Reportagem em Easton, Pensilvânia
Palavra de quem trabalhou nas urnas nestas eleições: “A seu tempo, toda a gente tenta roubar umas eleições”. E palavra da mesma pessoa: “Nós tínhamos tantos olhos em cima e sabíamos que desta vez ia ser tão complicado que tivemos todos os cuidados possíveis para garantir que tudo era feito sem falhas”.
A pessoa em questão é Tom Bruno. Três dias depois das eleições, este ex-líder sindical na reforma está já cansado de ouvir falar e de falar de política. Por isso, decidiu ocupar a manhã desta sexta-feira com algo que lhe andava a chatear a cabeça há dias: instalaram-lhe uma nova cobertura lateral na casa, mas não puseram bem o betume. Então, acordou, pegou nos materiais que tinha à mão e pôs-se a reparar os estragos.
O problema é que, enquanto se dedica a este trabalho de bricolage, continua a ser difícil esquecer outro tipo de estragos — em específico, os da conferência que Donald Trump dera na véspera a partir da Casa Branca. “Eles estão a tentar roubar as eleições”, disse o Presidente dos EUA, sem apresentar provas ou apontar exemplos.
Tom Bruno garante que isto é tudo “ridículo” e, no caso específico da Pensilvânia, aponta a culpa para a decisão dos republicanos a nível estadual, que não permitiram que a votação dos votos por correspondência fossem desta vez contados à medida que fossem recebidos, sem que os resultados fossem divulgados. Por essa decisão, a enchente de votos por participação ficou toda por tratar até 3 de novembro — e registar um voto destes não é igual a registar um voto qualquer. Para fazê-lo, é preciso abrir um envelope, ver a assinatura e a identificação do eleitor nele colocadas, confirmar se ambas correspondem com o que está nos registos. Só depois é que o voto é retirado e colocado numa máquina que efetiva a contagem. “Tudo isto leva tempo, como é evidente”, sublinha.
“Ao dizer que as eleições foram roubadas, o que ele quer fazer é precisamente roubar as eleições para o lado dele”, diz Tom Bruno. “Ele pode ir a tribunal. Ele que vá a tribunal. Mas não há provas nenhumas!”
Este democrata vive em Easton, a maior cidade do condado de Northampton, há mais de 30 anos. O facto de este condado da Pensilvânia ter votado maioritariamente em Joe Biden deixa-o particularmente descansado e confiante. “Se Joe Biden está à frente aqui, é porque está à frente no país”, diz com orgulho. É que este é um daqueles sítios onde raramente falta a razão em eleições presidenciais nos EUA: com a exceção das eleições de 2000 e 2004, desde 1920 que quem vence aqui acaba também por vencer as eleições presidenciais. E, de acordo com o The New York Times, o condado de Northampton tem mais de 98% dos votos contados e conta neste momento com uma ligeira vantagem de Joe Biden sobre Donald Trump: 49,7% sobre 48,9%.
Enquanto Donald Trump põe em causa estes resultados, outros negam qualquer fundamento a essa tomada de posição — incluindo gente do seu próprio partido na Pensilvânia. Na manhã desta sexta-feira, o senador republicano daquele estado, Pat Toomey disse com clareza à CBS: “Simplesmente ninguém me mostrou provas — ou a qualquer outra pessoa de que eu saiba — de qualquer tipo corrupção ou fraude amplas”.
Em entrevista ao Observador, também o estratega republicano da Pensilvânia Chris Nicholas nega qualquer veracidade à declaração de Donald Trump. “Há sempre irregularidades de pequena dimensão em atos eleitorais, porque só se vota de dois em dois anos, desta vez houve muitos voluntários novos e as máquinas eram novas”, diz ao telefone.
