Ia a tarde a meio quando no Complexo Desportivo do Casal Vistoso, em Lisboa, se ouviu uma das maiores ovações da tarde, a primeira da convenção do Bloco de Esquerda. Desta vez, não estava a ser aplaudida a provável nova líder, Mariana Mortágua, nem a coordenadora que está de saída, Catarina Martins; a convenção estava satisfeita por ouvir o fundador Luís Fazenda a definir a posição da direção em relação à guerra da Ucrânia — “temos de ser solidários, não há questões” — num dos pontos que mais controvérsia geram dentro do partido.
São os próprios críticos internos, os membros da moção E — que concorre contra a moção A, de Mariana Mortágua — que assumem: a questão da guerra é uma das principais “divergências de fundo” entre os dois grupos. Não há assim tantas — terminada a época da geringonça, ambos defendem uma oposição dura ao PS absoluto e uma associação maior aos movimentos sociais e à contestação nas ruas — mas foram suficientes para pôr as duas moções em confronto.
De um lado, o dos críticos — em posição tão minoritária que os próprios admitiram desde logo não terem hipótese de ganhar –, disparou-se uma variedade de críticas à direção: houve perguntas sobre o que foi uma deputada do Bloco fazer à Ucrânia (acompanhando Augusto Santos Silva), um rol de críticas à falta de democracia interna (“isto é um partido, não é uma igreja”) e uma exigência de definição maior das políticas e da relação com o PS.
A direção, que continua presente na lista apresentada por Mariana Mortágua, optou por reagir pouco, mas ainda aproveitou para lançar algumas farpas — sobretudo na questão da Ucrânia, aproveitando para colar as posições dos críticos às do PCP e esclarecer que não é exatamente fã de Volodymyr Zelensky, mas que isso não muda a sua posição relativamente à invasão.
Guerra divide: “O BE foi à Ucrânia fazer o quê?”
A guerra terá sido mesmo o principal fator de discordância na convenção. Pedro Soares, porta-voz da moção E, assegurou-se disso mesmo quando subiu ao palco para apresentar o documento e disparou: ““Cria enorme perplexidade ver dirigentes do BE declarar que a posição do Bloco é a mesma do Governo. Mas essa não é a mesma da NATO?”.
E foi mais longe: “Não menos perplexidade causa a integração do Bloco numa delegação à Ucrânia a convite de um neonazi organizador das piores perseguições à oposição de esquerda no país”. Era uma referência à viagem que uma delegação parlamentar fez a Kiev, a convite do presidente do Parlamento ucraniano, e que incluiu a deputada bloquista Isabel Pires, o que deixou os críticos internos “chocados”. “O BE foi à Ucrânia fazer o quê? Comprometer-se com uma posição euro-atlântica de prolongamento da guerra?”.
Boa parte das críticas dos membros da moção E têm, tal como acontece no discurso do PCP, a ver com a natureza do regime e Governo ucraniano, nomeadamente com a “perseguição” a partidos de esquerda (alguns foram proibidos). E esse foi um ponto que a direção se esforçou por explicar e separar: uma coisa é a opinião da maioria do Bloco sobre o executivo de Zelensky, e essa também não é boa; outra é a posição sobre a invasão.
Em entrevista ao Observador, o dirigente José Soeiro desenhou a linha que separa as duas questões: o valor da soberania está primeiro — “também não tínhamos nenhuma simpatia por Saddam Hussein quando o Iraque foi invadido”, recordou. No púlpito, o também dirigente Jorge Costa dedicou-se a explorar a divisão no Bloco, garantindo que a posição do partido — de “solidariedade com o povo ucraniano” — não era “óbvia”: “Parte da esquerda internacional ficou na ambiguidade ou até alinhou mesmo [com a Rússia]. Não é por ser hostil aos Estados Unidos que um regime como o de Putin deixa de ser imperialista”, argumentou.
Já Luís Fazenda fez referência a uma entrevista do histórico Mário Tomé ao Observador, em que colocava a hipótese de a Ucrânia ter de ceder território à Rússia para chegar à paz, e respondeu: “Não se pode dizer Putin fora da Ucrânia e não se pode dizer depois numa entrevista que parte da Ucrânia pode ficar para a Rússia. Temos de ser solidários, não há questões. Ou a esquerda toma conta da questão da autodeterminação dos povos ou os fascistas avançam com os nacionalismos.”
O assunto não é, definitivamente, pacífico: aos microfones do Observador, o ex-deputado e membro da moção E Carlos Matias também criticou a posição da maioria, que os críticos dizem ser hipócrita, e rematou: a direção tem medo de se “comprometer” em relação à NATO. Aqui, o debate não trouxe qualquer espécie de acordo.
O défice de democracia interna e o “geringoncismo” (com orgulho)
O resto dos ataques foram sobretudo lançados pelos críticos, que a direção optou quase sempre por ignorar. Pedro Soares abriu logo a sua participação na convenção comentando, ao Observador, a intervenção inicial de Catarina Martins, onde disse faltar “falar sobre a necessidade de restabelecer o diálogo interno dentro do BE”.
Essa falta de diálogo e de democracia interna é uma crítica recorrente deste lado do Bloco, que colou com os ataques que Soares fez à direção por ter “recusado todos os debates que foram colocados” pela oposição (fora os debates internos que já estavam agendados) e ter tratado a convenção como uma espécie de pró-forma: “Serve para aclamar a nova líder”. Depois, no púlpito, carregou nas críticas acusando a direção de fazer “discursos vagos” que só diminuem a “identidade do Bloco”, em cuja cabeça a geringonça ainda “perdura”. “O mal estar está instalado e transborda”, diagnosticou.
Carlos Matias, também da moção E, falou na mesma linha: em entrevista ao Observador criticou a direção por não fazer um balanço sobre as derrotas eleitorais nos últimos anos e lamentou uma suposta falta de “sentido crítico” no Bloco e “sentido autocrítico” na direção. Culpa do “geringoncismo” que “começou a marcar permanentemente o posicionamento político do Bloco”, atirou.
Da direção, pouca reação. Ainda assim, Catarina Martins aproveitou para frisar, logo no arranque do seu discurso de despedida, que a convenção teve um processo de preparação longo e muito participado; e ao longo de várias entrevistas, dirigentes foram tentando desconstruir esta tese e garantindo que o Bloco debateu o suficiente a nível interno.
Quanto à relação com o PS — o ponto principal que originou a divisão interna, quando os críticos começaram a pedir ao partido que começasse a ser mais exigente com os socialistas, na segunda metade da geringonça — uma coisa a direção quis deixar claro: quanto à geringonça, não há arrependimentos. Louçã usou essas memórias, aliás, para frisar o contraste com a maioria absoluta recheada de polémicas e menos estável do que os tempos de geringonça.
O eleitorado gosta, o Bloco orgulha-se da experiência e até tentou renová-la em 2019. Mas disso só se pode falar no passado: não será por ter ouvido os críticos com particular dedicação, mas na cúpula do Bloco está bem presente a ideia de que falar na relação com o PS ou de futuros e hipotéticos acordos seria contraproducente. Pelo menos por agora, enquanto ainda não há eleições à vista.