Podia ter sido um outro filme, com mais protagonistas e mais depoimentos, imagens de arquivo, banda sonora. “Narciso Em Férias”, porém, não é nada disso, é outra coisa: a possibilidade dos espectadores ocuparem durante hora e meia a cabeça de Caetano Veloso, verem-no ouvindo-o discorrer longamente — durante quase uma hora e meia — sobre os 54 dias em que esteve preso durante a ditadura militar brasileira.
O filme, de uma secura e despojamento que fazem jus à solidão sentida por Caetano na prisão, será exibido pela primeira vez em Portugal no próximo domingo, 6 dezembro, em Portugal — mais concretamente a partir das 10h30, na Culturgest, em Lisboa —, no âmbito do festival de cinema documental Doc Lisboa.
De “Narciso Em Férias” não se podem esperar grandes artifícios: do início ao fim, o que se vê é Caetano Veloso sentado numa sala de aparência desconfortável, a mergulhar no período que começa a 27 de dezembro de 1968, quando a polícia federal lhe bate à porta em São Paulo, e que só termina perto de dois meses depois (54 dias depois) com a libertação.
[O trailer do filme ‘Narciso Em Férias’:]
Os únicos momentos que destoam do fio condutor do filme, a memória e a voz de Caetano a percorrer os dias e as noites na prisão, as emoções e as frustrações e as dúvidas e os temores, são pequenos apontamentos musicais: Caetano Veloso a cantar, só voz e guitarra, uma ou outra canção associada (sua ou alheia, pela letra ou por a ouvir à época) aos dias de prisão, como a “canção de bom augúrio” que era “Hey Jude”, que o fazia crer em melhores dias.
Recapitulemos a história: dezembro de 1968, Caetano Veloso cabeludo e com 26 anos, já com três discos editados, no auge do tropicalismo, a terminar uma noite de tertúlia com conversa e canções em que estiveram a sua mulher à época, “Dedé”, o também cantor Gilberto Gil e a sua então namorada, Sandra, irmã de “Dedé”. De “manhãzinha”, entre as 5h30 e as 6h, a polícia chegava com o nascer do dia e levava-o preso — a ele e a Gilberto Gil.
O que se seguiu já foi, em boa parte, contado. Há detalhes que não tinham sido muito explorados, como documentos recém-encontrados que relatam em detalhe o interrogatório a que Caetano, já preso, viria a ser sujeito. Mas mais do que factos novos, o que “Narciso Em Férias” traz é imersão: Caetano Veloso como nunca o víramos, a contar em detalhe, não dia a dia mas quase, as vivências na prisão, a sua cabeça a recuar às intrincadas teias que se lhe alojaram na mente nos dias de cárcere, as emoções recuperadas por um narrador que sabe como poucos prender um espectador e contar uma história — esta história.
No filme, Caetano recua à primeira cela, à “manta verde-oliva”, aos “restos de jornal”, à “latrina” e à “portinhola baixa que abriam para botar comida — durante alguns dias não vi ninguém, só a mão de alguém”. Retrocede às ameaças do guarda que o percebia insatisfeito com a comida: “Está fazendo greve de fome? Vai levar porrada!”. Recua à crença de que “a vida era só aquilo, fatalmente aquilo” e que tudo o resto tinha sido “uma imaginação”. Lembra as noites interrompidas pelos “gritos de pessoas sendo torturadas”, talvez (imagina) presos “de baixa renda”, sem nome e influência. Recorda o sargento que permitiu à sua mulher entrar na cela — e que acabou preso por isso —, emociona-se com um exemplar da revista que recebeu na prisão, ri-se com a “fake news” que motivou a prisão, gargalha incrédulo, por um momento até divertido, com as perguntas e respostas do seu interrogatório recentemente encontradas. E cita uma frase que ouviu, que ‘quando a gente é preso, é preso para sempre’, pensa sobre ela: “Às vezes sinto isso”.
