, em Paris, de onde Luís XVIII fugira precipitadamente na noite anterior, procurando refúgio na Bélgica. Em Viena, as potências europeias, cujo Congresso ainda não fora dissolvido, não ficaram tranquilizadas pelas garantias de Napoleão de que respeitaria os tratados de paz: declararam que o imperador estava “fora da lei das nações” e começaram imediatamente a reunir tropas para lhe fazer frente, dando início à Sétima Coligação.

O desfecho destas movimentações é bem conhecido: após algumas escaramuças, os exércitos comandados por Napoleão e pelos seus inimigos defrontaram-se, a 18 de Junho de 1815, em Waterloo, na Bélgica e, após a sorte das armas ter vacilado durante algumas horas, acabou por cair para o lado da Sétima Coligação.

Napoleão dirige-se aos soldados da Guarda que irão tentar uma derradeira carga contra o centro da formação inimiga, em Waterloo

É possível que o “antigo” Napoleão fosse capaz de vencer mais esta batalha, mas o imperador cometeu vários erros de julgamento fatais na sua breve campanha em território belga, alguns deles no próprio dia da Batalha de Waterloo. Mesmo após a derrota, talvez o “antigo” Napoleão tivesse o génio e a tenacidade necessários para reagrupar as tropas e suster o avanço inimigo, mas os testemunhos contemporâneos dão a ver um homem abatido, atormentado pela privação de sono e por problemas de saúde e indeciso sobre os passos a tomar, enquanto a sua entourage o bombardeava com opiniões e conselhos contraditórios.

Acabou por regressar a Paris e tentar agir dentro do quadro legal e constitucional, mas, perante a perda do apoio do povo e do governo, não tardou a perceber que cometera mais um erro e se colocara num beco sem saída. A Prússia fez saber que, pela sua parte, não haveria um segundo exílio: se Napoleão caísse na suas mãos, seria fuzilado. Napoleão decidiu então abdicar – o que fez a 22 de Julho –  e buscar refúgio nos EUA. Para esse efeito, requisitou duas fragatas, que o deveriam aguardar no porto de Rochefort, mas as hesitações de Napoleão e os conflitos e tensões entre os membros do Governo, que, face à aproximação dos exércitos europeus, não queriam tomar medidas que os comprometessem, foram adiando a fuga. Quando os navios foram disponibilizados e o imperador chegou a Rochefort, já a Royal Navy, alertada para as intenções de Napoleão pelo traiçoeiro Joseph Fouché, que assumira, entretanto, a direcção do governo provisório, tinha estabelecido um bloqueio ao largo do porto francês.

Durante alguns dias, manteve-se, no entanto, a possibilidade de iludir o bloqueio naval britânico e demandar os EUA (vários estratagemas foram ponderados para esse efeito), bem como a possibilidade, bem mais remota, de uma reviravolta política dar ensejo a que regressasse a Paris e reassumisse o poder. Assim, Napoleão passou as duas primeiras semanas de Julho em Rochefort, a remoer alternativas e a ouvir conselhos, súplicas e planos contraditórios (entre o sensato e o desvairado) dos seus conselheiros e familiares. A excruciante indecisão desfez-se, finalmente, a 15 de Julho, quando Napoleão se resolveu a render-se aos britânicos, mais precisamente ao comandante Frederick Maitland, do HMS Bellerophon, que comandava o bloqueio naval.

Napoleão a bordo do HMS Bellerophon (1815), por Charles Lock Eastlake

Entretanto, a 8 de Julho, Luís XVIII regressara a Paris, cem dias após a sua partida precipitada das Tuileries – a expressão “Les Cent-Jours”, originalmente aplicada à ausência de Luís XVIII (e, ainda assim, com falta de rigor, pois esta tinha durado 110 dias), acabou, equivocamente, por designar o episódio do efémero retorno de Napoleão ao poder após o exílio em Elba.

A caminho de Santa Helena

Tudo indica que o comandante Maitland, motivado pela fama que lhe seria conferida por aceitar a rendição de Napoleão, terá induzido este em erro quanto às condições da rendição, apresentando-as como bem mais favoráveis do que aquelas que o Governo britânico estava determinado a impor. A verdade é que a benevolência para com Napoleão que as potências europeias tinham deixado expressa no Tratado de Fontainebleau se esgotara e os britânicos, em particular, estavam furiosos, não só com a fuga de Elba, como com as tremendas despesas em que tinham incorrido durante os Cem Dias, pois tinham sido eles a custear as operações militares dos seus aliados russos, prussianos e austríacos. Pelo seu lado, Napoleão, como monstro narcísico que era, parecia não ter consciência do sofrimento, morte e despesas que as suas aventuras tinham custado, nem ao ódio à sua pessoa que alastrara pela Europa, pelo que esperava ser tratado com toda a deferência – assim, ficou muito agastado quando, ao chegar a Plymouth, foi informado que não seria tratado como imperador e iria auferir uma remuneração correspondente a um general a meio soldo.

