Um dia de negociações tensas que terminou sem fumo branco. Com a aproximação da primeira votação e com um impasse negocial que continua a não ter fim à vista, na agenda de António Costa só coube uma palavra: Orçamento. Foi dele que o primeiro-ministro falou de manhã, longamente, aos jornalistas; à tarde, longamente, em reuniões com os partidos de esquerda; e à noite, de novo, aos jornalistas e aos jovens do PS. Acabou o dia com uma negociação ainda por fechar, com mais duas reuniões agendadas com o Bloco de Esquerda — uma técnica, outra com a presença de Costa –, que garante que continua a não haver acordo, e silêncio, pelo menos público, da parte do PCP.
Round one: ainda da parte da manhã, António Costa aproveitava a primeira leva de microfones dos jornalistas, que estavam no Panteão Nacional para acompanhar a homenagem a Aristides Sousa Mendes, para fazer o prefácio das reuniões. Com uma dupla estratégia que tem marcado os discursos dos socialistas nesta altura de incertezas: por um lado, ênfase na “humildade” e na “total disponibilidade” do PS para negociar; por outro, uma sugestão de pressão sobre os partidos, usando para isso a ameaça de crise política — ainda que sem carregar na dramatização — e a garantia de que as contas certas são mesmo um princípio sagrado para este Governo.
Aos microfones, um Costa aparentemente bem disposto foi dizendo e repetindo: o PS está humilde, aberto, disponível para negociar, incluindo temas extra-orçamentais — são esses que trazem “novidade” a esta negociação. Na verdade, já no ano passado o Bloco de Esquerda tinha misturado as leis laborais no pacote de medidas que exigia para aprovar o Orçamento, e dessa vez não correu bem: o partido acabou a votar contra o documento. Desta vez, a novidade é mesmo que o PCP decidiu seguir a mesma estratégia — e agora o Governo assume-se disponível para negociar, “sem linhas vermelhas”.
Apesar das garantias, a verdade é que há pelo menos uma linha vermelha: a intocável estratégia das contas certas, que fez com que nenhuma agência internacional piorasse o rating de Portugal porque os mercados “reconhecem a estabilidade do Estado português”. O aviso chegou até à ameaça com os tempos da austeridade, cujo fim uniu a geringonça: “A suspensão das regras europeias não dura para sempre. É fundamental para não repetirmos a receita austeritária que houve na crise anterior”.
Um argumento que o PS considera intocável, mas que dificilmente sensibilizará a esquerda, sobretudo tendo em conta a previsão de crescimento económico do próximo ano (e a suspensão das regras orçamentais, que ainda estará em vigor em 2022).
Aviso final de um Costa bem disposto e que chegou a citar Jorge Palma para dizer que há “caminho para andar”: sem querer assumir a dramatização, o primeiro-ministro citaria ainda Marcelo Rebelo de Sousa — que na semana passada considerava inevitável a convocação de eleições antecipadas caso não haja Orçamento aprovado — para dizer que é preciso evitar “uma complicação dessas”. “A solução é radical”, sugeriria Costa. E não é a sua preferida, pareceu querer acrescentar. Mas se “quem de direito” a coloca…
A pressão de Jerónimo, com o crescimento na mira
Até ver, os avisos de Costa, ainda em tom amigável, não comoveram a esquerda. Enquanto Costa já tinha abandonado o Panteão e seguido para a primeira reunião do dia, com o Bloco de Esquerda, Jerónimo de Sousa aproveitava uma sessão sobre os direitos dos idosos para disparar a primeira (e única pública) dose de pressão do dia.
Defendendo os aumentos de reformas e fins de cortes para reformados com longos anos de descontos, Jerónimo lamentava que o Governo “teimasse” em “não dar um sinal de inversão” nessas políticas e parecia responder a Costa: “Não é aceitável que, para 2022, em que o Governo prevê crescimento económico de 5,5% e em que o aumento dos salários e pensões deveriam ser elementos fundamentais na dinamização da economia”, essas medidas continuem por tomar. No ano passado, o PCP deixou passar um Orçamento para tempos pandémicos; agora quer (muito) mais.
E Jerónimo continuou: recusando “todas as pressões”, frisou que “o que se exigem são respostas para os problemas e não dramatizações políticas”. Até à votação na generalidade “é tempo de encontrar respostas que são possíveis”, insistiu. A bola ficava, portanto, do lado do Governo, com quem se reuniria no Palácio de São Bento, a seguir ao Bloco.
Com Bloco “não há acordo”, mas há mais duas reuniões
Era já fim da tarde quando os jornalistas, que esperavam pelas conclusões da reunião entre socialistas e bloquistas, receberam uma lacónica síntese de fonte do Bloco sobre o encontro. Lia-se em segundos e a conclusão era rápida: “Não há acordo”. “Nas pensões, o governo não trouxe qualquer proposta. No trabalho, recusa a reversão de qualquer das 5 regras que o Bloco quer reverter, ficando por medidas simbólicas que não concretizou por escrito. Na saúde, aguardamos novas redações com eventuais aproximações do governo”. A mensagem acabava assim: “Prevista nova reunião”.