As memórias de Caetano Veloso neste documentário-entrevista realizado e conduzido por Ricardo Calil e Renato Terra estão a percorrer as salas de cinema dos festivais europeus. Chegam a Lisboa, por exemplo, depois de uma passagem pelo Festival de Veneza e por um festival holandês. No Brasil, o filme entrou diretamente em streaming e “a repercurssão foi muito grande, virou não só um objeto de discussão cinematográfica mas também um objeto de discussão política”, diz ao Observador um dos dois realizadores, Ricardo Calil.
Em entrevista através de Zoom, o realizador brasileiro vai mais longe: no Brasil, “Narciso Em Férias” foi “um acontecimento cultural”. Pode parecer “imodesto” dizê-lo, acrescenta logo de seguida Ricardo Calil, “mas foi, gerou muitas discussões aqui”. A entrevista estava prestes a começar mas o cineasta ainda deixaria um lamento agridoce: “É um motivo de grande felicidade [o filme] ser selecionado pelo Doc Lisboa, mas me dá muita tristeza não estar aí podendo conversar com as pessoas ao vivo. É pena”.
Este filme oferece mais um contributo para discutir um período da história do Brasil que é a ditadura militar. O contributo aparece numa altura em que o Presidente do país é alguém que já exultou torturadores da ditadura militar, como o general Brilhante Ulstra. Essa é uma fase da história do Brasil que está hoje a ser alvo de reconstruções históricas, narrativas?
Sim. São períodos diferentes, claro. Antes tínhamos uma ditadura institucionalizada, uma ditadura no sentido clássico do termo. Houve um fortalecimento dessa ditadura com o chamado Ato Institucional Nº 5, aprovado duas semanas antes da prisão [de Caetano Veloso]. Esse Ato fechou o Congresso e permitiu que as pessoas fossem perseguidas, torturadas, mortas. Os artistas foram algumas das vítimas dessa perseguição. Caetano e Gilberto Gil talvez tenham sido as primeiras vítimas, porque foram presos duas semanas depois.
Era um outro país, um outro regime muito distinto. A minha pergunta era se emergiram novas visões sobre esse período. O filme quer contribuir para essa discussão e para a discussão sobre o presente?
Temos um Presidente que tem origem militar, que defende não só a ditadura como um torturador [Brilhante Ulstra], que provavelmente gostaria de voltar àquele período se pudesse. Mas hoje temos uma democracia um pouco mais sólida, então o que vemos é uma forma mais contemporânea de derrubar as instituições democráticas. É algo que vemos a acontecer na Turquia, na Hungria e em outros países. São períodos diferentes mas o filme, apesar de ser muito sobre as memórias do Caetano, pode chamar a atenção das pessoas para não repetirmos a história. Tem esse sentido de alerta, também.
Acho que é importante dizer também que filmámos curiosamente em 2018 a poucos dias da eleição do Bolsonaro. Foi uma entrevista gravada num só dia e faltavam talvez quatro ou cinco dias para a primeira volta das eleições [presidenciais]. Embora não falemos diretamente de Bolsonaro, de certa forma a ameaça que ele representava naquele momento estava um pouco no ar na gravação, na emoção do Caetano. É algo invisível, mas esse sentimento de ameaça e preocupação de certa forma está no ar no ambiente do filme.
É curioso referir isso porque ia perguntar-lhe algo relacionado. Há dois dados que talvez possam explicar o porquê do filme ter sido feito nessa altura. Um será o momento político do Brasil — que poderá fazer o próprio Caetano Veloso ter vontade de recordar e discutir o que aconteceu na fase da ditadura militar. Outro é os documentos do interrogatório que lhe foi feito quando estava preso terem sido descobertos há pouco tempo. Esses são dois aspetos importantes para o filme ter sido feito nesta altura? E há outros que levaram a que o filme surja agora?
Não é que o Caetano tenha decidido fazer esse filme por conta do momento político. Como ele disse uma vez, o momento político tornou foi a conversa mais oportuna. Acho que houve dois motivos que o levaram a ter o desejo de fazer o filme, a ele e à Paula Lavigne, que é esposa e produtora dele e que nos convidou — a mim e ao Renato — para fazer o filme. Um é: há alguns anos ele escreveu um livro muito importante sobre a invenção do tropicalismo, chamado Verdade Tropical. O capítulo do livro que ele tem como preferido, até em termos literários, é um capítulo que se chama “Narciso Em Férias”.