Plymouth, Agosto de 1815: Centenas de curiosos em pequenos barcos afluem em torno do HMS Belerophon (ao centro), na esperança de avistarem o “Ogre Corso” no seu passeio higiénico pelo convés, que tinha lugar sempre pelas 6:30 da manhã. Quadro por John James Chalon, 1817

Do ponto de vista estritamente formal, a situação de Napoleão era indefinida, mas a animosidade contra ele pela parte da Grã-Bretanha e seus aliados era tão forte que não iria deixar-se atrapalhar por minudências legais e a 31 de Julho Napoleão foi oficialmente informado de decisão de exilá-lo em Santa Helena até ao fim dos seus dias.

Esta ilha no Atlântico Sul era a melhor escolha possível para remeter um ex-monarca ao olvido: é um rochedo vulcânico com 16 quilómetros por oito, a mais de 2000 quilómetros da costa africana (o porto mais próximo é Moçâmedes, em Angola), e as ilhas mais próximas – também elas em mãos britânicas – são Ascensão, 1300 quilómetros a noroeste, e Tristão da Cunha, 2400 quilómetros a sul.

Localização de Santa Helena

A ilha fora descoberta por navegadores portugueses (ou por um galego ao serviço da coroa portuguesa) na rota das Índias, algures no início do século XVI. A incerteza resulta de as notícias de achamento não serem claras e propiciarem equívocos entre Santa Helena, Ascensão e Tristão da Cunha – a verdade é que Santa Helena era tão insignificante que nenhum navegador estaria especialmente empenhado em reclamar primazia. É provável que a descoberta da ilha, ou, pelo menos, o seu baptismo, tenha ocorrido num dia 3 de Maio, uma vez que é nesta data que o calendário litúrgico celebra o achamento dos restos da Vera Cruz de Cristo por Santa Helena de Constantinopla (mãe do imperador Constantino).

A ilha era (e é) tão inóspita que, durante muito tempo, apenas foi usada como ponto de aguada pelos navios portugueses e holandeses na rota do Cabo e não teve ocupação humana significativa. Só a partir de 1657, quando Oliver Cromwell concessionou a ilha à Companhia das Índias Orientais, é que conheceu algum desenvolvimento, acabando por converter-se num importante porto de reabastecimento dos navios daquela companhia.

Apesar de a ilha se situar nos trópicos e ter clima ameno, não possui (nem possuía já, no início do século XIX) o coberto vegetal luxuriante das suas congéneres: a maioria da superfície corresponde a rocha vulcânica, presumindo-se que o coberto vegetal original tenha sido quase completamente destruído por acção do homem e dos animais por ele introduzidos, o que aliado à topografia extremamente acidentada e à exposição aos fortes ventos usuais nos mares aquelas latitudes, terá causado uma erosão intensa. Não é, pois de estranhar, que, na véspera da chegada de Napoleão, a ilha apenas contasse com cerca de 3000 habitantes, e que esse número, após mais de dois séculos (e a entrada em funcionamento de um aeroporto, em 2017), não chegue a 5000.

Todavia, não fora apenas o isolamento geográfico a pesar na escolha de Santa Helena: o seu litoral é constituído por falésias a pique, de 200 a 300 metros de altura, permitindo apenas três locais de desembarque em todo o seu perímetro – no mais favorável deles foi instalada a capital, Jamestown, uma vilória entalada num vale aflitivamente exíguo, entre escarpas ameaçadoras – o que dificultava seriamente qualquer tentativa de evasão (ou invasão). De qualquer modo, o Governo britânico não confiava apenas na geografia e na topografia para manter Napoleão confinado: cerca de 2200 soldados e dois navios foram destacados para vigiar permanentemente a ilha.

Jamestown, c.1800

“Exijo a liberdade ou um carrasco”

A 14 de Outubro de 1815, lançou âncora no porto de Jamestown o HMS Northumberland, transportando Napoleão e comandado pelo almirante George Cockburn, que assumiria, provisoriamente, o cargo de governador e de “carcereiro” do ex-imperador. Após ter examinado longamente a costa com o seu óculo, em silêncio, Napoleão declarou: “Não parece ser um lugar aprazível para se viver. Mais valia ter ficado no Egipto. Por esta altura seria o imperador de todo o Oriente”.

