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SIMÃO COSTA

SIMÃO COSTA

Nas ruas do MIMO, estivemos em Amarante ou foi o mundo num festival?

As raízes, a democracia e “levar a música a um lugar onde só ela pode chegar”. Foi assim que o MIMO 2024 aconteceu, em três dias de música, dança e palavra, com o eixo Portugal-Brasil a ser global.

Num largo, numa igreja, nos claustros, numa sala de teatro. O MIMO foi de África ao Brasil, do Chile a Portugal e não deixou de fazer paragens pelos Estados Unidos e o Reino Unido. Todos estes lugares com elementos em comum: mais do que os géneros — que para o icónico produtor Mário Caldato Jr, com quem falámos mais à frente, não importa categorizar – a música. Foi disso que sempre se tratou, a possibilidade de se dialogar através do som, mesmo que partisse do chilrar dos pássaros no poiso dos claustros, do sino da igreja que remarcava hora após hora a conversa de Marcelo D2 ou o bater de pé que percorria a ponte de São Gonçalo e se ouvia ecoar nos corredores do centro da cidade enquanto os Ilê Ayiê — o primeiro bloco de samba afro-brasileiro que surgiu em Salvador da Bahia e que comemora 50 anos — descia, pela primeira vez, as ruas de Amarante.

Nunca um bloco de samba tinha percorrido as mesmas ruas da cidade que Teixeira de Pascoes e Alexandre O’Neill descreviam nos seus poemas, nos meses de férias que passavam na cidade. O’Neill pelos 17 anos e Teixeira de Pascoes uma vida inteira. E este é um dado relevante, porque mais de uma centena de pessoas, das mais diversas nacionalidades acompanhavam batuque após batuque, ritmo, após ritmo, o bloco Ilê Ayiê. Desde a criança que ficava às cavalitas dos pais, à chefe de cozinha da Taberna Miranda que saiu à varanda com o samba no pé. Ao longo dos três dias o festival fez-se dentro e fora de palco, com dezenas de milhares de pessoas.

“A minha maior contribuição para o rap é cantar samba”, começa por afirmar Marcelo D2 enquanto olha em seu redor. Estávamos dentro da sala destinada à exposição Ocupação Iboru, curada pelo músico e por Luíza Machado Peixoto, que conta com a participação de diversos artistas do mais variado leque de artes, desde a fotografia à ilustração. Além da música, a curadoria e o “roteirismo” são agora ofícios que fazem parte do artista de 56 anos, em que quase 30 deles foram dedicados àquilo que de melhor sabe fazer: “A arte do combate, a arte da resistência”.

As mais diversas nacionalidades acompanhavam batuque após batuque, ritmo, após ritmo, o bloco Ilê Ayiê

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Em torno de nós viam-se pessoas distribuídas pela sala retangular: umas sentadas no chão, com toalhas-páreo ao cumprido, outras descalças e as que restavam focavam o seu olhar nas paredes do museu enquanto Marcelo D2 dizia “vamos gravar um disco para todo o suburbano se orgulhar”. Vinha do filme que o mesmo dirigiu e que rodava uma e outra vez. Com concerto marcado para as 00h30, o grande destaque daquela primeira noite de festival, o brasileiro antecipou o seu contacto com o público estreando o Fórum de Ideias, um espaço aberto ao público, que reunia mais de 50 pessoas. “Luiz António Simbas, o escritor, ele fala que o samba é a luta do trabalhador pelo direito de ser feliz e é isso que estou trazendo para cá”, explica ao Observador enquanto se prepara para receber a filha que corria, dizendo que já tinha comido o seu gelado.

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O artista não deixa de realçar ao longo de toda a conversa que se seguiu, e que durou cerca de uma hora e meia, a importância da sua infância — a mesma que sempre tentou proporcionar aos seus cinco filhos, também presentes nos retratos de família que surgem na exposição. “Eu não quero fazer um disco, quero fazer um movimento”, lê-se em letras grandes numa parede azul que apresenta o seu trabalho. E vivemos esse movimento? “Tenho o privilégio muito grande de fazer música com aquilo que gosto, com aquilo que penso, não me importo muito com o mercado. Estou mais preocupado com uma nova onda. Para mim, ter esse privilégio de estar a fazer um samba novo, rico, tendo 30 anos de cultura de hip-hop com o samba, é inacreditável, todo este movimento é ambição artística”, considera o artista.