Porém, Chris Nicholas não vê razão nas queixas de Donald Trump porque, de forma geral, todas as questões que foram a votos na terça-feira correram bem aos republicanos na Pensilvânia — com a exceção aparente das eleições presidenciais. Ali, os republicanos aumentaram a maioria na Câmara dos Representantes estadual; mantiveram a maioria no Senado; venceram a eleição para o auditor de contas estaduais; e podem ainda ter ainda eleito o responsável pelas finanças do estado.
“Como é que é possível que todas aquelas corridas tenham corrido tão bem ao Partido Republicano e, depois, as presidenciais correm mal?”, questiona. “Porque houve entre 4% a 6% de republicanos que votaram em todas as opções republicanas menos para o Presidente. Por isso, talvez o Presidente tenha de olhar para si mesmo para encontrar um culpado.”
Tom Bruno vê pela frente dias tensos para os EUA. No dia das eleições, conta como um eleitor foi até às urnas vestido com roupa pró-Trump e munido com uma AK-47. “Eu virei-me para ele e perguntei-lhe ‘mas você está à espera do quê, de uma guerra?’”, conta. “Se calhar está mesmo!”
Também Alyssa Van Emburgh coloca essa possibilidade. Para esta ex-eleitora republicana que há 11 anos deixou de o ser para passar a votar no Partido Libertário (desta vez encabeçado por Jo Jorgensen e com uma previsão de 1,1% neste condado), a possibilidade de haver motins provocados pelos apoiantes de Donald Trump é real.
“Vai haver motins de certeza, como haveria em qualquer um dos resultados”, diz, com a sua farda de assistente social vestida. “Trump tem seguidores muito fortes que, neste momento, já estão a protestar em locais de contagem de votos. O facto de irem armados já indicia alguma coisa e eu sinceramente estou a preparar-me para o pior.”
A causar preocupações estão já alguns episódios e exemplos chegados dos diferentes centros de contagem no país. Em Filadélfia, foram detidos dois homens que viajavam armados da Virgínia até ao Pennsylvania Convention Center, onde se contam os últimos votos daquela cidade maioritariamente democrata. Tanto no Michigan como no Arizona, também já apareceram apoiantes de Donald Trump armados com armas de grande capacidade.
No condado que quase sempre tem razão, fica, então, claro que democratas e independentes estão receosos daquilo que os eleitores republicanos podem fazer perante um resultado desfavorável. Porém, o que os eleitores republicanos do condado de Northampton nos dizem é relativamente diferente — e, como também eles vivem e respiram o mesmo ar no condado que tem quase sempre razão, talvez valha a pena ouvi-los.
“Hay que escuchar a Dios, you know?”
Gerson Santana ficou inquieto quando tentou falar com Deus e, desta vez, não recebeu resposta. Para este pintor da construção civil de 45 anos, que nasceu nos EUA e passou a sua vida entre este país e a República Dominicana, de onde são os seus pais, o hábito em época de eleições é sempre o mesmo: dois ou três dias antes de as urnas abrirem, ajoelha-se e pergunta Deus: “Senhor, quem vai ganhar?”
A primeira vez que fez isto foi em 2000, nas presidenciais dominicanas. Dessa vez, garante que ouviu de Deus que Hipólito Mejía sairia vencedor — e assim foi. Desde então, essa pergunta tem tido sempre retorno. Até que, desta vez, fez o mesmo para saber se era Donald Trump ou Joe Biden o vencedor. Quando a Gerson Santana, o desejo está na vitória de Trump, como prova o cartaz que tem à porta de casa onde se lê “Latinos com Trump”.
Mas, desta vez, Gerson Santana não recebeu nenhuma resposta do lado de lá. “Ele não me disse nada”, conta, gesticulando efusivamente os braços em torno do tronco nu. O vazio que recebeu apanhou-o e surpresa. “Fiquei confuso, passei mal durante vários dias, nem saí nem de casa nem tomei banho, nada. Não sabia o que era procurar a voz de Deus e não tê-la. Mas eu sei que se não a tiver, é por alguma razão.”