Mais do que exprimir o desapontamento perante as condições do seu “cárcere”, a frase é reveladora da personalidade desvairadamente egomaníaca, presunçosa e mitómana de Napoleão: a referência ao Egipto alude à campanha que desenvolveu neste país em 1798-1801. As operações no Egipto e na Síria, cujo início foi propagandeado com estardalhaço, foram um fiasco e Napoleão acabou por, perante o desmoronar das suas ambições (que, efectivamente, comportavam a criação de um Império Francês no Oriente, estendendo-se até à Índia, emulando as conquistas de Alexandre da Macedónia), regressar o mais discretamente possível a França, abandonando os seus soldados (a maior parte acabaria por perecer às mãos dos turcos ou sucumbir à doença). Todavia, sendo um monstro de vaidade e um hábil manipulador, Napoleão sempre “vendeu” a campanha do Egipto como um sucesso retumbante, ocultando os aspectos menos favoráveis ou atribuindo-os à (alegada) inépcia e falta de coragem do general Jean-Baptiste Kleber, que ficara a comandar os destroços da força expedicionária francesa. Como é frequente que os narcisistas patológicos acabem por crer nas suas próprias mentiras, é possível que, 16 anos depois de ter fugido do Egipto com o rabo entre as pernas, Napoleão acreditasse sinceramente que estivera na iminência de construir um império oriental similar ao de Alexandre e que apenas a incompetência e cobardia de alguns dos seus subordinados o impedira.

Frente à desoladora visão de Santa Helena, talvez Napoleão tenha percebido, finalmente, a tacanha e lúgubre vida que estava condenado e quão distante esta estava dos sonhos megalómanos que alimentara – mas, sendo incapaz de admitir, nem perante si nem perante os outros, tal fracasso, refugiou-se na bazófia de um “império Oriental” que nunca estivera perto de conquistar.

Vista de Jamestown, numa gravura publicada no Monde Ilustrée em 1858

Se o micro-principado de Elba parecera enfadonho a Napoleão, Santa Helena só poderia exasperá-lo ou mergulhá-lo no torpor. Uma das mudanças de vulto em relação ao primeiro exílio foi que a criadagem ao seu serviço foi reduzida a 12 elementos e a “corte” a quatro elementos (dois deles acompanhados pelas respectivas esposas e um deles por um filho adolescente), a que se somava um médico da Royal Navy, o Dr. Barry O’Meara, que fora cirurgião no HMS Bellerophon. O que é extraordinário é que sete elementos desta entourage de 16 redigiram memórias sobre a vida do ex-imperador em Santa Helena, o que proporciona aos historiadores matéria-prima abundante (ainda que de fiabilidade duvidosa) e mostra o fascínio que Napoleão ainda exercia.

Como Napoleão chegara quase em simultâneo com a notícia da sua chegada, só então se iniciaram os trabalhos de adaptação do que seria a sua residência, em Longwood House, antiga casa de Verão do vice-governador da ilha, situada num planalto batido pelo vento, a seis quilómetros de Jamestown. Nos dois meses em que decorreram os trabalhos em Longwood, Napoleão ficou hospedado num pavilhão no jardim da família Balcombe, com cujas filhas, de 14 e 16 anos, se entreteve a “flirtar”. Longwood tinha 44 divisões, mas a maior parte delas eram arrecadações e anexos exíguos, pelo que a casa se revelou acanhada para o séquito “imperial”. Napoleão reservou para si um quarto, uma casa de banho, uma sala de jantar, um escritório e uma sala de visitas dotada de uma antecâmara com uma mesa de bilhar.

Longwood House

As relações de Napoleão com Cockburn tiveram altos e baixos (com alguns dos atritos resultaram de Napoleão se abespinhar por os britânicos insistirem em tratá-lo por “general Bonaparte”), mas podem ser vistas como pacíficas quando comparadas com as que se estabeleceram com o substituto de Cockburn, o general Hudson Lowe, que chegou à ilha a 14 de Abril de 1816.

Lowe trazia novas instruções sobre o estatuto e obrigações do “exilado” e estava decidido a fazê-las cumprir escrupulosamente: a entourage de Napoleão teria de ser reduzida de 16 para 11 elementos e os que ficassem teriam de assinar uma declaração em que se comprometiam a fazê-lo indefinidamente (até à sua morte ou à de Napoleão); o orçamento destinado a manter Longwood House seria reduzido de 12.000 libras anuais para 8000; os visitantes que pretendessem encontrar-se com Napoleão teriam de obter um visto do Governador; Napoleão deixava de poder cavalgar livremente pela ilha sem ser acompanhado por um oficial britânico e tinha de apresentar-se duas vezes por dia ao oficial de dia em Longwood; nenhum presente destinado a Napoleão poderia incluir qualquer menção ao seu estatuto imperial, caso contrário seria apreendido; e toda a correspondência de e para Longwood House teria de passar pelas mãos do Governador (nada era dito sobre o uso do Twitter, talvez por, na época, não ser hábito banir ex-governantes narcísicos das redes sociais).