E se para Marcelo D2 escrever este novo samba tradicional tem muita representatividade, tal se pode identificar em todo aquele trabalho que esteve, primeiramente, diante dos olhos de centenas de pessoas dia após dia e, pela noite, diante de milhares: conseguiu trazer nove artistas para expor, 10 músicos, e 250 pessoas que trabalharam consigo no filme. Para Marcelo D2 esta é a fase do agora: “Proteger as raízes dos antepassados”. Garante que não pode haver futuro sem memória. O samba é resistência, disse-o. Aplausos largos se prolongaram.

Este é um recomeço para o artista. “O que estou fazendo aqui é tão resistência quanto o Planet Hemp, [grupo de rap que formou] em 1995. Depois de 20 anos de ditadura militar e quatro anos de governo de Jair Bolsonaro. Vivemos num momento de polarização, a extrema-direita alimenta o caos para se poder alimentar dele. Aguentamos tudo”, continuou.

Marcelo D2: “É uma coisa espiritual para os jovens dos guetos do mundo inteiro. Aliás, é muito mais do que só uma cultura. Mas como diz um amigo meu, 'tudo vira comercial de iogurte'. Foi assim com o rock'n'roll e vejo que está a sê-lo com o rap".

Se esta ideia para Marcelo D2 está bem consciente, o artista recorda que  o álbum Jardineiros, do Planet Hemp, em 2022 – data confirmada pela esposa do outro lado dos claustros – foi lançado pouco antes das eleições brasileiras, porque “queríamos ter o mínimo de influência. Não era mais sobre esquerda e direita, era sobre sobreviver.” Foi o único disco que lançou e que não ficou feliz. “Estamos em 2022 e a gente ainda está a falar sobre fascismo, é inacreditável”, terminou. Conta que, em 1995, foi preso porque mencionou numa composição a legalização da marijuana: “Mas este era um jeito de jovens negros falarem sobre a marijuana. Era uma forma de assustar o conservadorismo e puxar um pouco dessa liberdade de expressão”, explica.

Antes de partir para o concerto, percorreu-se o assunto até chegar ao hip-hop. O artista não deixou meias palavras na forma como descreveu o que sente e o que pensa sobre essa cultura específica: “É uma coisa espiritual para os jovens dos guetos do mundo inteiro. Aliás, é muito mais do que só uma cultura. Mas como diz um amigo meu, ‘tudo vira comercial de iogurte’. Foi assim com o rock’n’roll e vejo que está a sê-lo com o rap. É uma armadilha muito grande um jovem que nasce no gueto achar que a elite é quem tem dinheiro e não o conhecimento, e achar que vencer é comprar um Lamborghini”. “É uma armadilha muito grande quando vemos os jovens escrever isso, de ir viver num condomínio, com um grande carro e mencionar que a favela venceu. Mas a favela não venceu, porque continua sem saneamento básico, sem educação”, repete realçando a importância de se pensar sobre o assunto. O sino tocou mais duas vezes. Talvez a conversa tivesse durado mais do que uma hora e meia se assim fosse possível, porque Marcelo D2 teria muito a acrescentar. Mas o resto ficou para o concerto, pela noite.

O samba, o hip-hop e a eletrónica: quem disse que não pode acontecer?

Entre a conversa e o concerto de Marcelo D2, os claustros continuaram a receber pessoas, famílias e grupos de amigos que já se sentavam nas esquinas de pedra ou no chão para o que se seguia: Jaques Morelenbaum & Fred Martins com Joana Amendoeira. Mas houve também quem atravessasse a ponte. Do outro lado, no Parque Ribeirinho, Vitrolab, um outro duo que comemorava dez anos de vida e que chegava pela primeira vez à Europa, numa tour que saudava o hino do Esporte Club Bahia, uma música que compuseram e produziram e que acabava de ser lançada no projeto “Bora Bahêa Meu Bairro”.