A resposta de fonte do Governo levaria poucos minutos a chegar. Ao Observador, fonte do Executivo apressava-se a responder e a contrariar o Bloco, embora sem entrar em pormenores: “O Governo apresentou avanços em vários domínios, nomeadamente nas áreas do Trabalho e da Saúde. Há pontos em que subsistem divergências já conhecidas. Vamos continuar a trabalhar. Há novas reuniões previstas”.
Comparadas as duas versões, haveria várias conclusões a retirar: que não houve caminho feito nas propostas relativas às pensões (tema caro também ao PCP); que terá havido “avanços” que o Bloco desvaloriza no Trabalho; e que haverá aproximações na Saúde, mas o partido quer ver primeiro as redações finais das propostas. A negociação não está, assim, fechada: embora o Bloco pareça irredutível, ao que o Observador apurou, está agendada nova ronda técnica sobre pensões e depois uma reunião com a presença do primeiro-ministro.
Já do lado do PCP, não houve mais do que silêncio. Ao Observador, nem o partido nem o Governo quiseram dar esclarecimentos sobre a nova reunião, pelo que no ar ficaram apenas as palavras de Jerónimo de Sousa. Os próximos dias trarão a confirmação de se, como o secretário-geral do partido dizia, até à votação da próxima semana é tempo de negociar e se haverá, portanto, novas reuniões como acontece com o Bloco de Esquerda. O PCP tem tentado manter-se discreto sobre o conteúdo dos encontros, mas subido o tom nas suas sessões públicas, comícios e redes sociais, em que espalha várias vezes por dia argumentários contra o Orçamento.
Ainda esta terça-feira, o partido publicava uma espécie de resumo das várias reivindicações que terá levado a Costa, com base mais uma vez nos “meios financeiros avultados” que se anunciam para o próximo ano: aumento dos salários, fim da caducidade da contratação coletiva, aumento de todas as reformas e fim das penalizações para as longas carreiras, aumento do subsídio do desemprego, mais contratações e incentivos no SNS, creche gratuita para todas as crianças, alívio fiscal para os rendimentos abaixo dos mil euros e a revogação da “lei dos despejos”.
Contas certas: a “chave” para o futuro do país
Foi já no rescaldo da reunião com os comunistas que António Costa apareceu, de noite, na cidade universitária para falar aos jovens da Juventude Socialista sobre o Orçamento. Arrancou com um recado curto para os jornalistas — a tarde foi “de trabalho”, que o Governo não dá por fechado, e a “confiança” de que conseguirá fazer um bom Orçamento mantém-se.
Depois, aos jovens do partido, lembrou as medidas dirigidas dirigidas aos mais novos e deixou recados que a esquerda poderá anotar, tal como o líder da JS, o deputado Miguel Costa Matos, também se encarregou de fazer, ao avisar: “Na espuma dos dias, às vezes, as escolhas passam um bocadinho despercebidas. A escolha neste momento é fechar a porta ou continuar o diálogo”, alertou.
Desde logo, Costa apostou no reforço da mensagem que arrepia Bloco de Esquerda e PCP: “São as contas certas que nos permitem fazer o que é necessário fazer”. E um mau sinal para as exigências dos partidos que defendem o fim do fator de sustentabilidade nas pensões: “Não conseguimos sequer imaginar termos tido a capacidade que a Segurança Social teve” durante a pandemia “se não tivéssemos construído uma Segurança Social mais robusta e sustentável”.
Depois, a dramatização da mensagem: manter as contas certas não é só “chave” para manter as taxas de juro baixas, assim como a confiança dos mercados — é mesmo um “bem inestimável que em circunstância alguma podemos perder”, já que isso poderia colocar em risco “o futuro” do país.
No PS e no Governo, a convicção tem sido aliás que este será a maior dificuldade a ultrapassar no diálogo à esquerda: as conquistas de Costa — primeiro com Mário Centeno ao lado, agora com João Leão — a endireitar as contas e a conseguir o primeiro excedente orçamental em democracia são vistas como uma espécie de “seguro de vida” para o PS. E logo um PS que se empenha em apagar a memória da bancarrota de José Sócrates, apresentando-se como um partido que se preocupa com as contas e com a imagem junto dos mercados internacionais.
Haveria prenúncios melhores para a esquerda durante a sessão — à boleia das medidas para os jovens, Costa recordou a Agenda do Trabalho Digno que quer aprovar já esta quarta-feira, em Conselho de Ministros, para combater a precariedade, assim como o reforço da gratuitidade das creches, deixando no ar que “há novos passos” que podem ser dados neste dossiê, caro sobretudo ao PCP. Mas até ver os compromissos que o Governo admite nestas matérias não chegam para a esquerda; resta saber se os trunfos que Costa poderá ainda guardar na manga para as últimas reuniões poderão inverter um impasse cada vez mais evidente e evitar uma crise política.