Napoleão, que entendera a “liberal” supervisão de Cockburn tão intolerável que clamara “Exijo a liberdade ou um carrasco!”, via-se agora sujeito a um carcereiro mesquinho e apostado em infernizar-lhe a vida e fez ouvir os seus protestos indignados. Quando as condições impostas a Napoleão foram tornadas públicas na Grã-Bretanha, gerou-se alguma simpatia pública pelo antigo “Ogre Corso” e o Governo britânico acabou por recuar nalgumas imposições, mantendo, por exemplo, o orçamento anual de Longwood House em 12.000 libras.

O general Hudson Lowe, numa gravura datada de c.1830 por Jean Mathias Fontaine

Um penoso declínio

Napoleão não teria nem liberdade nem um carrasco, iria apenas definhar lentamente. Os problemas de saúde, acompanhados de uma patente obesidade, tinham começado a manifestar-se em 1808 e agravaram-se depois da desastrosa campanha russa, em 1812; após ter recuperado parcialmente durante o exílio em Elba, o esforço investido nos Cem Dias parece ter cobrado um preço elevado: engordou ainda mais, a pele adquiriu uma tonalidade esverdeada e a sua proverbial resistência evaporou-se. O estratega que tinha fama de manter-se lúcido e activo após dias a fio com escassas horas de sono, era agora incapaz de manter-se acordado pela noite dentro, por mais café que tomasse. Também a tenacidade e a capacidade de decisão de que dera mostras em tempos pareciam dissipadas e é plausível que a derrota na campanha belga se tenha devido, pelo menos em parte, a esta quebra da saúde física e das faculdades mentais.

O aumento da obesidade e o declínio da saúde foram agravando-se em Santa Helena, que, para mais, estava longe de ser um local saudável: a disenteria era endémica (numa das unidades militares britânicas que guarnecia a ilha, 105 dos homens sucumbiram a esta doença) e Longwood House era húmida e estava infestada por ratos (que, frequentemente, se passeavam junto aos pés dos convivas durante o jantar).

A vida social na modorrenta Santa Helena era quase inexistente, as relações tensas entre franceses e britânicos não propiciavam o convívio, os visitantes intelectualmente estimulantes que passavam pela ilha eram raros e a atmosfera na “corte” de Longwood, era sufocante, não só devido aos atritos entre os inquilinos como à vigilância cerrada exercida por Lowe, que era um prodígio de mesquinhez e paranóia – de uma vez, mandou apreender uns feijões que alguém enviara para plantar na horta de Longwood, suspeitando que as combinações de feijões de várias cores ocultariam uma mensagem em código. Na verdade, as desconfianças de Lowe quanto à possibilidade de o seu prisioneiro se evadir eram infundadas: Napoleão não parece ter dedicado tempo a planear fugas e até estava convencido de que, dado o ódio que os Bourbon lhe votavam, se acaso conseguisse fugir para os EUA, não tardaria a ser vítima de um atentado – como confidenciou a um dos seus “cortesãos”, sentia-se mais seguro em Santa Helena do que em qualquer outro lugar.

”Napoleão em Santa Helena” (c.1820), por František Xaver Sandmann

Napoleão tentou aprender inglês, não para comunicar mais facilmente com os seus “carcereiros”, mas para tentar compensar com livros e jornais ingleses a escassez de material impresso em francês que chegava à ilha; porém, o seu jeito para línguas parece ter sido muito limitado e acabou por desistir definitivamente das lições de inglês em Outubro de 1816. Entretanto, redigiu um livro sobre um dos seus ídolos, Júlio César, e começou a ditar as suas memórias ao conde de Las Cases, um membro da sua “corte”. Em 1816, o conde foi expulso da ilha pelos britânicos, após estes terem descoberto que ele conseguira receber correspondência clandestinamente, isto é, sem passar pelo seu crivo. A escrita das memórias passou a estar a cargo do general Gouraud, que acabaria por incompatibilizar-se com Napoleão, a quem desagradou que o general tivesse estabelecido boas relações com o odiado Lowe. Numa das suas zangas com Gouraud, Napoleão disse-lhe estar arrependido por não ter vindo para Santa Helena apenas com a criadagem, pois ser-lhe-ia mais agradável ter apenas um papagaio com quem falar do que aturar os caprichos dos seus “cortesãos”. A verdade é que Gouraud também não tinha um temperamento fácil e, inclusive, desafiara outro “cortesão”, Charles-Tristan, marquês de Montholon para um duelo (a que Montholon se esquivou). O mau ambiente criado por Gouraud levou a que abandonasse Santa Helena em 1818.