Guga e Marcelo Barbosa, irmãos, fizeram as coisas ao contrário: começaram a banda em duas localizações completamente distintas, Guga em São Paulo e Marcelo Barbosa em Aracaju, juntando as “telas” dos ecrãs: “Começámos a compor em 2012, fomos trocando a ‘figura musical’. Voltámos os dois para Salvador da Bahia e a partir daí começámos a trabalhar nesse sentido”, explica Guga. Em 2014 já tocavam no Carnaval de Salvador da Bahia, mas o nome era diferente — Vitrola Baiana. A pandemia seguiu-se e foi então que o projeto modificou e passou a ser um laboratório musical, dando lugar ao Vitrolab. “A estética de hoje é filha desse processo do distanciamento social. Começamos a construir as coisas em casa e a publicar os nossos vídeos na internet, sempre com um convidado percussionista”, um traço muito relevante da música baiana e afro-brasileira.

Marcelo D2, um dos nomes maiores do cartaz do MIMO deste ano e uma das vozes mais ativas, no palco e fora dele

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É certo que o concerto, que decorreu pelas 20 horas, mostrou-se diferente de todos os outros – também porque os problemas técnicos que duraram pouco mais de cinco minutos influenciaram quem não conhecia a banda. O que rapidamente foi ultrapassado pelos irmãos assim que tocaram a segunda canção, Odara de Caetano Veloso, que inclusive, “grande parte do público não conhecia como sendo de Caetano”, explicaram as artistas ao Observador.

O timbre da noite estava dado no palco principal. Se o som do baixo era o que guiava tudo, no público, as danças e os movimentos repetidos eram também orientados pela fila da frente. Mães, pais, filhos, o set estava feito e o Pagode não voltaria a sair de cena. Não houve tempo para grandes pausas. O duo avançou logo que o palco do Ribeirinho iria continuar ao rubro. A Cor do Som, uma banda brasileira com mais de 40 anos de história seguiu com clássicos como Billy Jean e Taj Mahal que a banda tocava e, sem que falhasse, juntou-se Carminho e cantou Carolina, de Chico Buarque.

Para fechar a primeira noite de festival, reservava-se o tão esperado Marcelo D2 com Um Punhado de Bamba, mas as entradas não poderiam ter vindo de melhor partida do que diretamente do Chile, com Newen Afrobeat feat Deal Sosimi. O público acompanhou o palco e o ritmo latino preencheu o mar de gente que se ia juntando cada vez mais. Eis que em 30 minutos tudo se transformou numa roda de samba. No centro do palco uma mesa com uma toalha branca. Essa mesma mesa estendia-se pelo grupo de músicos de forma retangular. O parque Ribeirinho sentia-se em casa. Iboru (novo álbum) também é sobre isso, sobre ser casa. A maior parte das canções foram deste último, mas a Contexto, de Planet Hemp emocionou o público. Ainda assim, foi ao som da melodia de Só Quando o Meu Samba Morrer que se abraçou, dançou e aplaudiua forma como Marcelo e Luíza, mulher do músico, se entrelaçavam verso atrás de verso.

“O desejo de pegar uma coisa e levá-la para um lugar melhor, precisa de ter a mesma energia, a mesma intenção. No fim, tudo é comunicação, a variedade e o risco, também fazem parte disso”: a timidez de Mário Caldato Jr. e a sensibilidade pela música foram claras como a água.

Além do que já tinha dito pela tarde, no Fórum Ideias, o artista foi mais longe e aludiu que a banda representava a zona de Madureira, uma região do Rio de Janeiro considerada o berço do samba. Ao longo da tal mesa víamos todos em destaque: Yaya, no cavaco, Samara Líbano no violão, Luíza Machado Peixoto, Lourdes Peixoto, filha de Marcelo D2 e a banda que acompanha o artista. Estávamos todos à mesa e isso soou a cada um dos espectadores que ali foram para ver, ouvir e sentir Marcelo D2.

“A variedade e o risco também fazem parte da música”

O segundo dia começou cedo e atarefado. O cancelamento de Fatoumata Diawara, uma das artistas mais aguardadas do festival, fez com que alterações tivessem de ser feitas, coisas mínimas em horários, e, apesar disso, esta não deixou de ser uma das tardes e noites mais importantes do festival.