O Caetano teve sempre o desejo de lançar esse capítulo do livro em separado, como um livro à parte. No começo de 2018, houve um acordo com uma editora para que esse livro fosse lançado à parte. Houve um desejo de voltar a falar disso. É então que a Paula Lavigne, que é produtora dos discos dele mas também produtora de cinema, sugeriu: vamos transformar isso num projeto cinematográfico.
E a descoberta desses documentos que até há pouco tempo eram desconhecidos, que importância teve?
É um facto muito importante. Um investigador do Rio de Janeiro [Lucas Pedretti] descobriu os documentos da ditadura sobre Caetano Veloso e Gilberto Gil e fez chegar os documentos às mãos do Caetano. Esses documentos eram inéditos, o Caetano nunca os tinha visto e nunca tinha compreendido qual era a visão da ditadura sobre ele. Ele e Gil não eram alvos óbvios da ditadura, havia cantores de protesto que afrontavam a ditadura muito mais frontalmente. Esses documentos fizeram o Caetano finalmente entender em profundidade como era visto e porque era visto como uma ameaça pela ditadura.
É um dado novo do filme. O Caetano tinha lido os documentos uma única vez antes das filmagens, mas leu-os mais verticalmente. As filmagens foram uma maneira de mergulhar nessa visão que a ditadura tinha sobre ele. Isso traz uma novidade não só em relação ao livro — porque quando o escreveu não tinha visto ainda os documentos — como traz uma novidade biográfica para ele e uma carga dramática para o filme que é específica. Uma carga cómica às vezes, até, porque a visão da ditadura sobre ele era muito pobre, muito banal, às vezes à beira da caricatura. Uma visão marcada por muita ignorância sobre o que se estava a fazer e o que propunha o tropicalismo. O desejo de publicar esse capítulo e a descoberta desses documentos foram efetivamente dois fatores fundamentais.
“Verdade Tropical”. A transa de Caetano Veloso com a literatura
Este é um documentário minimalista: o que ficamos a saber do passado, ficamos a saber apenas através dos relatos de um protagonista único. Gostava de perceber o porquê dessa decisão e também se chegaram a pensar entrevistar outras pessoas — por exemplo o Gilberto Gil, o Perfeito Fortuna ou outras figuras que são referidas pelo Caetano no filme.
Quando a Paula nos convidou para fazer o filme, convidou-nos para fazer algo que falasse da prisão [do Caetano] mas que não fosse tão focado. Podia ser uma série, um documentário, uma série sobre um período mais extenso que podia começar com o tropicalismo e terminar no exílio, com a passagem por Portugal por exemplo. Desde sempre, eu e o Renato fizemos a proposta de ser um documentário de longa-metragem muito focado na prisão. No começo tínhamos, sim, o desejo de ouvir outras pessoas e citou as duas fundamentais: Gilberto Gil e Perfeito Fortuna. De qualquer forma, querendo aproveitar essa emoção do Caetano de 2018 por questões políticas, decidimos começar por esse longo depoimento, essa longa entrevista do Caetano que durou cinco ou seis horas. Fizemos a entrevista e ficámos muito impressionados com a qualidade da memória do Caetano, com a emoção do depoimento, com os momentos dramáticos e cómicos do relato. Gostámos muito e saímos a achar que o depoimento era uma peça fundamental.
Depois de algum tempo, o Renato, meu parceiro, disse-me: Ricardo, acho que o filme certo, o filme mais potente que pode ser feito, é só com o depoimento do Caetano. Tive dúvidas. Era uma proposta ousada, arriscada. Ele sugeriu fazermos um corte, montarmos e vermos se ‘pára em pé’. Fizemos um corte, mostrámos a algumas pessoas muito importante para nós — como o João Moreira Salles, que é um documentarista brasileiro fundamental…
… Também envolvido diretamente na produção do filme.