“Napoleão ditando as suas memória ao conde de Les Cases” (1892), por William Quiller Orchardson

Nesse mesmo ano, Lowe, que desconfiava que o Dr. O’Meara caíra sob o feitiço de Napoleão e passara a distorcer os relatórios de espionagem que entregava sobre a vida dos ocupantes de Longwood House, expulsou o médico irlandês de Santa Helena. Quando regressou às Ilhas Britânicas, O’Meara fez correr a notícia de que Napoleão estava num sério declínio físico e que tal se devia às medidas severas impostas pelo governador Hudson Lowe, mas a verdade é que a saúde de Napoleão melhorou após a sua partida, talvez por ter deixado de tomar os tenebrosos medicamentos que o médico lhe receitava. O lugar de O’Meara seria tomado pelo corso Français (Francesco) Carlo Antommarchi, enviado pelo tio de Napoleão, o cardeal Joseph Fesca, e pela sua mãe, que seria o seu médico pessoal até à morte e que deixaria um diário onde registou detalhadamente a evolução da saúde e estado de espírito do seu imperial paciente.

Em Julho de 1819 houve mais uma baixa de vulto na “corte”, com o regresso à Europa de Albine de Montholon, esposa do marquês de Montholon. Tudo indica que Albine terá sido amante de Napoleão (aparentemente com o beneplácito do esposo) e não se sabe quem terá sido o pai de uma criança que Albine deu à luz em Janeiro de 1718, já que ela manteve também um affaire com um oficial da guarnição britânica. As razões da partida de Albine – sem o marido – são um enigma, mas o que é certo é que o humor de Napoleão se tornou mais sombrio a partir desse momento.

Albine de Montholon, por William-Adolphe Bouguereau

Pouco a pouco, foi deixando-se vencer pela inércia e apenas teve um assomo de energia quando, no final de 1819, foi tomado por uma febre da jardinagem e se dispôs a criar um jardim botânico em Longwood. Uma nova crise de saúde pôs termo a este empreendimento, mas Napoleão recuperou e voltou a gozar de um período de boa saúde que durou até Julho de 1820. Um novo agravamento levou a que, a 20 de Setembro, Napoleão escrevesse ao Governo britânico solicitando autorização para passar uma estadia numas termas na Europa; porém, mesmo que a resposta tivesse (improvavelmente) sido favorável, a sua saúde já não lhe permitira qualquer viagem: a 4 de Outubro fez o seu último passeio ao ar livre – não mais voltaria a sair de Longwood House.

O fim

Os problemas gástricos que incomodavam Napoleão há anos e que tinham sido atribuídos a uma úlcera começaram a agravar-se seriamente a partir de 17 de Março, e quer os médicos que o acompanhavam quer o próprio admitiram que a úlcera tivesse evoluído para um cancro. As violentas dores abdominais deram-lhe alguma trégua no final do mês, permitindo-lhe que ditasse o testamento a 11 de Abril, mas o seu estado de saúde voltou a piorar, ao mesmo tempo que a perda de peso se tornava mais evidente.

Napoleão afastara-se da fé católica em que fora educado pela mãe quando era adolescente e frequentava a academia militar em Brienne-le-Château e durante a vida teve vários atritos com a igreja, que culminaram, em 1809, com a sua excomunhão pelo papa Pio VII e a prisão deste pelas tropas de Napoleão (só sendo libertado em 1812). Porém, a 29 de Abril, adivinhando que a morte estaria iminente, reconciliou-se com a Igreja Católica, tendo recebido os últimos sacramentos do padre Vignali, a 2 de Maio. Na noite 4 de Maio, Napoleão mergulhou num estado comatoso, do qual não mais despertou, falecendo no dia 5 de Maio de 1821 pelas 17:50. As suas últimas palavras foram pronunciadas algumas horas antes da morte, mas, como seria de esperar, cada testemunha e cada biógrafo oferece delas uma versão diferente. Como vimos no início, Chateaubriand afirma que foram ‘Chefe… exército… chefe de exército’, mas a versão mais divulgada é “França… exército… chefe de exército… Josefina”.