Todas as atenções estavam voltadas para os concertos da noite no palco Ribeirinho, o que a meteorologia de certa forma ameaçou, a chuva começou a dar sinal a partir do final da tarde. Mas um dos grandes momentos esteve exatamente ali, pela tarde, no Fórum Ideias e que passou mais despercebido do que era de esperar. Mário Caldato Jr, também conhecido como Mário C, fez uma antologia perfeita do que foram (e continuam a ser largos) anos de experiência de um dos maiores produtores, masterizadores e engenheiro de som do universo musical mundial. A pergunta que se colocava era mesmo, “Mas o que é que o Mário Caldato Jr não produziu?”

Com mais de uma centena de álbuns que lhe passaram pelas mãos, o artista acompanhou durante uma década os Beastie Boys, o grupo nova-iorquino de rap rock que surgiu no início dos anos 1980, desde a era Paul’s Boutique até Hello Nasty, com a produção inovadora do clássico Check Your Head. Produziu Marcelo D2, “ele é padrinho da minha filha e eu sou padrinho da filha dele”, disse enquanto gargalhava e contava ao Observador a importância da colaboração entre os artistas, pois só assim acredita na magia da música. Mas os nomes não ficam por aqui: Money Mark, Jack Johnson, Soulfly, Beck, Björk, Planet Hemp, Blur, Cibo Matto, The Cult, Day One, Los Lobos, John Lee Hooker, Manu Chao, Molotov, Super Furry Animals, Gruff Rhys, The John Butler Trio, Yoko Ono, One Day as a Lion, Seu Jorge, Nação Zumbi, Bebel Gilberto, Marisa Monte, Vanessa da Mata, Mallu Magalhães, entre muitos outros artistas. E não faltou colaboração com artistas portugueses: Tejo Beat, um projeto que envolvia 10 artistas logo após a Expo de 1998.

O MIMO viaja entre cenários distintos, mas sem interferências: das danças improvisadas e instintivas a momentos intimistas como o concerto de Arnaldo Antunes & Vítor Araújo

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“O desejo de pegar uma coisa e levá-la para um lugar melhor, precisa de ter a mesma energia, a mesma intenção. No fim, tudo é comunicação, a variedade e o risco, também fazem parte disso”, diz. A timidez de Mário Caldato Jr. e a sensibilidade pela música foram claras como a água. Desde a pequena apresentação que levou para falar um pouco mais sobre o próprio e o trabalho que tem feito – isto, porque, Mário ainda aprendeu a tocar um ou outro instrumento e até tentou ter uma banda, mas o que queria mesmo era construir a narrativa, a reprodução a delicadeza e a instrumentalização que o poder do som pode provocar. “Focar na música, só na música, devia ser a coisa mais importante para toda a gente”, começou por dizer ao Observador.

“A música é música, não tem géneros. Sim, subgéneros, mas é uma vibração. Quando ouvimos, o que ouvimos são vibrações. Adoro isso. Até coisas que não são músicas. O som. Há pessoas geniais como Jobim, que pegou no canto do passarinho e transforma uma música”, refere sorrindo. Também por isso Samantha Caldato, mulher de Mário C., tem projetos tão ligados à natureza e à recolha das memórias naturais. A sua performance antecedeu a conversa de Mário C. e o artista não perdeu um único segundo nem desviou o olhar da sua esposa. Falaram entre si, mesmo que nada dissessem.

Há medida que a conversa avançava, decorria do outro lado do camarim o concerto de Flávia Bittencourt que parecia embalar a conversa. O samba. “Aceitei a proposta de Marisa Monte, não sabendo nada do samba, mas a Marisa confiou em mim. Foi uma viagem que correu bem. O trabalho com a Vanessa da Mata também, um trabalho que nunca tinha imaginado fazer e que acabou a ganhar um Grammy. O mesmo com o Seu Jorge, os seus pensamentos, as suas ideias”, continua. Dizia-nos Mário que a música tem uma vida: “As pessoas falam comigo e dizem-nos que determinado disco influenciou a vida delas e ser quem sou. Eu sinto exatamente o mesmo. Cada um tem o seu serviço e este é o meu.”