Exato. O que ele defendeu foi que a nossa opção estética e moral de deixar só o Caetano Veloso era a opção correta. Nós, que já tínhamos trabalhado com ele antes, convidámo-lo a tornar-se coprodutor do filme em concordância com a Paula [Lavigne]. Assim foi. Depois mostrámos ao Caetano e à Paula o que tínhamos, dissemos-lhes: esta é a nossa proposta de filme. Com a concordância deles ficámos convictos que era assim que o filme devia ser.
A decisão tem a ver com muitas coisas. Tem a ver com uma certa filiação nossa em relação a um documentarista brasileiro chamado Eduardo Coutinho, que faz um cinema muito baseado na fala, na memória, na oralidade, na narração. E tem a ver com acreditarmos num cinema que é uma experiência compartilhada entre o artista, o diretor e o espectador. Foi uma aposta. Considerámos que as memórias, as falas, as palavras, os gestos, os silêncios do Caetano eram de tal forma amplificados com esta proposta minimalista que íamos conseguir que o espectador fosse transportado para aquele momento e aquele lugar da vida do Caetano Veloso, também para aquela sala da entrevista. Tivemos muitos relatos de pessoas que nos disseram: é como se estivesse a conversar com o Caetano, é como se estivesse naquela sala, é como se eu pudesse ver a mulher dele [à época] entregando-lhe a revista [na cela da prisão]. É uma confiança nossa na capacidade da memória e da palavra para despertar imagens. Apesar de ser um filme minimalista e baseado na palavra, temos a crença de que graças à memória incrível do Caetano e ao dom de narração é um filme muito cinematográfico e que suscita imagens muito ricas.
Tornar-se-ia um filme muito diferente se tivesse outros depoimentos. Pensaram no risco de se perder algum magnetismo e se quebrar o ritmo com que o Caetano Veloso recorda a prisão se ouvissem outras pessoas? Se por alguns momentos do filme saíssemos daquela sala, daquele relato, o efeito da memória e da palavra no espectador poderia ser outro.
Foi uma aposta estética. O João Moreira Salles diz que é também uma aposta moral, defende que devido à dureza do tema qualquer coisa mais seria um excesso, um exagero. É uma aposta que não será ‘comprada’ por toda a gente. Mas temos tido relatos muito positivos de espectadores mergulharem naquele universo, de passarem uma hora e meia absolutamente mergulhados e imersos numa experiência de outro.
Todo o cenário em que o relato é feito, o cenário que rodeia o Caetano Veloso enquanto fala, é bastante despojado. Queriam colocar o entrevistado num ambiente — pela dimensão do espaço, pela parede atrás, pela pouca cor do espaço — que o fizesse regressar de forma mais viva àquele período de isolamento, de solidão?
Acho que para o Renato e para mim era claro desde o começo que não queríamos uma entrevista em casa do Caetano, num ambiente comum e de conforto. A Paula Lavigne, produtora, tinha filmado neste sítio, um equipamento cultural do Rio de Janeiro chamado ‘Cidade das Artes’ que não ficou concluído. É uma sala de cinema que não ficou terminada. Ela sugeriu este espaço e acho que foi uma sugestão muito feliz. Quando vimos as imagens do espaço… era aquilo que queríamos. Não queríamos levar o Caetano de volta para a prisão, mas também não o queríamos em casa. Aquele era um ambiente que remetia para a experiência sem ser o local da experiência. É um lugar árido, monocromático, desconfortável. Foi uma sugestão da produtora que foi muito feliz e acho que o cenário ajuda muito o espectador a ter essa experiência compartilhada.
A minha dúvida era se a intenção passava mais por transportar o espectador para esse ambiente de cela, solitário, ou se passava mais por transportar o próprio Caetano para esse ambiente que o fizesse reviver mais e recordar melhor os momentos da prisão.
Acho que era as duas coisas. E tenho a sensação que funcionou dos dois lados. Seria hipotético pensar em como seria este filme noutro ambiente, mas tendo a achar que seria um filme menos potente. Se fosse na casa dele ou no estúdio, por exemplo…
Além do cenário e do ambiente escolhido, há truques para fazer um filme como este — que depende tanto da narração e das memórias de um único protagonista — resultar? Houve alguns cuidados especiais vossos na condução da conversa para tentar tornar o depoimento mais potente, mais fluído, mais forte?