Gerson Santana nasceu nos EUA, mas está imerso na cultura dominicana — tanto que prefere falar em espanhol do que em inglês, embora acabe por falar o primeiro com as muletas linguísticas do segundo. “Hay que escuchar a Dios, you know?”, diz várias vezes. Mesmo que, desta vez, não tenha conseguido ele próprio fazê-lo.
Resta-lhe agora esperar pelos resultados. “E confiar em Deus”, insiste. “Se Deus tirar de lá Donald Trump e puser Joe Biden, será porque tem as suas razões. Ele saberá.”
Nick nem tem idade para votar, mas vive estas eleições como qualquer adulto. Naquela casa, quem pôde votou em Trump — e Nick segue essas pisadas tanto quanto pode. Mesmo quando está em casa, usa um boné vermelho da campanha do Presidente, com o slogan Make America Great Again (em português, “Fazer a América Grande de Novo”).
Nos últimos dias, este adolescente de 15 anos tem-se dividido entre ir às aulas e chegar a casa para acompanhar todas as notícias que lhe chegam sobre as eleições. Quando o encontramos, a televisão está na Fox News e o computador está por todo o lado. “YouTube, Google… vou buscar informação a todo o lado”, diz, sem se recordar do nome das fontes primárias.
“Para mim, pelo que estou a ler e a ouvir, as eleições estão a ser roubadas a Donald Trump sem dúvida nenhuma”, diz. Admite que não tem exemplos — “É difícil explicar” — mas ainda assim refere que “é impossível que ele perca na Pensilvânia”.
Mas e se perder mesmo? Perante essa questão, Nick suspira fundo. “Não creio que valha a pena começar a disparar tiros por isso”, diz quase de reflexo. “Se houver motins do outro lado, cá estaremos para nos defendermos, aos cidadãos que cumprem a lei e à nossa propriedade. Mas não acho que valha a pena.”
Também Gabby Fritzinger, de 69 anos, não crê que valha a pena contestar os resultados. Não é que não acredite que há fraude eleitoral em curso. “Os democratas estão a roubar-nos as eleições”, diz taxativamente esta eleitora de Donald Trump. “Eu tenho visto muita coisa, tenho lido muita coisa, e a quantidade de histórias de boletins que desapareceram é enorme, é um roubo inacreditável”, diz, sem referir exemplos destas possibilidades que, mesmo nestes termos vagos, não foram apurados nem noticiados por fontes credíveis.
Horas depois de Gabby Fritzinger nos ter recebido à porta de sua casa em Easton, Joe Biden discursou ao país. O democrata colocou água na fervura dos rumores que diziam que ele se preparava para se declarar vencedor das eleições — mas, embora não tenha colocado esse cenário para agora, deixou claro que olha para ele como um horizonte próximo e certo.
“Não temos uma declaração final de vitória, mas os números dizem-nos o que é evidente: eles apontam para uma história clara e convincente em que vamos vencer esta corrida”, disse Joe Biden logo ao início do seu discurso. Dirigindo-se aos seus apoiantes, pediu-lhes calma e paciência. “Sei que as tensões tão altas, especialmente depois de umas eleições duras como as que tivemos”, diz. “[Mas] deixem o processo funcionar à medida que contamos os votos. Demonstrámos mais uma vez aquilo que provámos ao longo de 244 anos neste país: a democracia funciona e o vosso voto será contado. Não quero saber que eles tentem impedi-lo, isso não vai acontecer.”
No final do seu discurso, Joe Biden deixou claro que aquele não será o único destes dias que se seguem. “Espero vir a falar convosco amanhã”, disse o ex-vice-Presidente, apontando então para sábado. Quando esse momento chegar, por mais que lhe custe, Gabby Fritzinger diz-se pronta para aceitar o que vier aí. “Se Deus quer que Joe Biden vença as eleições, mesmo que desta forma totalmente desonesta, então é porque tem razões para deixar que isso aconteça”, diz. “Pela graça de Deus, eu vou aceitar esse resultado e Donald Trump devia fazê-lo também.”