Ákila.aka.Puta da Silva: “Eu não canto só a experiência da travesti preta, imigrante. Isso é só uma parte da minha existência. Falo de várias outras coisas. Falo de vida, de sociedade, de política, de acessibilidade, de memória, de caminhada, de família. Os meus concertos têm passado cada vez mais por esses diferentes lugares para ativar nas pessoas a acessibilidade”

Caiu a noite e a chuva, como previsto, não abrandou, mas nada disto fez para coisa alguma. Pelas 21h30 em ponto, Ákila.aka.Puta da Silva surgiu na tela do palco. Nele estava a banda, as pessoas bailarinas e uma grande emissão: começou a ouvir-se Grândola, Vila Morena. O espetáculo ainda estava a começar e o pico de tudo aquilo que se tinha visto até então já se mostrava ao rubro. As colunas, ainda que com o som no pico, foram rapidamente ultrapassadas pelas vozes dos espectadores. De punhos ao alto, uma emoção coletiva de luta estabeleceu aquele que seria o tom para o concerto que se seguiria.

Seguiu-se Pescadores. A cantora apareceu num fato de corpo inteiro, justo, sob um grandioso casaco verde que concentrava em si a ideia de redes soltas, misturadas em vários tons de verde. Seguiu-se Maria, tema que não só era conhecida do público como conquistou parte dele que a ouvia e via pela primeira vez. Tanto que Rita Benneditto, a progressista do movimento “tecnomacumba” trouxe a versão original no concerto que seguiu a Ákila. Por vezes, a curiosidade. Noutras, um certo desconforto do público. Mas tais momentos – muito poucos, é um facto – foram ultrapassados pelo entusiasmo coreografado de melodias como Negro é a raiz da liberdade e, como esperado, com a interpretação de Vampiros, de José Afonso. Um apogeu da unanimidade.

Ainda que com alguma dificuldade em perceber-se o que dizia dado os problemas de som, principalmente num espetáculo em que a palavra era tão relevante, conseguiu-se perceber em alto e bom som: “Este é um festival de música brasileira e internacional, gratuito e que traz a palco travestis!”, exclamou Ákila. Momento fulcral deste dia e não só: como confirmou ao Observador, foi a primeira vez que Ákila tocou num festival brasileiro. Marcou um novo capítulo. E isso também se percebeu entre os espectadores, dos miúdos aos graúdos, que quiseram guardar aquele espetáculo na memória, mais ou menos tecnológica.

O palco principal do festival e Mário Caldato Jr, o produtor convidado, tão orador como festivaleiro curioso

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Numa segunda parte do espetáculo, com um longo vestido vermelho e um chapéu característico que nos leva a recuar dois anos e pensar em Ava Rocha, — com umas tonalidades parecidas cantara Joana Dark – a artista arrebatou com Bruxonas e Hétero Curioso. Foi no final desse momento que surgiu com duas bandeiras: a portuguesa e a brasileira. Ákila alcançou um momento artístico que poucos amarantinos tinham visto até então. Desmantelar preconceitos, transformar antipatia em empatia, terrenos armadilhados em diálogos é o objetivo de Ákila e foi algo que também deixou bem claro no seu concerto: “A estrada mostrou-me que o meu público é qualquer público que queira entrar em contacto com o meu som, com o meu pensamento, com a minha existência enquanto artista”, afirma. “Também por isso considerei em fazer as alterações ao nome e à forma como me intitularia sem nunca retirar o Puta da Silva”.

“Eu não canto só a experiência da travesti preta, imigrante. Isso é só uma parte da minha existência. Falo de várias outras coisas. Falo de vida, de sociedade, de política, de acessibilidade, de memória, de caminhada, de família. Os meus concertos têm passado cada vez mais por esses diferentes lugares para ativar nas pessoas a acessibilidade”, sublinha Ákila. “Acessibilidade é o afeto. É o reconhecimento do outro, independentemente de quem ele seja e de onde ele venha. Valorizar o sonho e os movimentos de outras pessoas é conseguir estabelecer mais diálogos.”