Este é o terceiro filme que faço em conjunto com o Renato. Desde o primeiro filme desenvolvemos algumas estratégias de entrevista, de conversa, que têm a ver com o cineasta de que falei, Eduardo Coutinho. Fazemos por exemplo uma pesquisa exaustiva sobre o assunto, fazemos um guião muito profundo sobre o assunto, e na hora da conversamos atiramos fora o guião. Deixamos aquilo tornar-se realmente uma conversa. É importante existir uma conversa em que as pessoas estão a olhar umas para as outras, é importante que o entrevistado não fique com a sensação de que estamos a cumprir tópicos. Também tentamos não fazer perguntas muito fechadas ou opinativas, tentamos que as perguntas puxem mais o fio da memória do que peçam uma opinião ou visão muito determinada.
Com o Caetano Veloso, além destas estratégias houve alguns elementos, poucos, que trouxemos para a conversa que acho que ajudaram a estimular a memória e a reação a questões. Um momento muito forte e emocional do filme é quando entregamos a revista ‘Manchete’ com as fotografias da Terra tirada do espaço [uma revista que Caetano recebeu na prisão, entregue pela sua mulher à época, ‘Dedé’]. Encontrámos essa revista no próprio dia da filmagem e fizemos questão não só de não a mostrar ao Caetano antes da gravação, como de não falar sequer no assunto. Não tínhamos certeza sequer se a revista era aquela em concreto, era uma suposição.
Isso aliás ouve-se no filme. Quando lhe entregam a revista, perguntam se era aquela — portanto não tinham a certeza.
Sim. Havia uma dúvida se era esta a revista ou se era outra. Desconfiávamos que era aquela porque a legenda de uma das fotografias da revista dizia ‘a Terra parcialmente coberta pelas nuvens’. E o Caetano cita na letra de uma música [feita sobre a prisão e sobre as imagens] algo parecido. Então supusemos que era aquela — e era. Foi uma estratégia nossa usarmos aquela revista como uma espécie de memento, como um objeto que desperta uma memória. Acho que foi uma estratégia que funcionou. E houve também os relatórios [do interrogatório], que serviram para um encontro dele com a visão que a ditadura tinha sobre quem era. Apesar de ele já ter lido os documentos, não os tinha lido com tanta atenção. Descobriu coisas curiosas ali, como a sua música ser vista como ‘subversiva e desvirilizante’. Essa definição muito curiosa da ditadura sobre ele originou um momento cómico, porque não era algo em que o Caetano tinha reparado quando leu sozinho os documentos.
Percebe-se, pela reação — pelo riso espontâneo — que não era algo em que tivesse pensado muito.
Foi algo que aconteceu no momento, assim como a revista. Outra coisa que tínhamos pensado para o filme passava por isto: o período da prisão ficou marcado por algumas canções. Canções que o Caetano sentia que davam azar ou sorte, ou que compôs na prisão ou que compôs sobre a prisão. Propusemos-lhe cantar essas músicas e ele conseguiu cantar as três que estão ali — “Terra”, “Irene” e a “Hey Jude” —, mas não foi capaz de naquele momento cantar músicas que achava que lhe davam azar naquela altura. Cinquenta anos depois, são canções que ainda mexem muito com ele. O Caetano é uma pessoa muito supersticiosa, como aliás se define, e em 2018 não conseguiu cantar essas músicas que 50 anos antes achava que davam azar. Além da conversa, houve esses pequenos elementos que sabíamos que queríamos trazer para a nossa proposta minimalista.
Tenho outra dúvida. A polarização política atual que se sente no Brasil e a diferença no modo como a ditadura militar é revista hoje por diferentes grupos afetam a forma como o Caetano Veloso é visto no Brasil? O novo posicionamento autoritário de algumas franjas influencia a forma como o Caetano Veloso é visto enquanto artista?