“A morte de Napoleão” (c.1825-30), por Charles de Steuben

A menção a Josefina suscita reflexão: o facto de Napoleão a nomear neste contexto dá a entender quão central ela fora na sua vida – e, com efeito, tinham estado casados entre 1796 e 1809 e tinham tido uma relação muito próxima, mas o cínico e calculista Napoleão, ao constatar que Josefina não lhe dava nenhum herdeiro (embora não fosse, seguramente, estéril, uma vez que tivera duas crianças do seu primeiro casamento com Alexandre de Beauharnais) e colocando a sua impaciência e as razões de Estado acima das razões do coração, decidiu divorciar-se dela em Dezembro de 1809, para se casar, em Abril de 1810, aos 40 anos, com a ainda adolescente Maria Luísa, Duquesa de Parma e filha do imperador austríaco Francisco I, um enlace de óbvia motivação geopolítica, visando consolidar o tratado que a França acabara de assinar com a Áustria.

Outra versão de “A morte de Napoleão” (c.1828), por Charles de Steuben

O cancro do estômago foi a causa oficial de morte de Napoleão e foi estabelecida por François (ou Francesco) Antommarchi, seu médico pessoal desde 1818 e experiente anatomopatologista, mediante autópsia realizada no dia seguinte à morte, com a assistência de sete médicos britânicos – estes elaboraram, por sua vez, três relatórios sobre a autópsia, o que atesta a preocupação da Grã-Bretanha em mostrar que o “general Bonaparte” (como os britânicos faziam questão de o designar) falecera de causas naturais, não em resultado da incúria ou malevolência dos seus “carcereiros”. A conclusão da autópsia era congruente com as queixas e sintomas de Napoleão, e batia certo com o precedente de Carlo Buonaparte (1746-1785), pai de Napoleão, que sucumbira também a um cancro do estômago, quando o filho tinha 16 anos.

Curiosamente, os persistentes problemas de estômago de Napoleão, que tinham começado muitos anos antes de ter sido desterrado para Santa Helena, têm servido para alimentar a “lenda” de que a pose em que surge em muitos retratos, com uma mão enfiada no colete, sobre o estômago, seria uma alusão à sua úlcera gástrica. A pose pode parecer bizarra aos olhos de hoje, mas foi frequente nos retratos dos séculos XVIII e XIX, sobretudo nos homens de Estado e políticos, e tem raízes numa crença difundida na Roma Clássica de que os políticos e oradores que gesticulavam energicamente se comportavam de forma indigna e mostravam serem incapazes de controlar as suas emoções – o orador ponderado e sábio deveria tornar manifesta a sua sobriedade e modéstia colocando a mão na toga, ou, mais tarde, no colete ou casaca (ver Gestos humanos: De onde vêm, para que servem e como foram retratados ao longo da história).

Um dos mais famosos retratos de Napoleão, realizado pelo seu pintor oficial, Jacques-Louis David, em 1812, representando o imperador no seu gabinete nas Tuileries

Seja como for, a opinião pública tem sempre dificuldade em aceitar que um grande homem com muitos inimigos sucumba à morte natural e o próprio Napoleão, ao mesmo tempo que admitia padecer de cancro do estômago, não perdia uma oportunidade para proclamar que os britânicos – mais exactamente o governador Lowe – estavam a envenená-lo.

As especulações sobre as verdadeiras causas da morte circularam durante muito tempo, mas só começaram a ganhar consistência científica a partir de meados do século XX, sobretudo a partir do momento em que o sueco Sven Foshufvud analisou várias amostras do cabelo de Napoleão (este tinha o hábito de distribuir madeixas do seu cabelo aos visitantes, como lembrança) e apurou que este continha teores de arsénico muitas vezes superiores ao normal. Os adeptos da tese do envenenamento por arsénico apontam que muitos dos sintomas a este associados coincidem quase integralmente com os sintomas exibidos por Napoleão e que um cancro do estômago não é compatível com a obesidade de Napoleão nos seus últimos anos. Os defensores das causas naturais de morte contrapõem que o usualmente rechonchudo Napoleão perdera mais de 10 quilogramas nos últimos seis meses de vida, como seria de esperar de uma vítima de cancro e que, por outro lado, o arsénico era um elemento omnipresente no quotidiano do século XIX, pelo que a presença de elevados níveis de arsénico no corpo de Napoleão não podia ser imputada automaticamente a um envenenamento deliberado.