Pais e filhos, guerra e paz

Chegámos ao terceiro dia. E se o festival começou fora de palcos e portas, o bloco de samba Ilê Aiyê partiu diretamente do palco do dia anterior para um cortejo que contagiou toda a população durante a tarde de domingo, o último dia do festival. Saindo do Largo de São Gonçalo, em frente ao Mosteiro, o bloco arrancou e percorreu a rua até ao Largo do Arquinho, uma zona central do lado histórico da cidade. Mais uma vez, aparentemente de forma inesgotável, o entusiasmo do público: “Começámos a tournée dos 50 anos no dia 23 de junho e tendo passado por vários países europeus, sentimos que estávamos aqui, mas era como se estivéssemos lá [Salvador], as pessoas eram muito enérgicas”, explicou Marivaldo Paim.

A atenção e a curiosidade sobre o que estava por vir não permitiam que ninguém respirasse mais alto do que toda a delicadeza desconcertante que o espetáculo de Arnaldo Antunes & Victor Araújo transmitiu.

A comemoração dos 50 anos do bloco concentra também um desenvolvimento político, social e cultural que está representado na composição rítmica, coreográfica e das letras das músicas. “O aparecimento do Ilê Aiyê em 1964 foi muito importante, assim como o surgimento de muitos outros blocos em Salvador, porque tínhamos uma perceção do mundo antes e depois do nosso surgimento. A revolução cultural que Ilê Aiyê fomentou contribuiu muito para que a perceção política do nosso povo mudasse. Hoje temos mais consciência da nossa negritude, mais orgulhos de ser negros”, termina Paim.

Dali seguiu-se para o Cine-Teatro de Amarante. Este é o primeiro ano em que o Mimo realizou igualmente concertos no equipamento cultural da Câmara Municipal de Amarante. Ali teve abrigo um dos momentos – senão o momento – mais intimista de todo o festival em 2024 – Arnaldo Antunes & Vítor Araújo. Ainda no backstage, os artistas davam indício de que o concerto atrasaria alguns minutos. Poucos. Quando subiram a palco com Lágrimas do Mar, como se intitula o espetáculo, o público ficou estanque. A atenção e a curiosidade sobre o que estava por vir não permitiam que ninguém respirasse mais alto do que toda a delicadeza desconcertante que este espetáculo transmitiu.

O encontro entre os dois ficou a dever-se a uma ideia de Arnaldo Antunes que já em 2019 tinha lançado O Real Existe, um disco mais centrado nas canções, mais acústico. Minimalista foi exatamente o que Arnaldo Antunes conseguiu recuperar, mesmo sendo um concerto que já tem vindo a ser exibido há dois anos. Um momento só de voz e piano, algo que emocionou, em algum momento, as mais de 250 pessoas que ali estavam sentadas.

Amarante como cidade-palco com vida; e Ákila.aka.Puta da Silva

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A noite de domingo terminou com Dino D’Santiago e, posteriormente, Kebra Ethiopia Sound System a fechar o festival. Não era a primeira vez de Dino D’Santiago em Amarante, mas era a primeira vez que o fazia incluído neste festival. Não há nada que falhe no concerto nem mesmo o pensar das coisas que estão a acontecer, o real, o que existe, o mundo. Foi também por isso que Dino, a meio do espetáculo, elevou uma bandeira da Palestina, partilhou uma história particular de uma amiga e levou todo o público a gritar “Free, free Palestine”. Foi talvez o único artista que o fez ao longo de todo o festival: “Temos de saber de que lado estamos, quando as nossas crianças crescerem e disserem que vocês viram tudo isto e ficaram a fazer swipe, venha mais um. As vidas continuam a passar, crianças a morrer mais do que nunca numa guerra e estamos aqui passivamente a brincar aos contos de fada, como se fosse uma série da Netflix”.

Até para o ano?

Voltando à cidade que o acolheu, de 2015 a 2019, o MIMO não retratou quaisquer quezílias daquele que foi um processo judicial longo, a certeza de mais uma edição, em 2025, é consequência desse mesmo processo, instigado pela própria organização contra a Câmara de Amarante. Em 2020, o executivo local cessou o contrato de pagamento existente para mais uma edição do festival, alegando a impossibilidade de o realizar devido à pandemia de covid-19. No ano passado, a desavença ficou resolvida, tendo sido emitido um comunicado conjunto dando conta da presente edição — a autarquia teria de realizar duas edições então canceladas e já contratadas: 2024 e 2025. Para o ano tudo volta a acontecer entre os dias 18 e 20 de julho.

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