Com certeza. [pausa] O Caetano é um alvo preferencial da nova direita brasileira. É uma figura que é atacada quotidianamente no Brasil por essa nova direita. Por exemplo, muitas vezes é citado e nomeado pelo guru do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho, um auto-denominado filósofo que o agride constantemente, que já foi processado pelo Caetano e já perdeu em tribunal.
O Caetano tem uma trajetória muito particular. Em 1968, antes da prisão, era uma figura que incomodava muito a esquerda por não fazer o repertório tradicional da canção de protesto e por abraçar a cultura pop, o rock. Isso era muito mal visto pelos nacionalistas de esquerda do Brasil daquele período. Com a prisão dele, ficámos a perceber que incomodava também muito a direita, pela questão contracultural e comportamental.
Ou seja, incomodava muitos — e muita gente muito diferente.
O Caetano é um símbolo de liberdade no Brasil há 50 anos — de liberdade política, de liberdade de comportamento, de liberdade artística. Em 1968, tornou-se um alvo por isso. Achámos que isso já tinha passado mas com a ascensão no Brasil desta nova direita, desta extrema-direita, o Caetano voltou a tornar-se um alvo preferencial e um alvo da polarização. É uma figura que está sempre em movimento, que não fica embaraçado por mudar de opinião. Diria que hoje na polarização política brasileira, o Caetano Veloso está a ser abraçado por quem é de esquerda como nunca e está a ser atacado por quem é de direita de uma forma que só tinha acontecido antes de 1968. Essa é a posição do Caetano hoje, dentro da polarização política brasileira.
Apesar das muitas décadas de carreira, do trabalho criativo e musical, a forma como é visto ainda depende muito do exercício de liberdade de ter opiniões sobre coisas — sejam elas quais forem.
Sim. O Caetano foi sempre uma figura muito difícil de classificar. Há o caso que ele conta no filme, do capitão que se virou para ele e disse: eu leio [Herbert] Marcuse e sei o que vocês estão a fazer, a subversão do que fazem. Naquele momento, aquele capitão em específico, que era uma exceção dentro do Governo militar, talvez tenha compreendido o que o Caetano estava a propor melhor até do que a esquerda tradicional daquela época. Talvez o Caetano seja sobretudo uma pessoa que luta contra dogmas. Não é uma pessoa dogmática, então há 50 anos que confunde pessoas que são dogmáticas — sejam de que campo ideológico forem. Esse é um dos motivos, além da música brilhante que fez e faz, pelo qual é uma figura tão essencial na cultura brasileira: está sempre a promover um curto-circuito de ideias na vida cultural brasileira.
Ao longo do filme vai-se criando algum suspense sobre o motivo pelo qual o Caetano Veloso foi preso naquela época — não é algo que seja desvendado logo de início. Esse motivo não estará, na verdade, relacionado com questões que estão a ser muito discutidas hoje, 50 anos depois? Porque ele é preso por um rumor, um boato, de certo modo pode-se até dizer que por fake news. Se esta é a época da pós-verdade…
Foi definitivamente uma fake news. O Caetano não usa o termo no filme, mas quando fala sobre o filme refere isso: ‘Eu fui preso por uma fake news antes da expressão se popularizar’. Isso tem um lado terrível. Aquilo que foi usado como instrumento de exceção para se prender o Caetano tornou-se hoje uma regra, mais presente. Hoje o Caetano é vítima de muitas fake news, espalharam-se muito. Há esse lado terrível, trágico, mas dá também um sabor um pouco cómico ao filme: o pretexto de uma prisão que causou um sofrimento grande e real ao Caetano Veloso, que lhe deixou marcas até hoje, é um motivo quase surreal. É uma espécie de pesadelo Kafkiano que está contido no filme, é um teatro do absurdo essa informação de que eles [Caetano e Gilberto Gil] cantaram o hino nacional parodiando-o com um ritmo de tropicália.