O arsénico, um sub-produto da refinação de metais que podia ser obtido a baixo custo, tinha então imensas aplicações: estava presente em tintas e pigmentos usados na indústria têxtil (há quem sugira que a fonte tenha sido o papel de parede no quarto de Napoleão em Longwood House), em bebidas (nomeadamente no vinho barato), no esmalte de recipientes de cerâmica, em doces (o arsenato de cobre era usado nestes como corante), em velas, no vestuário, nos mais variados cosméticos, de sabões a champôs, de loções a tónicos capilares (há quem sugira que, no caso de Napoleão, a fonte tenha sido o tónico capilar) e em medicamentos, particularmente nos que eram usados no tratamento da sífilis (há quem sugira que Napoleão sofreria desta doença, o que não seria surpreendente dado o vasto número de amantes que teve, e que terá sido tratado repetidas vezes com arsénico).

Anúncio a um produto à base de arsénico destinada a remover marcas e imperfeições e branquear a pele (a palidez estava então na moda entre as senhoras da sociedade). Era publicitada, tal como todos os restantes cosméticos contendo arsénico, como sendo “perfeitamente segura”. Anúncio publicado em 1889 no jornal The Helena Independent, em Helena, Montana, EUA

Num século XXI em que ganha terreno uma rejeição neo-obscurantista de vacinas ou de qualquer medicação que não seja “natural”, devido a receios de que tenham efeitos adversos na saúde, é instrutivo recuar até uma época em que muitos medicamentos eram tão letais quanto as maleitas que pretendiam tratar. É o caso dos calomelanos (cloreto de mercúrio, Hg2Cl2), amplamente usados no século XIX para tratar as mais diversas doenças, em particular as do foro gastro-intestinal, e que se que se sabe terem sido administrados várias vezes a Napoleão como purgante – os calomelanos induzem por vezes sintomas similares aos evidenciados por Napoleão, como cãibras abdominais, vómitos e diarreia intensa, e o seu uso repetido pode resultar em envenenamento crónico por mercúrio, um metal tóxico que se cumula no organismo.

É também sabido que, em Santa Helena, Napoleão foi atormentado várias vezes por uma sede intensa que aplacava bebendo grandes quantidades de xarope de orchata, uma bebida à base de amêndoas, açúcar e água de rosas (ou de flor de laranjeira) – ora, as amêndoas amargas por vezes usadas na confecção desta bebida contêm elevadas doses de cianeto, que é, como se sabe tóxico. A medicina forense de personagens históricas oferece amplo espaço de manobra e é hoje um florescente ramo de actividade, pelo que a explicação da morte de Napoleão inclui também uma teoria que defende que Napoleão terá sucumbido a uma doença de fígado. Outra tese propõe que muitos dos problemas de saúde de Napoleão tiveram origem na campanha do Egipto, em que terá contraído esquistossomíase (ou bilharziose), uma parasitose endémica no Vale do Nilo.

“A morte de Napoleão” (1826), por Horace Vernet: Esta é, claramente, uma versão idealizada, que dá a ver um Napoleão ascético e heróico

Ao longo do século XXI têm continuado a multiplicar-se os artigos científicos que tentam apurar as verdadeiras causas da morte de Napoleão, mas é provável que este debate nunca produza resultados conclusivos. A hipótese do envenenamento por arsénico é a que suscita debates mais apaixonados, com alguns autores a garantir que é a única explicação aceitável e um artigo recente a argumentar que, afinal, os teores de arsénico nos cabelos do jovem Napoleão não diferem significativamente dos teores no Napoleão de Santa Helena. De qualquer modo, a teoria de que terão sido os britânicos a promover o envenenamento falha na motivação: o que ganhariam eles em matar um adversário cada vez mais apagado e amorfo e sem possibilidade de evasão? Há quem sugira que o envenenamento terá antes sido ordenado pelos Bourbon e que o seu executor tenha sido Charles-Tristan de Montholon, que permaneceu em Santa Helena até à morte de Napoleão e sempre desfrutou de amplas oportunidades para envenenar a sua comida e bebida – Montholon tinha um passado de trapaceiro, inspirava pouca confiança aos outros residentes de Longwood House e sabe-se que, após a primeira abdicação do imperador, tentara conquistar os favores de Luís XVIII. E em Santa Helena pode ter ganho um móbil adicional para querer ver Napoleão morto: o facto de este se ter tornado amante da sua esposa.

