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Não foi o adeus às armas, mas é como se tivesse sido. A actividade operacional a que aquela guerra obrigava manteve-se nos seus níveis normais. Mas operações em larga escala, como aquela, de planeamento exigente, movimentando larga soma de efectivos e material, essas ficaram por ali. Não houve mais nenhuma, nem ali, na Guiné, nem em Angola ou em Moçambique. Foi, por isso, a última grande operação militar das Forças Armadas Portuguesas (FA) na guerra colonial.
Era mais ou menos um mês o tempo que faltava para a eclosão do golpe militar do 25 de Abril na Metrópole e da abertura do processo descolonizador que se lhe seguiu – acontecimentos que muito tinham ficado a dever à usura e ao desgaste provocados pelo arrastamento de uma guerra para a qual cada vez menos se ia descortinando um fim militar. Continuava válida a máxima segundo a qual um exército regular podia fazer frente a uma guerra subversiva, mas não a podia derrotar, como ficara demonstrado na Malásia, no Quénia ou na Argélia.
O novo Comandante-Chefe da Guiné, general Bettencourt Rodrigues, aplicando ali uma maneira de proceder trazida de Angola – nunca perder a iniciativa, reagir prontamente a acções do adversário, eram os princípios que o guiavam – ordena o lançamento de uma operação destinada a “aniquilar, no mínimo a desarticular a presença do IN na região compreendida entre a fronteira do Senegal, Canquelifá, Cofa e Patom”. O sugestivo nome dado à operação é “Neve Gelada”.
Fazia algum tempo que Canquelifá, no NE da Guiné, em especial o quartel onde na altura estacionava a Companhia de Caçadores (C.Caç) 3545, do comando do capitão miliciano Fernando Cristo, homem de Coimbra, vinha sendo alvo de acções de flagelações do PAIGC, com o emprego de canhões sem recuo e morteiros 120. Em toda a zona envolvente ocorriam amiúde emboscadas e minagens destinadas a dificultar os reabastecimentos da posição. Há dois meses que a companhia não era reabastecida de víveres. Numa tentativa de aliviar a pressão ou prevenir surpresas, a companhia já fora reforçada com um pelotão de artilharia e outro de milícias.
Acções de reconhecimento aéreo e outras, em especial baseadas em redes de informadores, permitem identificar duas “bases de fogos” (BfIn) do PAIGC, uma em Sinchã Jidé, outra em Gandemba. É daí que partem as flagelações. São montadas de manhã, nos dias escolhidos para as flagelações, com material e pessoal trazidos em viaturas procedentes do “lado de lá” da fronteira, no Senegal, aonde tornam depois de “concluído o trabalho”. Por aqueles tempos começaram mesmo a manifestar-se indícios de que o PAIGC poderia estar a preparar um assalto a Canquelifá – o que por si só, independentemente do desfecho disso, constituiria sempre um revés.
A força mobilizada para execução da “Neve Gelada” é constituída por três companhias do Batalhão de Comandos Africanos (BCmdsAfr), distribuídas por outros tantos agrupamentos, que recebem os nomes Alfa, Bravo e Charlie. No total, 450 homens. Foram igualmente mobilizados dois caças Fiat G-9, mantidos em alerta em Bissau, e quatro helicópteros, dois dos quais armados. O comandante da força e da operação é o major “Comando” Raul Folques. O 2º comandante é o capitão “Comando” Matos Gomes (que anos volvidos, inicialmente sob o pseudónimo Carlos Vale Ferraz, se lança numa actividade literária com enfoque na guerra de África). O oficial de operações é o capitão, também “Comando”, Batista da Silva.
Raul Folques, um algarvio de Vila Real de Santo António com fama de rijo e destemido, fora destacado para a Guiné em 1972. Já com a patente de major, a missão a que vai destinado é a de adjunto do tenente-coronel Almeida Bruno no comando do Batalhão de Comandos Africanos. Mais tarde substitui-lo-á no comando. Antes fizera três comissões em Angola, as duas últimas com participação activa na “Siroco”, uma operação helitransportada de “Comandos” que entre 1969 e 1971 limpou o Leste do território da presença do MPLA. Bettencourt Rodrigues, ainda brigadeiro, era o comandante militar da área, conhecida por ZML.
As três companhias, como o eram todas as unidades do Batalhão de Comandos Africanos, são quase completamente constituídas por efectivos autóctones da Guiné, incluindo os seus graduados. O de mais elevada patente, ao qual é atribuído o comando do agrupamento Alfa, é o capitão Zacarias Saiegh. É pessoal muito experiente, conhecedor do meio e do terreno e especialmente motivado. Mas também muito propenso a excessos de violência contra os elementos do PAIGC capturados. O que, tudo somado, explica o medo real que os Comandos Africanos infundem no PAIGC.