É uma visão que revela por um lado o profundo arbítrio [de uma prisão], por outro o absurdo e a falta de capacidades daquelas pessoas que governavam o Brasil naquele momento. Tem um aspeto de caricatura de fake news que voltou à moda, mas revela também a pobreza política e intelectual daquelas pessoas que governavam em 1968. Não é uma surpresa que as fake news tenham voltado com tanta força num momento em que no Brasil temos novamente um governante de origem militar, marcado pela profunda ignorância e pelo orgulho que tem na própria ignorância.
[O podcast ‘Narciso Em Férias’, no qual Caetano Veloso fala das canções associadas à prisão e das memórias da prisão, para ouvir aqui:]
Há um momento com alguma carga dramática no filme, quando o Caetano Veloso lembra o sargento que permitiu que a sua mulher à época, Dedé, entrasse na cela dele. Diz inclusive que esse sargento foi preso depois disso. Nessa altura emociona-se e pede uma pausa. O Ricardo estava lá naquele momento. O que aconteceu a seguir, exatamente?
No filme registamos o início da emoção daquela memória. Aquela emoção aumentou mais ainda, ele chegou a um choro muito forte. Depois na edição debatemos se devíamos mostrar mais a emoção. Curiosamente o Caetano foi a favor de mostrar e nós, realizadores, fomos a favor de a preservar, decidimos cortar. Parecia um pouco uma exploração emocional, se deixássemos o choro durante mais tempo.
Depois de ele se ter acalmado e controlado, contou nos bastidores, quando não estávamos a filmar, mais detalhes da história daquele sargento. Foi realmente preso porque descobriram que estava a facilitar o encontro do Caetano com a Dedé, mulher dele naquela época. É uma história que para o espectador fica um pouco misteriosa.
O espectador fica até sem saber como é que o Caetano Veloso soube que o tal sargento foi preso.
Pois é. Como não queríamos fazer um filme jornalístico, que explique tudo, que esgote os assuntos, achámos que preservar o mistério desse assunto era interessante. Outra preocupação era como reatávamos o filme depois daquela interrupção. Achámos que a um momento de tamanha tristeza, o mais interessante não seria prosseguir com o Caetano a cantar a música “Terra”, que era a escolha óbvia porque aquele foi o episódio que de certa forma originou mais tarde essa canção. Quisemos contrapor àquele momento dramático e emocional uma música que o confortava e que trazia bons augúrios, a “Hey Jude”. Decidimos contrapor a tristeza da lembrança com essa canção de bom augúrio.
Há uma questão que o Caetano aborda por mais de uma vez no filme, em diferentes momentos: a questão de classe e a importância da classe. Está presente quando conta o encontro com o [comunista] Énio da Silveira no pátio da prisão: diz que o Énio falou com ele e intimidava os soldados por uma altivez que era também uma questão de classe. Está presente quando fala nos tipos que na prisão eram presos e torturados — não eram eles, os artistas e intelectuais, eram os ‘de baixa renda’. E está presente quando o Caetano recorda a distinção que foi feita entre ele e o Gilberto Gil, que teve direito a uma guitarra na cela porque tinha curso superior. O facto da classe ser insistentemente referida como importante no tratamento desigual de pessoas naquele tempo é algo que se transpõe para o Brasil de hoje?As tensões de classe são um tema presente, real, na sua visão e na visão do Caetano?
Sem dúvida. É importante dizer isto: não fizemos este filme como uma tese, não quisemos pegar no caso do Caetano para mostrar como a ditadura era cruel, como funcionava com base na diferenciação de classes. Nada disso era o nosso objetivo, o objetivo era ouvir atentamente e respeitosamente as memórias do Caetano sobre a prisão. Mas vou citar uma frase que é muito importante para mim e para o Renato, que nos foi dita pelo João Moreira Salles quando lhe apresentámos um outro filme, “Uma Noite em 67”, que passou aliás no DocLisboa em 2011. É uma frase de um cineasta brasileiro chamado Alberto Cavalcanti. Ele diz assim: se você quer fazer um filme sobre os correios, faça um filme sobre uma carta. Porque nunca vai dar conta de tudo o que os correios fazem, mas se mostrar a história de uma curta com justiça, com propriedade, vai-se perceber como funcionam os correios.