Charles-Tristan, marquês de Montholon, retratado c.1840 por Édouard Pingret

A imagem que fica para a história

Desde ao seu tempo aos nossos dias, as opiniões sobre Napoleão sempre têm coberto um largo espectro: uns vêem-no como “Ogre Corso”, responsável por colocar o continente a ferro e fogo, demonstrando o mais completo desprezo pelas vidas humanas (estima-se que as Guerras Napoleónicas tenham ceifado um décimo da população da Europa) e instituindo como prática corrente o saque dos bens culturais dos países conquistados; outros vêm-no como um estratega brilhante, que conduziu a glória de França a cumes nunca alcançados, e como um déspota iluminado, que salvou a França do caos do período revolucionário e do bafio do Ancien Régime, desafiou a ordem estabelecida e introduziu profundas reformas educativas, administrativas, judiciais e legislativas, entre as quais está o Code Civil (ou Code Napoléon), que ainda hoje constitui as fundações de muita legislação no mundo ocidental (Napoleão estava consciente da relevância do Code Civil, pois declarou “A minha glória não foi ter vencido quarenta batalhas […]. O que nunca será apagado e viverá eternamente é o meu Código Civil”).

Em 1856, numa carta a Madame Dosne, Adolphe Thiers (que viria a ser, por duas vezes, presidente da República Francesa) espantava-se com “a popularidade desta personagem terrível entre as nações da Europa. Em toda a parte, os camponeses, jovens ou velhos, contam inúmeras histórias sobre ele e, parecendo esquecer o mal que lhes fez, concentram-se nas maravilhas que realizou. A magia da glória é enorme!”.

“Napoleão Bonaparte na manhã de domingo, 6 de Maio, 14 horas após o falecimento, no seu leito de morte”: Ao contrário dos quadros de Steuben e Vernet, este esboço foi realizado por uma testemunha directa dos eventos, o capitão da Royal Navy Frederick Marryat, que estava de passagem por Santa Helena. Marryat foi quem, no comando do brigue HMS Rosario, levou à Grã-Bretanha a notícia da morte de Napoleão

Parte deste esquecimento das malfeitorias e iniquidades praticadas por Napoleão poderá ser explicado pelo exílio em Santa Helena, e, mais exactamente, pelas condições rigorosas que lhe foram impostas pelos “carcereiros”. O próprio Napoleão parecia estar consciente disto, quando confidenciou ao conde de Las Cases que “o martírio limpar-me-á a reputação de tirano […] a desgraça era o que me faltava à fama”. É tentador considerar que esta perspectiva, mais do que o medo de ser assassinado por agentes dos Bourbon se deixasse a ilha, explicará o seu desinteresse por planos de evasão e a sua resignação àquele triste exílio: “O meu corpo pertence aos iníquos, mas a minha alma é independente. Estou tão orgulhoso aqui em Santa Helena, como se estivesse no meu trono, a fazer reis e a distribuir coroas”. Teria o cínico, maquiavélico, presunçoso, impaciente e desmedidamente ambicioso Napoleão ganho sabedoria e humildade no seu penoso final de vida num rochedo vulcânico no meio do oceano? Seriam estas reflexões sinceras ou apenas uma forma de encontrar, para si mesmo, uma desculpa para a inércia que foi ganhando terreno à medida que o corpo se arredondava e a auto-disciplina se esfarelava, uma forma de preservar a sua auto-imagem, convertendo uma fraqueza – a lassidão – numa virtude – a aceitação de um martírio?

A verdade é que nas incontáveis páginas de memórias que ditou ao longo de cinco anos e nas não numerosas conversas registadas pela sua entourage, pelos seus carcereiros e pelos visitantes ocasionais, Napoleão expressa uma multitude de ideias contraditórias e tanto considera que “graças à minha desgraça, cada hora que passa leva um pouco da minha pele de tirano”, como afirma que “teria sido melhor para a minha glória se tivesse morrido em Moscovo”. No fundo, talvez estas incongruentes elucubrações mais não sejam do que reflexos do seu incorrigível e avassalador narcisismo. Para Napoleão, o assunto mais importante era sempre Napoleão, fosse qual fosse a situação e o contexto, como uma vez fez ver a um dos elementos da “corte” de Santa Helena, em tom de admoestação: “Haveis pensado que, vindo para aqui, vos tornaríeis meu camarada? Não sou camarada de ninguém […] Tenho de ser o centro”.

Em Paris ou em Moscovo, nas margens do Nilo ou do Berezina, na ilha de Elba ou de Santa Helena, Napoleão nunca cessara de pensar na sua glória e na forma como seria visto pelas gerações vindouras, e, já que o destino não lhe tinha permitido ter o final trágico do herói tombado no campo de batalha ou a despedida serena do imperador sábio e magnânimo que sucumbe em paz, após um longo e próspero reinado, entre os choros dos seus fiéis e inconsoláveis súbditos, ter-se-á conformado em ser “apenas” um santo. Curiosamente, os habitantes de Santa Helena designam-se a si mesmos por “saints” e, quem não se deixe enredar nos “jogos mentais” a que Napoleão gostava de se entregar, concluirá que essa é a única “santidade” que poderia reclamar.