A sanha contra eles movida pela Segurança do novel Estado da Guiné-Bissau, nos primeiros anos de independência, foram sempre vistas como fruto de sentimentos de vingança ou então de desconfiança e medo, neste caso advindos de “pressentimentos” de que mais tarde ou mais cedo se deixariam tentar por acções conspirativas impelidas pelo seu valor militar. Muitos acabaram por ser mortos; a maior parte pôs-se a salvo, refugiando-se em Portugal ou no Senegal.
Supresa, factor determinante
A operação, na sua fase crucial, é desencadeada em 21 de Março, com o lançamento de dois agrupamentos numa manobra destinada a cercar simultaneamente as duas BfIn. O terceiro agrupamento foi mantido em Canquelifá, PC da operação, como força de reserva. A força completa havia chegado a Canquelifá, procedente de Piche, ao fim da manhã daquele dia. Menos de uma hora depois, às 13h15, o tempo necessário para todos aconchegarem o estômago com o recurso à ração de combate, os dois agrupamentos puseram-se em marcha em direcção aos alvos, sempre progredindo pelo mato.
Às 14h30, numa altura em que se encontravam ainda em fase de progressão, o quartel e povoação de Canquelifá começaram a ser alvo de uma nova flagelação com fogo ajustado de morteiros 120 e canhões sem recuo com origem nas duas BfIn. O que aquilo queria dizer era que a progressão de ambas as forças, apesar da mata aberta e de árvores de pequeno porte que é a daquela parte do território, não havia sido detectada pelo PAIGC, que também não se teria dado conta da chegada dos agrupamentos a Canquelifá. A não ter sido assim não teria iniciado a flagelação; estaria alerta para resistir.
Apanhada de surpresa quando o assalto final ocorreu, às 15h00, a força do PAIGC não quebrou nem destroçou. Resistiu tenazmente, conforme assinala o relatório da operação, o que obrigou ao emprego da força de reserva do capitão Matos Gomes, que tinha permanecido em Canquelifá. A resistência não tardaria, porém, a entrar quebra, com fuga dos guerrilheiros ilesos em direcção ao Senegal. Tinha sido mantido aberto um corredor com o fim de permitir a fuga, que deveria ser batido por um dos heli-canhões, que chegou tarde.
O estado de surpresa em que foram apanhados não viria a permitir ao PAIGC evitar o abandono do material pesado, designadamente três morteiros completos 120 e 367 granadas respectivas. Cai também nas mãos da força atacante uma partida de víveres. O relatório da operação refere igualmente que foram causadas 26 baixas ao PAIGC, “sendo 2 de cor clara, presumindo-se serem cubanos e 1 enfermeira, que se presume igualmente ser cubana” (sic). Do lado atacante registaram-se três mortos, seis feridos graves e 16 feridos ligeiros.
Vinte dias depois o 25 de Abril
A operação foi dada por concluída em 31 de Março, no termo de operações de limpeza destinadas a bater a área e a armadilhar o terreno. A 3 de Abril, a meio da manhã, é a vez de Bettencourt Rodrigues, chegado de helicóptero, vir em pessoa a Canquelifá. Os “Comandos” já haviam regressado a Bissau. Vem transmitir ânimo ao pessoal da C.Caç 3545 que ali permanece. Faltavam exactamente vinte e dois dias, contados um a um, para o irromper do pronunciamento militar de 25 de Abril que a seu tempo, pouco tempo, viria a dar por encerrada a guerra colonial em todos os seus três TO’s.
Quando Marcello Caetano convidou Bettencourt Rodrigues para governador da Guiné e comandante-em-chefe das FA no território, entregou-lhe, contado pelo próprio, cópia do relatório de uma missão de avaliação efectuada ali pelo então CEMGFA, general Costa Gomes. A conclusão que dele consta – a Guiné é militarmente defensável, bastando que ao dispositivo daquele momento sejam feitas algumas alterações – é partilhada por Bettencourt Rodrigues. Desde que chegou já procedeu a alterações que lhe pareceram convenientes, em especial na disposição da quadrícula, assim como pediu armamento mais sofisticado. Já o informaram que está em Lisboa, pronta para seguir, uma bateria de misseis antiaéreos “Crotale” para reforçar o sistema de defesa anti-aérea de Bissau.
A satisfação que Bettencourt Rodrigues irradia no dia 3 em Canquelifá, parece não ser estranha a um sentimento que geralmente compraz aqueles que por uma razão ou por outra por ele são invadidos: o de que a razão estava do seu lado. A “Neve Gelada”, é o que pensa, provara que as FA na Guiné não tinham perdido a iniciativa; mantinham plena capacidade táctico-operacional, razão pela qual nenhuma parte do território lhes estava vedada. A aviação também continuava a operar, apesar da ameaça dos “Strella”. Era o que o relatório de Costa Gomes queria dizer e aquilo em que também ele acreditava.