A nossa carta é a prisão do Caetano Veloso — e as memórias dele sobre a prisão. Só que com essa carta entende-se muito do que foi a ditadura brasileira, o absurdo e a arbitrariedade do que acontecia na ditadura brasileira, e entende-se alguma coisa das diferenças de classe no Brasil. As duas questões essenciais no Brasil, que estão ligadas, são as diferenças de classe e a herança da escravidão. São duas questões intimamente ligadas e das quais não conseguimos escapar em nenhum momento. Não queríamos transformar isso em discurso, em panfleto, em tese. Decidimos aliás tirar do filme quase todas as referências ao presente, ao facto de estarmos novamente a viver um momento que remete para alguns aspectos da ditadura. Mas o Caetano fez questão e pediu-nos para manter uma dessas referências, que também queríamos tirar porque sentíamos que o paralelo entre presente e passado deveria ser feito era por jornalistas, críticos e espectadores. Queríamos que esse paralelo estivesse invisível, implícito, no filme.
Que referência era essa que o Caetano quis manter?
Pediu-nos para não tirarmos a fala em que diz que é necessário haver uma segunda abolição no Brasil. É um tema absolutamente urgente no Brasil e comprovamos isso quotidianamente. Ainda há poucos dias o comprovámos quando um homem negro foi morto, assassinado, num supermercado de Porto Alegre pelos seguranças sem que as pessoas saibam explicar qual foi o motivo. Foi mais um entre muitos exemplos de assassinatos de pessoas negras de classe baixa. Acontece diariamente no Brasil. É um nó e um conflito que temos de resolver e a que o Caetano se refere quando fala numa segunda abolição. Não queríamos fazer um filme sobre o presente, mas queríamos fazer um filme que falasse fortemente ao presente. Pelas discussões que o filme levantou, acredito que conseguimos.
Queria só pedir-lhe, por último, se poderia contar alguns detalhes sobre o seu trajeto e o do Renato Terra — até por não ser o primeiro filme que fazem juntos.
Perfeito. Começámos juntos enquanto dupla nesse filme de que falei, “Uma Noite em 67”. Curiosamente o filme mostrava alguns artistas brasileiros no início das suas carreiras em 1967 e um desses artistas era Caetano Veloso, outro era Gilberto Gil. Dez anos depois desse primeiro filme, fizemos um novo filme sobre o Caetano Veloso mostrando o que aconteceu com o Caetano um ano depois desse festival de música de 67…
Fizemos juntos um filme chamado “Eu sou Carlos Imperial”. É sobre uma figura muito polémica da música e do cinema brasileiro. Este é o nosso terceiro filme conjunto. Fora isso, Renato e eu fizemos cada um um filme sozinhos como realizadores: o dele chama-se “Fla x Flu”, é sobre a história de uma rivalidade de futebol entre Flamengo e Fluminense, e eu fiz um filme chamado “Cine Marrocos”, sobre uma ocupação de sem-abrigos num cinema antigo de São Paulo.
[Playlist imersiva de Caetano Veloso, baseada no documentário ‘Narciso Em Férias’, sobre a sua prisão durante a Ditadura Militar — para ouvir aqui:]
O que lhe parece que este filme pode dizer da vossa evolução como cineastas?
Acho que este filme é um reflexo dos nossos interesses, das nossas preocupações com a cultura e a política brasileira, e também um reflexo das nossas aprendizagens com essas figuras de que já falei: João Moreira Salles, Eduardo Coutinho — que já nos deixou —, a Jordana Berg, que montou todos os nossos filmes.
O nosso trabalho conjunto faz uma aposta muito forte na memória, na oralidade, na lembrança de um passado filtrado pelo presente. De certa forma, esse filme é uma radicalização desses procedimentos. É um filme em que vamos à raiz, ao essencial, apostando numa fala de uma única pessoa durante quase uma hora e meia. Diria que é um aprofundamento e uma radicalização das nossas questões estéticas e das nossas preocupações temáticas, sociais e culturais. É como se tivéssemos depurado o que estávamos a fazer e filtrado até ficar só o essencial. Não sei o que vamos fazer daqui em diante.